Rumo à Cidade de Deus

“Os discípulos mantiveram silêncio e não contaram coisa alguma do que tinham visto”

Lc 9,36

Assim Lucas encerra seu relato sobre o episódio da Transfiguração de Jesus. Os discípulos ainda não compreendiam completamente o que Jesus estava fazendo.

Fim de uma lição, início de outras

No dia seguinte, depois de descerem do Monte Tabor, local da sua Transfiguração, Jesus toma a decisão, irrevogável, de subir à Jerusalém:

“Era o mês de nisã. As chuvas do inverno haviam cessado. A primavera começava a despertar nas colinas da Galileia e já despontavam os brotos das figueiras. O clima era agradável. As pessoas se preparavam para subir em peregrinação a Jerusalém a fim de celebrar a grande festa da Páscoa. Da Galileia eram necessários três a quatro dias de caminhada. Jesus estava acompanhado de seus discípulos. É a ocasião ideal. A Cidade Santa era o centro do povo escolhido. Milhares de peregrinos vindos da Palestina e de todos os rincões do Império reunir-se-ão para reavivar durante as festas da Páscoa seu anseio de liberdade”.

PAGOLA, 2014, p.421-422

O tema da morte do messias-profeta vai percorrer toda a viagem rumo à Jerusalém. Já na abertura:

“E aconteceu que ao se completarem os dias para a sua assunção, manifestou o firme propósito de ir para Jerusalém” (Lc 9,51)

A frase contém uma referência a uma atitude narrada pelo Profeta Ezequiel (21,7): “Filho do homem, volta a tua face contra Jerusalém, profere a tua palavra na direção do santuário e profetiza contra a terra de Israel”. Jesus, como em outro tempo Ezequiel, toma a decisão irrevogável de enfrentar a instituição judaica (cf. RIUS-CAMPS, 1995, p.182).

Papa Francisco, em uma de suas meditações matutinas, afirma que Jesus tomou a decisão firme de se pôr a caminho, aceitou a vontade do Pai, e vai em frente. Depois, anuncia isto aos seus discípulos: Jesus está decidido a fazer a vontade do Pai até ao fim. E ao Pai diz claramente: “É a tua vontade, estou aqui para obedecer; tu não queres sacrifícios, mas obediência e eu obedeço e vou em frente” […]

O Senhor entra na paciência, prosseguiu o Pontífice, porque é um exemplo de caminho não só morrer sofrendo na cruz, mas caminhar na paciência. Deste modo, Jesus diante desta decisão firme que tomou, comunica aos seus discípulos que se aproxima o tempo. Por sua vez, os discípulos, por vezes não compreendem, o que significa ou não querem entender, porque tinham medo, estavam amedrontados (PAPA FRANCISCO, 2017).

Segundo Lucas, a viagem de Jesus cumpre um papel teológico, é como um Êxodo: uma caminhada de libertação radical, que compreende sua partida desta vida, passagem através do ‘mar vermelho’ da sua paixão, ressurreição e ascensão. A intenção é apresentar Jerusalém como o ponto da consumação do ministério de Jesus.

Lucas quer mostrar que o templo e a cidade de Jerusalém já não são mais os lugares da salvação. Jerusalém é a sede da instituição religiosa e política judaica, hostil à atividade missionária de Jesus. Logo, ir para Jerusalém era caminhar ao encontro da perseguição. Agora, o lugar por excelência da revelação de Deus, é a pessoa de Jesus. Jesus anuncia que a salvação é universal, se estende a todos, porque está no plano libertador e salvífico do Deus da vida, favorecer toda a humanidade.

O caminho escolhido por Jesus, descrito por Lucas, depois de sair da Galileia rumo à Jerusalém, passava pela Samaria. Esta narrativa só se encontra no Evangelho de Lucas. A Samaria, para o judeu era terra de estrangeiros, lugar de impuros, politeístas, pecadores. Lucas, em suas narrativas, coloca os samaritanos como os primeiros a serem resgatados. São as ovelhas mais próximas de Israel.

A cidade de Samaria foi construída por Amri, rei de Israel, que reinou de 876 a 869 a.C. A partir de então esta cidade passou a ser a capital do Reino do Norte até a sua queda em 721 a.C. Com o passar do tempo, passou-se a chamar de Samaria não só a cidade, mas a todo o território das dez tribos que formavam o Reino do Norte. Localizada sobre uma colina, a 67 quilômetros ao norte de Jerusalém. Situada a meio caminho do Jordão ao Mediterrâneo, a 12 km a noroeste de Siquém, próximo da entrada do Vale de Jezrael. Foi em Samaria que os profetas Elias e Eliseu exerceram seus ministérios. Politeístas, os samaritanos eram rejeitados pelos judeus.

BRIGHT, 2003, p.294 – 324

O objetivo de Jesus era enfrentar a instituição judaica e, consequentemente, denunciar o sistema teocrático judaico em seu centro nevrálgico: o templo (Lc 19,45-46). A transfiguração de Jesus foi a resposta de Deus ao escândalo causado nos discípulos pelo primeiro anúncio da Paixão (Lc 9,22). Jesus compreende ser necessário corrigir a mentalidade nacionalista e fanática dos discípulos. É na caminhada rumo à Jerusalém que os discípulos aprofundarão o sentido do seguimento. Jesus encorajará seus discípulos a mergulharem em si mesmos a fim de superarem os transtornos carregados por cada um, desde antes de suas existências.

“Importa, contudo, caminhar hoje, amanhã, e depois, para que não suceda que um profeta morra fora de Jerusalém” (Lc 13,33)

Para seguir Jesus é necessário ter espírito ousado, é preciso identificar-se com ele e compartilhar o seu modo de viver a missão. Para Jesus não há nada de mais importante ou decisivo. Jesus vive para o Reino de Deus. Essa é sua verdadeira paixão. Por essa causa se desvela e luta; por essa causa é perseguido e executado. Seguir Jesus implica assumir a crucificação pelo Reino de Deus. É confiar no Pai de todos, invocar seu nome santo, pedir a vinda de seu reino e semear “a esperança de Jesus contra toda a esperança humana” (cf Rm 4,18).

O chamado de Jesus é radical. Aqueles que se decidem segui-lo devem abandonar tudo o que possuem e arriscar-se à providência divina. Seguir Jesus significa caminhar, mover-se e dar passos atrás dele. Exige uma dinâmica de movimento. Jesus é o modelo perfeito do Caminho.

O Caminho de Jesus é a sua vida, vivida em sua pessoa, e em sua história. Portanto, aqui, a palavra “no caminho” mais que referência geográfica é lugar-símbolo. Estar em caminho com Jesus é comprometer-se com ele nas mais perigosas situações. E, de fato, estava ficando muito complicado caminhar com ele. Ele ia para Jerusalém o centro do poder. Suas palavras, gestos, ideias e posturas sobre a prática religiosa e a justiça social começavam a incomodar. Caminhando na concretude da vida, Jesus vai ensinando seus discípulos (cf. PAGOLA, 2014, p. 568-569)

Depois de atravessar Jericó, seguiu pela estrada que sobe até chegar ao Monte das Oliveiras. Era o melhor ponto para contemplar a Cidade Santa em todo seu esplendor e beleza. Os peregrinos emudeciam e choravam de alegria ao vê-la. No coração de Jesus entremisturavam-se a alegria e a tristeza, o temor e a esperança. “E, como estivesse perto, viu a cidade e chorou sobre ela, dizendo: Ah! Se neste dia também tu conhecesses a mensagem de paz! Agora, porém, isso está escondido a teus olhos” (Lc 19, 41-43).

“Diariamente, Jesus ensinava no templo; mas os principais sacerdotes, os escribas e os do povo procuravam matá-lo” (Lc 19,47)

A cidade, através de suas elites religiosas, não aceita a paz de Jesus.

“Poucos dias após, acontece algo muito grave. Jesus, que enquanto está em Jerusalém parece hospedar-se em Betânia, retorna à cidade e realiza a ação pública mais grave de toda a sua vida. De fato, é esta intervenção no templo que desencadeia sua detenção e rápida execução”.

PAGOLA, 2014, p.428

Na narrativa de Lucas (19,45-48), o templo é casa de oração e não cabia atividades impuras e desonestas. “E, entrando no templo, começou a expulsar os vendedores, dizendo-lhes: Está escrito: Minha casa será uma casa de oração. Vós, porém, fizestes dela um covil de ladrões!”.

A ação de Jesus foi um ato simbólico. Sua intervenção no meio daquela grande esplanada durante um tempo curto, pouco importou, em si mesma. O que Jesus pretende é atrair a atenção sobre algo que para ele é muito importante. Sua pretensão não é “purificar” o culto. Seu gesto é mais radical e profundo. Sua ação aponta para o desaparecimento da própria instituição religiosa.

Seu gesto anuncia o juízo de Deus contra um sistema econômico, político e religioso que não agrada a Deus. O Templo não está a serviço da Aliança. Ninguém defende, a partir dele, os pobres, nem protege os bens e a honra dos mais vulneráveis. Está se repetindo o que Jeremias condenava em seu tempo: “Esse templo, onde o meu Nome é invocado, será porventura um covil de ladrões a vossos olhos?” (Jr 7,11) […]

O gesto de Jesus é uma “destruição” simbólica e profética. O Deus dos pobres e excluídos não reina nem reinará a partir desse templo: jamais legitimará esse sistema. Com a vinda do reino de Deus, o templo judaico perde sua razão de ser (cf. PAGOLA, 2014, p.422).

“Jesus é preso, condenado e morto” (cf. Lc 22,47-53; 23,13-25; 23, 44-49)

A atuação de Jesus foi longe demais. Também Jesus sabe que suas horas estão contadas. Mesmo assim, não pensa em se esconder. Continuava frequentando o templo, durante o dia, dando as últimas instruções ao povo, como um todo e, aos seus discípulos, em particular.

“Cuidado com os escribas que sentem prazer em circular com togas, gostam de saudações nas praças públicas, dos primeiros lugares de honra nos banquetes, que devoram as casas das viúvas e simulam fazer longas orações. Esses receberão uma sentença mais severa”.

Lc 20,45-46

Sabendo-se procurado, sabedor dos perigos que o cercam e aos seus discípulos, Jesus organiza uma ceia especial de despedida de seus amigos. “Veio o dia dos ázimos, quando devia ser imolada a páscoa. Jesus então enviou Pedro e João, dizendo: Ide preparar-nos a páscoa para comermos” (Lc 22,7-8).

Consciente da iminência de sua morte, Jesus quer compartilhar com os seus, sua confiança total no Pai, inclusive nesta hora. Quer prepará-los para um golpe tão duro; sua execução não deve mergulhá-los na tristeza e no desespero. Nessa noite Jesus não se retira para Betânia, como nos dias anteriores. Permanece em Jerusalém, junto com os seus amigos.

Lucas contrapõe a entrega total de Jesus aos seus, à traição, à luta pelo poder e à apostasia dos discípulos. Na ação do partir o pão e compartilhá-lo com seus amigos, polarizou a total disponibilidade e doação de Jesus aos seus: “Isto é o meu corpo” (Lc 22,19b) (cf. RIUS-CAMPS, 1995, p.328).

Com esta ação, ponto culminante de seu ensinamento, convida os discípulos a se darem, também eles, não com palavras, mas de fato, ainda que isso lhes custe a própria vida. Mas seus discípulos ainda não estão preparados, nem de longe, para uma libertação como essa.

A caminhada dos Doze, junto de Jesus, chegou ao final. Pedro e os outros discípulos estão arrasados, tristes e morrendo de medo. Aqueles homens e mulheres, outrora alegres, cheios de confiança e esperança, dispostos a morrerem pelo Messias: “Senhor, estou pronto a ir contigo à prisão e à morte” (Lc 22,33), que aceitaram o convite de Jesus, viveram a experiência pessoal e comunitária de estar na presença do Senhor e que com ele conviveram intimamente, saboreando o mistério, murcharam.

“No primeiro dia da semana, de madrugada…” (Lc 24,1)

Mas, com Jesus, o mal, o sofrimento e a morte não tiveram a última palavra. Nunca se poderá precisar o impacto da execução de Jesus, o que mergulhou os seus seguidores numa crise radical, desolados pelos acontecimentos. No entanto, pouco tempo depois, todos confessam que o crucificado está vivo. Deus o ressuscitou! “Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram” (1 Cor 15,16.20).

A ressurreição de Jesus é uma atuação de Deus que, com sua força criadora, o resgata da morte para introduzi-lo na plenitude de sua própria vida, infundindo-lhe toda sua força criadora.

“Na ressurreição de Jesus foi alcançada uma nova possibilidade de ser homem, uma possibilidade que interessa a todos e abre um futuro, um novo gênero de futuro para os homens”.

BENTO XVI, 2011, p.220

A ressurreição de Jesus é, para nós, a razão última e a força diária de nossa esperança. No Ressuscitado descobrimos a intenção profunda de Deus confirmada para sempre: uma vida plenamente feliz para toda a criação, uma vida libertada para sempre do mal. A vida vivida a partir de sua Fonte: Jesus Cristo.

Concluo meditando nas palavras do nosso querido professor de Teologia, na PUC-SP, Pe. Pedro:

“O caminho de Jesus para Jerusalém é também o mesmo modelo proposto para a Igreja através da convocação e envio de missionários, acompanhamento da obra evangelizadora, edificação da Igreja e cumprimento de sua missão (Lc 9,57-62; 19,17-24). Desta forma, o caminho de Jesus para Jerusalém não é somente escola de discipulado, mas também de evangelização”.

IWASHITA, 2010, p.68
Referências
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA do Peregrino. São Paulo: Paulus, 3ª edição, 2017.
BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulus, 2003.
PAGOLA, José Antonio, Jesus: aproximação histórica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
PAPA BENTO XVI. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a ressurreição. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.
PAPA FRANCISCO. Meditações matutinas na Santa Missa celebrada
na Capela da casa Santa Marta. Publicado no L'Osservatore Romano, edição em português, n. 41 de 12 de outubro de 2017.
IWASHITA, Pedro K. Maria, discípula missionária. Revista de Cultura Teológica - v. 18 - n. 72 - OUT/DEZ 2010
RIUS-CAMPS, Josep. O Evangelho de Lucas: O êxodo do homem livre. São Paulo: Paulus, 1995.

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