O presente artigo é o primeiro de uma série de três artigos, que procuram esclarecer de forma simples, o que é teologia da escatologia. Obviamente não se esgota o tema, no entanto, são apresentados os itens principais para que se possa entender o que a Igreja, ao longo de sua história, entende temas que sempre causam controvérsias como morte, ressurreição dos mortos, vinda de Jesus, Parusia, Céu, Purgatório, Inferno, vida eterna, entre outros.
Neste estudo não se faz especulações, ou futurismo, ou achismos, são apresentados nas referências bibliográficas, autores de renome, que conhecem profundamente a teologia da escatologia, como uma linha de estudos dentro da enorme variedade de temas da ciência teológica.
Esperamos que com a leitura dos artigos, eventuais dúvidas que existam, com relação ao que nos reserva, sejam devidamente esclarecidas. Fiquem a vontade para deixarem seus comentários no espaço próprio para isso, logo abaixo do texto.
O termo escatologia e seu significado elementar
Noção básica de Escatologia; esperança escatológica e fim do mundo apocalíptico.
Escatologia é uma palavra originária do grego, composta de dois termos: éskaton e logos. Éskaton (no singular) que significa “último”, “definitivo” ou “futuro absoluto”. éskata (no plural) significa “as últimas realidades. Logos é o termo técnico de muitos sentidos, tais como: palavra, verbo, intelecção, reflexão. Normalmente o seu derivado logia significa “estudo sobre”. Portanto escatologia é o tratado teológico relativo às realidades últimas, aquelas que dizem respeito ao destino seja do ser humano, seja de toda a Criação. As que se referem ao ser humano individual são: a morte, o juízo particular, o purgatório, o céu e o inferno. Já as realidades coletivas últimas são: o embate final, a segunda vinda de Cristo, a ressurreição dos mortos, o juízo universal, fim e renovação do mundo e a vida eterna. Na tradição clássica levam o nome de “novíssimos”, superlativo que em latim significa as coisas “mais recentes” e, por isso, “últimas”. Futuro absoluto não significa somente perguntar pelo fim do mundo (eska: coisas últimas), mas pelo sentido mais profundo de tudo o que existe já hoje, assim como também existirá no futuro.
A escatologia é uma disciplina da teologia cristã. Detém-se sobre a morte, a vida eterna, a segunda vinda de Jesus (Parusia), o sentido último da existência de cada um e da Criação à luz da fé cristã. A escatologia se constrói a partir da Sagrada Escritura, levando em conta a experiência de fé acumulada pela Tradição (com T maiúsculo, para diferenciar das simples tradições), e as questões atuais colocadas pela humanidade, nas diferentes culturas.
A escatologia deve atualizar a mensagem cristã a partir da esperança trazida por Cristo, para que a vida das pessoas, das comunidades e da sociedade tenha sentido. Ao refletir sobre o “último e definitivo na vida humana”, inclui a morte e a vida eterna.
No entanto o cristão, a cristã, não devem falar a respeito do que vai acontecer depois da morte como se estivessem fazendo uma reportagem antecipada. Cuidado e respeito são necessários para não dar margem à “ficção teológica”. A linguagem adequada para fazer escatologia conjuga fé e esperança. As realidades pós-morte estão muito além da nossa compreensão. Em parte, se fala e se cala em respeitoso silêncio e reverência ao mistério que nos ultrapassa.
Os dois grandes Símbolos da fé, o apostólico e o niceno-constantinopolitano, trazem o essencial da escatologia. Professam quatro grandes verdades escatológicas:
1) A Segunda vinda de Cristo: “de onde há de vir…” se diz no Símbolo apostólico; “e de novo há de vir em sua glória”, no segundo Símbolo:
2) O Juízo final: “(há de vir) para julgar os vivos e o mortos” se diz no Símbolo apostólico; “para julgar os vivos e mortos”, no segundo Símbolo. Céu, purgatório e inferno, como resultado do julgamento, aqui são apenas evocados;
3) A Ressurreição geral no fim dos tempos: “a ressurreição da carne” é confessada no primeiro Símbolo; “espero a ressurreição dos mortos”, no segundo Símbolo.
4) “e a vida eterna”: assim reza o primeiro Símbolo: “e a vida do mundo que há de vir”, o segundo Símbolo.
A sociedade de hoje e a questão dos fins últimos
Antropologia Teológica
Para fazermos uma escatologia correta é preciso uma antropologia correta, no entanto não uma antropologia comum ou filosófica, mas, uma antropologia teológica, ou seja: é preciso um entendimento do que é o homem à luz da sua relação com Deus Uno e Trino revelado em Cristo.
“Quem é o homem para que dele te lembrares, e um filho de Adão, para vires visita-lo? E o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas mãos, sob teus pés tudo colocastes” (Sl 8,5-7). O salmista se interroga sobre a grandeza humana em sua fragilidade, o mistério e o paradoxo que impressionam os pensadores de todas as épocas; e acrescenta o ser humano como quase partícipe da condição divina e dominador da criação.
Do conjunto do AT depreende-se que o homem, em nome de Deus e perante Ele, é responsável pelo mundo; é enquanto interlocutor de Deus, parte ativa na história que o Senhor iniciou e que deseja levar a termo. Não é preciso ver a imagem de Deus nesta ou naquela qualidade, mas achamo-nos diante da determinação fundamental do homem, que abrange todas as suas dimensões devido ao germe divino que nele habita.
Tanto a filosofia como as demais ciências humanas têm suas próprias definições acerca do que é o homem. No entanto o que nos interessa aqui é a sua constituição em termos teológicos, ou seja: como está definido na Sagrada Escritura, na Tradição e no Magistério da Igreja: o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27).
A mensagem do Gn foi reinterpretada à luz de Cristo. A imagem de Deus, segundo o NT, é o próprio Jesus (Jo 14,8; 2Cor 4,4; Cl 1,15). Esse conceito está relacionado com a teologia da revelação: Jesus, enquanto imagem do Pai, O revela. Nós, homens e mulheres, em nossa condição terrena, temos a imagem de Adão, o primeiro homem, e teremos a imagem do homem celeste, Cristo ressuscitado. O primeiro homem foi alma vivente, o segundo é espírito que dá a vida. (cfe. 1Cor 15,45-49).
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS) nos ensina que o ser humano é “corpo e alma, mas realmente uno” (GS 14). É, pois, uma realidade unidual. Dual e não dualista, pois, corpo e alma não são duas coisas à parte, mas, antes dois princípios, constituindo, juntos, uma realidade substancialmente unitária. Não são dois elementos justapostos como o hidrogênio e o oxigênio para formar a água. São duas dimensões heterogêneas, matéria e espírito, que se combinam.
A união entre a alma e o corpo é tão real que, sem um desses princípios, não há mais propriamente “pessoa humana”, mas apenas, por um lado, um “cadáver” (em estado de decomposição) e, por outro, uma alma separada (em estado anômalo).
A cultura atual destaca tanto a unidade do ser humano que acaba minorando a dimensão de interioridade (alma), muitas vezes reduzida à psique, em proveito da de exterioridade (corpo). Em verdade, é nosso elemento interior que é mais digno que o exterior.
Distinção interna ao corpo: corpo biofísico e corpo pessoal
É preciso distinguir dois tipos de corporalidade:
- Um corpo grosseiro, biofísico, também chamado “corpo objetivo, de “forma acidental”;
- E um corpo sutil, metafísico, também chamado “corpo subjetivo”, de “forma substancial”.
A “forma acidental” do corpo, forma meramente externa, material, amontoado organizado de células. É um corpo de cunho material e obscuro, corruptível e mortal.
A “forma substancial” do corpo, é o corpo vivo, pessoal. Essa forma essencial do corpo “imprime” uma espécie de “cunho” na alma, conferindo-lhe um “caráter físico”. É um corpo de cunho espiritual e luminoso, incorruptível e imortal, pois que acompanha sempre a alma.
Não são dois corpos. O que há são duas dimensões de um só e mesmo corpo. Comparativamente ao cérebro e a mente. A “alma separada”, não obstante estar fora do corpo físico e podendo mesmo vê-lo, como espectadora, diante ou abaixo de si, mantém certa forma de corporal de tipo leve, flutuante, espiritualizada, com uma capacidade de ver, ouvir e mesmo ter sentimentos (de paz, amor, etc.), como mostram as experiências de quase morte.
Distinção dentro da alma: o eu pequeno e o eu grande
Também existe distinção na alma e são de dois tipos:
- “Alma sensitiva” (ou Psique), sede das impressões, emoções e recordações, o “eu inferior”; é o nosso eu mais superficial, ilusório e mesmo falso, pois cede facilmente ao egoísmo e à vaidade.
- “Alma racional” (ou Espírito), sede da razão e da vontade, o “eu superior”, o nosso eu profundo, nuclear, verdadeiro. É nossa parte mais nobre.
O ser humano de hoje e o discurso escatológico tradicional.
A tendência da cultura moderna é privilegiar o tempo histórico e não a vida “depois da morte”; a terra e não o céu. Dando as costas ao futuro escatológico, as sociedades modernas se concentram na construção do futuro histórico. Os únicos fins que se conhecem são os fins curtos e imediatos. É o hedonismo ou “presentimos” de que diz: “comamos e bebamos porque amanhã morreremos” (1Cor 15,32). É comportar-se como se Deus não existisse, isso só pode levar ao niilismo, enquanto, numa perspectiva sem Deus, tudo termina com a morte, tudo vai finalmente para o nada.
Em verdade, a escatologia não é uma questão meramente conjuntural: é, antes, uma questão profundamente humana e, por isso, permanente. Ela diz respeito às perguntas mais desafiadoras e decisivas que os seres humanos podem fazer: Qual é o nosso destino? Para onde vamos? Que podemos esperar em definitivo? Para que vivemos, finalmente?
Ora, somente o fim dá o sentido último a qualquer realidade, tudo se entende bem quando chegou ao seu termo. Só então está completa e pode ser bem compreendida. Daí que a escatologia é a chave para entender a vida e seu sentido. Ela diz para onde vamos e, por consequência, qual é o rumo que devemos imprimir à nossa vida para chegarmos lá. A vida do ser humano só tem sentido à luz de seu fim. Dizer que o ser humano é um ser “escatológico” é dizer que é um ser que tem um fim, que busca um fim. Por ser espiritual, ele é aberto ao transcendente. Logo, seu fim só pode ser o infinito. Sua felicidade absoluta só pode ser encontrada no Absoluto: Deus. Como diz Santo Agostinho: “Senhor, tu nos fizeste para ti, e inquieto está o nosso coração até que não se aquiete em ti”.
(No próximo artigo trataremos da morte e do purgatório)
Referências: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. BLANK, Renold J. VILHENA, Maria Angela. Esperança além da esperança: Antropologia e escatologia. Valencia (Espanha): Siquem, 2001. BOFF, Clodovis. Escatologia: breve tratado teológico-pastoral. São Paulo: Ave Maria, 2012. LADARIA, Luis F. Introdução à antropologia teológica. 3ed. São Paulo: Loyola, 2007. LIBÂNIO, João Batista. BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia cristã: O Novo Céu e a Nova Terra. Petrópolis: Vozes, 1985. MANZATTO, Antonio. PASSOS, João Décio. VILLAC, Sylvia. De esperança em esperança: escatologia. 2ed. São Paulo: Paulus, 2011. MURAD, Afonso. CUNHA, Carlos. GOMES, Paulo Roberto. Da terra ao céu: escatologia cristã em perspectiva dialogal. São Paulo: Paulinas, 2016.
2 respostas em “Entendendo a Escatologia Católica (1)”
Maria canta a salvação escatológica de Deus. -Como substituir a palavra “escatologia” nessa frase?
O artigo é ótimo. Aguardo a continuidade do mesmo.