Para alguns estudiosos bíblicos o Batismo é o primeiro acontecimento da vida de Jesus que podemos considerar, com grande probabilidade, como histórico. Esse acontecimento, certamente, foi muito importante para Jesus. Foi muito importante também para os primeiros cristãos que procuravam compreender sua caminhada terrena.
Jesus e a Experiência no Deserto
“Não sabemos quando e em que circunstâncias, mas num determinado momento Jesus deixa seu trabalho de artesão, abandona sua família, seus amigos e se afasta de Nazaré. Jesus não vai em busca de estudar melhor a Torah ou conhecer as tradições judaicas, também não é encontrado junto à comunidade de Qumram, tampouco junto ao Templo, em Jerusalém. Retira-se para o deserto” [1].
Para a maioria dos judeus o deserto remete à origem da história de seu povo, lugar em que é preciso retornar em épocas de crises para recomeçar a Aliança rompida com Deus. É lugar de infertilidade, de simplicidade, de libertação, de prova, mas também lugar de bênção. O deserto é uma forma de exílio, longe de Deus, longe da terra natal, longe da fraternidade dos amigos e da família. Também Jesus vai ao deserto. Anseia por ouvir esse Deus que no deserto fala ao coração “Naquele dia eu responderei” (Os 2,21).
Nutrido pela tradição sapiencial de Israel [2], Jesus vai se alimentando da experiência de um Deus criador do ser humano e do mundo; sua Sabedoria preside a criação inteira e é fonte de comportamento sábio para as pessoas
Jesus encontra o Batista
Jesus, vivendo na mesma época e no mesmo deserto da Judeia, onde vivia João Batista, era inevitável que se encontrassem (Mc 1,9). Mas quem era e qual a mensagem de João Batista? Para o povo João é o ‘Batizador’, um profeta que pratica um rito inusitado e surpreendente nas águas do Jordão.
João era filho único de um sacerdote que atuava no Templo de Jerusalém e, segundo as leis, deveria suceder o pai em sua função, assegurando que a linhagem sacerdotal continuasse. Mas, em algum momento, João rompe, conscientemente, com o templo e com tudo o que ele significava.
Para João a Aliança foi rompida. O pecado de Israel anulou-a”. João anunciava o juízo iminente e gritava a necessidade de conversão com imagens duras e cortantes como facas. Exortava à penitência e exigia dos que acorriam a ele, para ouvi-lo, a conversão e a prática da justiça. A conversão deveria ser manifestada de maneira visível, por meio de um símbolo ritual: pela confissão pública dos pecados e pelo batismo com água. Ao se submeter, humildemente, a um batismo ministrado pelo pregador do arrependimento e do julgamento iminente, o candidato aceitava a verdade das palavras proferidas. João gritava que não adiantava apelar para a eleição por parte de Deus. Era imperativo reconhecer-se afastado de Deus, tomar consciência das faltas e, clamando por misericórdia, retornar a Deus.
João é o “mensageiro precursor do Senhor” (Lc, 1,67-79), aquele que novamente guia Israel pelo deserto e volta a introduzi-lo na terra prometida. Ele nunca se considerou o Messias dos últimos tempos. Tinha consciência de que era aquele que apenas iniciava a preparação.
“Naquele tempo, as pessoas perguntavam se João não seria o Messias. Ele tomou a palavra e disse a todos: Eu vos batizo com água, mas vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de desatar a correia das sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com o fogo. Ele tem na mão a peneira para ventilar sua eira e reunir o trigo no celeiro e queimar a palha numa fogueira que não se apaga. Acrescentando muitas outras coisas, exortava o povo e lhe anunciava a Boa Nova” (Lc 3,10-18).
Jesus é batizado [3]
“Um dia aparece na fila dos penitentes, como mais um entre tantos, Jesus. Ninguém o conhecia, nem sequer João” [4]. É chegado, afinal, o momento em que Jesus de Nazaré, já adulto, aparece na história e se submete a esse mesmo rito. Os evangelistas percebem o paradoxo desse gesto, e o narram assim:
“O evangelista João relata um diálogo entre o Batista e Jesus, cuja finalidade exclusiva é afastar o gesto de Jesus da esfera da penitência; Jesus não confessa os próprios pecados, mas é o Espírito que dá testemunho de sua eleição divina (Jo 1,29-34). O modo de proceder de Mateus é idêntico: a recusa de João Batista (Mt 3,14) é situada numa intenção apologética. Quanto a Lucas, evita igualmente a dificuldade: João Batista já está na prisão quando relata o batismo de Jesus. Marcos afirma o batismo de Jesus por João Batista e completa a narrativa com a abertura dos céus, a vinda do Espírito Santo, a voz celeste” (Mc 1,9-11) [5].
Os Evangelhos narram o batismo de Jesus por João, a partir da experiência de fé da comunidade, após a morte e ressurreição de Jesus. “Por essa razão, os relatos mostram uma tendência claramente apologética” [6] . Afinal era preciso explicar o paradoxo de que Jesus, não tendo pessoalmente pecado algum, se permitiu batizar por João Batista. Assim a narrativa vai de encontro ao desejo de todos os quatro evangelistas, qual seja, o de mostrar que João Batista era o precursor, o anunciador e a testemunha histórica de Jesus.
Para Meier, o batismo indica que Jesus conhecia, presumivelmente por tê-la ouvido de fonte direta, a mensagem escatológica básica de João, e que concordava com ela.
“Aceitando o ‘batismo de João’, é possível supor que Jesus concordava que a situação de Israel havia atingido níveis alarmantes e que sua história, como era conhecida até então, aproximava-se do fim; que o povo precisava, urgentemente, converter-se radicalmente a Deus, acolhendo seu perdão; que Jesus partilhava da perspectiva escatológica, com alguns toques apocalípticos, de João Batista. Além disso, o fato de Jesus aceitar o batismo de João indica que ele próprio se considerava pertencente ao povo de Israel. Mais importante de tudo isso é que Jesus compartilhava da esperança do Batista. Sentia-se encantado com a ideia de preparar o povo para o encontro com Deus” [7].
O Batismo de Jesus no Evangelho de Lucas
“Ora, tendo todo o povo recebido o batismo, e no momento que Jesus, também batizado, achava-se em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo, desceu sobre ele em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei” (Lc 3,21-22).A narrativa de Lucas destaca, como tantas outras vezes ainda o fará ao longo de seu Evangelho, que Jesus “estava em oração quando o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele” (Lc 3,21).
A “abertura dos céus”: significa que já não há mais distâncias entre Deus e os homens, novas relações foram inauguradas entre Deus e os homens. Agora Deus se comunica intimamente com Jesus. Ouve-se uma voz ‘Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei”! O essencial está dito. Isto é o que Jesus ouve de Deus em seu interior: “Tu és meu. És meu Filho. Teu ser está brotando de mim. Eu sou teu Pai. Amo-te com amor entranhável; enche-me de prazer que sejas meu Filho; sinto-me feliz” [8].
Sua experiência interior, no batismo, é tão potente que transforma para sempre o modo de entender e viver sua relação com o Pai. Jesus acolhe a filiação que lhe é revelada através da voz amorosa do Pai e, também de igual maneira, acolhe o Espírito que lhe dá a força para a missão, a grande tarefa do Reino.
“A partir dessa fortíssima experiência de unção messiânica, Jesus só invocará o Pai com um nome: Abbá. Doravante não o chamará com outro nome ao comunicar-se com ele. Esta palavra diz tudo: sua confiança total em Deus e sua disponibilidade incondicional” [9].
Brota em Jesus uma espontânea relação de mansidão e confiança em Deus. Abandona-se totalmente ao Pai, confiando plenamente em Deus. Doravante, viverá procurando fazer a alegria e a vontade do Pai. Jesus descobre um Pai, amoroso e misericordioso, que quer o melhor para os seus filhos.
Barreiro destaca que a “voz vinda dos céus” revela quem é Jesus, sua verdadeira identidade:
O “Filho/Servo único”, o “Filho predileto”, o “Filho amado” pelo Pai com um amor único, no qual tem toda a sua complacência, todo o seu bem querer. Em Is 42,1ss., o termo hebraico ebed é traduzido pelo termo grego pais, que pode significar “servo” e “filho”. Na teofania do batismo, a filiação de Jesus é apresentada intencionalmente com esta ambiguidade da palavra grega pais: com a dignidade do Filho e com o serviço do Servo. O sentido do verbo (eudokeo) é que Jesus foi eleito por Deus livre e amorosamente para realizar sua missão na forma do Servo Sofredor. O próprio Jesus interpretará sua morte como um batismo: “Devo receber um batismo, e como me angustio até que esteja consumado” (Lc 12,50); “Podeis beber o cálice que eu beberei, e com o batismo com que eu for batizado, sereis batizados?” (Mc 10,38)[10].
Aqui reside o sentido primordial da narrativa que aprofunda a encarnação do Verbo na direção da cruz. O Batismo de Jesus é imagem de sua morte e remete necessariamente ao seu nascimento e à sua ressurreição, enquanto mistérios que se tangem. A descrição da teofania pelo evangelista Lucas inclui a referência ao Sl 2,7: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei”.
O Batismo de Jesus é uma narrativa condensada do Mistério Pascal de Cristo que narra sua morte — descida ao Jordão — e, sua ressurreição — saída do Jordão e céus se abrindo. Seu Batismo é ainda lido e entendido em solidariedade com a humanidade. O Mistério da Páscoa do Senhor, simbolizados pelo seu Batismo, efetuam a redenção do ser humano.
Referências BARREIRO, Álvaro, SJ. Do Jordão a Betânia: Contemplando os mistérios da vida pública de Jesus. São Paulo: Loyola, 1993. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002. Nova edição, revista e ampliada. DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático I. São Paulo, Edições Loyola, 1977. MEIER, John P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, volume 2, livro 1; mentor. Rio de Janeiro: Imago ed. 1996. PAGOLA, José Antonio. O Caminho aberto por Jesus: Lucas. Petrópolis: Vozes, 2012. ______. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2014.
Notas
[1] PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 87. A profundidade e maturidade de sua índole religiosa levam alguns a pensar que Jesus viveu um período de busca antes de encontrar-se com o Batista.
[2] Idem: p. 368. Esta literatura teve um grande desenvolvimento depois do retorno do cativeiro, entre 500 e 550 a.C. Alguns livros, como os Provérbios, apresentam uma visão otimista da vida. Outros, como Coélet (ou Eclesiastes), estão marcados pelo pessimismo. O livro de Jó formula o problema de um Deus justo e bom apesar do sofrimento do inocente.
[3] MEIER, John P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, volume 2, livro 1; mentor. Rio de Janeiro: Imago ed. 1996, p. 137 e 259. Esta posição é sustentada, com vários graus de ênfase, até mesmo por Bultmann e muitos pós-bultmannianos, conhecidos por não se mostrarem excessivamente crédulos em aceitar eventos dos Evangelhos como históricos.
[4] BARREIRO, Álvaro, SJ. Do Jordão a Betânia: Contemplando os mistérios da vida pública de Jesus. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 22.
[5] DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático I. São Paulo, Edições Loyola, 1977, p. 40-41.
[6] BARREIRO. Op. cit. p. 23
[7] MEIER. Op. cit. p.150.
[8] PAGOLA, José Antonio. O Caminho aberto por Jesus: Lucas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 62-63.
[9] PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 373. O costume bem atestado que Jesus tem de invocar a Deus com o termo aramaico abbá, que indica proximidade e imediatez singular (Mc 14,36); sua consciência de ter poder para perdoar pecados na terra (Mc 2,10); sua declaração de atuar como “Senhor do sábado” (Mc 2,28); suas duas atitudes básicas de confiança absoluta e de docilidade incondicional a Deus, seu Pai, até sua morte (Mc 14,36); a experiência do Jordão, na qual Deus não se mostra a ele como Mistério inefável e sim como um Pai que dialoga com ele para revelar-lhe seu mistério de Filho (Mc 1,10-11)...constituem a base histórica principal que permitiu a seus discípulos chegarem a fé em Jesus Cristo como Filho de Deus à luz da fé pascal.
[10] BARREIRO. Op. cit. p.27.