Todo ser humano é finito em sua condição biológica, e ao mesmo tempo infinito em sua condição existencial. Durante a vida, mesmo sem perceber, aumenta em nós o desejo pela eternidade; algo intrínseco de todo ser humano, como se – “lá dentro” – soubéssemos que não é aqui o nosso lugar, mas o “céu”.
Segundo as Escrituras, o céu é o lugar de Deus. E por ser de Deus, somente Ele pode dar acesso a esse lugar. Por isso, antes de ser desejo do ser humano, o céu é uma oferta gratuita de Deus. Entendendo dessa forma, não só esperamos pelo céu, mas também somos esperados nele.
Céu não como lugar, mas situação
Em nossa condição atual, somos marcados por duas realidades que permeiam tudo o que conhecemos: o espaço e o tempo. Por isso é natural situar o céu acima da terra, o inferno abaixo e o purgatório no meio, como se vê na Divina Comédia de Dante (publicado pela primeira vez no século XIV). Entretanto, já é sabido que o céu (morada de Deus) não é lugar nem está num lugar, como também ele, o céu, não está determinado por um tempo cronológico, marcado pelo relógio. O início dessa compreensão começou com Copérnico e seu heliocentrismo, trazendo um novo entendimento do céu e da sua verdadeira transcendência.
Além da tentativa de qualificarmos o céu como um lugar, ele também representa a realização absoluta do ser humano. É no céu que teremos a plenitude da vida, do amor e da felicidade. É o destino que a nossa alma sempre aspirou e onde encontrará, enfim, o repouso de todas as nossas inquietações. Mais ainda: céu não significa apenas o descanso merecido, mas a realização das nossas potencialidades amplificadas ao infinito.
Metáforas bíblicas para o céu
A Sagrada Escritura, encarnada na história da humanidade, também se limitou ao espaço e ao tempo para definir realidades transcendentes. Por isso ela multiplicou as expressões e imagens na intenção de se aproximar do mistério que é o céu. Vejamos alguns termos que encontramos na Bíblia:
- Banquete
(Lc 12,37; 14,15-24; 22,16-18 …)
A mesa e a ceia é a metáfora preferida de Jesus para falar do céu (especialmente presente no Evangelho de Lucas). - Comunhão de amor
(Jo 17,24; 1Ts 4,17 …)
Como se no céu tomássemos parte da própria Trindade. - Visão da face de Deus
(1Cor 13,12 …)
Ver a Deus é, em suma, viver. É um ver que, quando experimentado, nada mais tem sentido, como se pode constatar no que diz Santo Agostinho:
“Se Deus mesmo nos fizesse essa proposta: Ficai com a abundância de todos os bens da terra, e vivei em pleno gozo, não por algum tempo somente, mas para sempre. Porém, não vereis nunca mais o meu rosto. Que coisa responderíeis? O casto temor choraria e diria gemendo: Ah, que me sejam tirados antes todos os bens, mas que eu veja a tua face”. - Vida eterna
(como eu Jo 17,3 …)
É vida sem envelhecimento e sem morte. Vida imortal, ressuscitada, pascal. Eterna juventude. - Novos céus e nova terra
(como em 2Pd 3,13 …)
É uma ideia bem presente no NT. É a restauração do mundo, onde não haverá mais “fome, sede e calor” (Ap 7,15), nem “morte, grito, luto e dor” (Ap 21,4). No final dos tempos, a terra será transfigurada e celebrará suas núpcias com o céu. É o céu na terra e a terra no céu.
O reencontro no céu
“A vida eterna (céu) consiste, antes de tudo, na união com Deus. (…) Em seguida, na companhia feliz com todos os bem-aventurados. Esta companhia será extremamente deliciosa, porque cada um possuirá todos os bens que possuem todos os bem-aventurados. Pois cada um amará o outro como a si mesmo e por isso se alegrará com o bem do outro como com seu bem próprio. Daí porque a alegria e a felicidade de um só aumentará na medida em que é constituída pela alegria de todos”.
Santo Tomás de Aquino
O céu será o reencontro feliz e para sempre dos que se amaram na terra e muitas vezes tiveram que sofrer separações dolorosas: reencontro de pai e mãe com filhos e filhas, de esposo com esposa, de irmão com irmão, de amigo com amigo, de discípulo com mestre etc. Aí o amor permanecerá, purificado, sim, mas não menos verdadeiro e, além disso, não menos intenso. Além do mais, céu é também amar a Deus em cada coisa e cada coisa amar a Deus.
Se o amor colore tudo com as cores do amado, então tudo passará a falar e a lembrar Deus: cada coisa terá música, cheiro, cor e gosto de Deus. A certeza de ser amado fará com que todos possam também amar de verdade, fazendo com que tudo seja puro, autêntico, elevando toda a criação em estado de felicidade perfeita.
Pedaços de paraíso
Desde agora podemos experimentar momentos, embora fugazes, desse paraíso: um reencontro, uma reconciliação, um amor correspondido, uma festa, uma vitória. Neste mundo já existe uma “felicidade possível”, embora sempre relativa, como que sendo antecipações do Reino do céu.
Não se trata de “fazer o Paraíso na terra” – o perdemos para esta condição –, mas de realizar ensaios do Reino definitivo. Por isso, enquanto caminhamos nesse mundo, somos “felizes só na esperança da felicidade plena”, como nos diz Santo Agostinho.
A esperança no céu
Mas mesmo para aqueles que se encontram no céu, existe ainda uma realidade de esperança, uma ideia de futuro que também eles aguardam: à própria ressurreição final, onde reassumirão uma nova e gloriosa corporalidade. Pois ainda se encontram numa “escatologia intermediaria”, que visa ainda chegar à plenitude da ressurreição; e à regeneração do cosmos – que só acontecerá quando Cristo “tiver entregado o Reino a Deus Pai (cf. 1Cor 15,24)”, isto é, quando o mundo for purificado e transfigurado totalmente. Aí sim a felicidade será total e todas as coisas serão plenificadas.
Sobre essa felicidade total, é importante compreender que somos marcados por uma dimensão comunitária, assim como a Trindade. Dessa forma só podemos ser plenamente felizes juntos. Por isso até mesmo o céu aguarda esse último capítulo da história da humanidade.
Para terminar, meditemos sobre dois pensamentos:
“Se a vida criada já é uma alegria, quão agradável não será a vida criadora? (…) Se as alegrias dispensadas pelas coisas criadas são muitas e grandes, qual e quão grande não haverá de ser a alegria existente naquele que é a causa de todas as coisas agradáveis?”
Santo Anselmo
“Então, descansaremos e veremos, veremos e amaremos, amaremos e louvaremos. Eis o que haverá no Fim que não tem fim”.
Santo Agostinho
Anexo: Inferno
Por muito tempo (entre os séc. XIV e XVIII), vigorou na Igreja a “pastoral do medo”, apresentando o inferno com todos os seus horrores: fornalhas de fogo, diabinhos torturando os condenados etc. Contudo, como o céu, o inferno não é um lugar, mas uma situação.
É o mundo dos egoístas, dos que viveram só para si mesmos e que são por isso condenados a viverem para sempre assim, na solidão de seu eu. O escritor e teólogo anglicano C. S. Lewis escreve que o inferno é o tormento de um desejo nunca aplacado, porque o condenado, em vez de desejar a Deus, que poderia satisfazê-lo, deseja-se a si mesmo – daí sua frustração inevitável.
Deus não predestina ninguém para o Inferno. Para ter semelhante destino, é preciso haver uma aversão voluntária a Deus e persistir nela até ao fim.
Catecismo da Igreja Católica [1037]
Essa situação autoinfligida é bem ilustrada pela lenda do banquete, no qual é entregue a cada comensal longuíssimas colheres para comer: no banquete dos “solitários”, esses, postos diante do prato de comida, querendo cada um deles, egoisticamente, comer sozinho, estão fadados a morrerem de fome: esse seria o inferno; ao contrário, no banquete dos “solidários”, com suas longas colheres, cada um serve o vizinho em frente e todos comem satisfeitos: tal é o céu.
Mas o inferno existe?
A possibilidade do inferno está inscrita em nossa própria estrutura antropológica. Essa trágica possibilidade é parte da nossa natureza livre de poder dizer “não” ao Criador e de rejeitar a sua oferta de amor eterno. Enquanto se fecha conscientemente ao Amor, o coração humano já vai criando seu inferno. É como ir assentando os tijolos da própria prisão.
Os condenados queimam eternamente no fogo de sua própria cólera e orgulho. Mesmo que Deus quisesse tirá-los dessa situação, eles recusariam com desdém. Assim, os condenados são ao mesmo tempo réus e vítimas de si mesmos. As chamadas “trevas do inferno” não existem porque Deus privou os condenados de sua luz beatífica e os encerrou num “buraco negro”, mas porque eles mesmos furaram seus olhos para não verem mais essa luz. Numa outra comparação: o sol do amor de Deus brilha também sobre os condenados; só que estes, ao rejeitarem este amor, criam como que uma nuvem espessa e negra entre eles e Deus, de modo que permanecem na escuridão mais absoluta.
Portanto, o inferno não é, em primeiro lugar, uma questão de Deus e de sua justiça, mas uma resposta do ser humano e de liberdade ao Amor de Deus. O inferno (assim como o céu) está inscrito em nossa liberdade como potência de recusa.
Resumo em três frases
Para fechar a questão, a seguinte frase vai muito nos ajudar: “O inferno existe. Não sei se está vazio. Espero que sim”. A estas três sentenças correspondem três atitudes:
“O inferno existe”
Sim, a condenação eterna é uma possibilidade real. Nossa atitude é manter a fé no dogma do inferno. É preciso levar a sério a liberdade humana, que pode, em princípio, “se endurecer” às propostas do Amor. O NT registra que de fato isso aconteceu a respeito dos judeus diante da proposta de Cristo (cf. Mt 13,13-15; Jo 12,40; At 28,26-27). Na prática, em vez de ficar especulando sobre a salvação ou condenação dos outros, o que mais importa é que cada um faça de tudo para entrar pela “porta estreita”, a que “conduz à vida”. Foi a lição de Jesus perante a questão de quem se condena (cf. Lc 13,23-24).
“Não sei se está vazio”
Nossa atitude é confessar ignorância a respeito do destino eterno da criatura. Só Deus é juiz, nós não; só Ele sabe, nós não (cf. 1Cor 4,3-4). É sinal de presunção declarar que ninguém está no inferno, como dizer que a grande maioria irá para lá. Uns e outros pensam que sabem demais, mas quando se trata dos juízos secretos (sempre justos, sábios e bons), só Deus pode dizer acerca de nosso destino.
“Espero que sim”
Podemos esperar, desejar e rezar que Deus salve a todos, de modo que o inferno fique vazio. Esta é uma atitude de caráter espiritual e não dogmático. A confiança se funda aqui na infinita bondade de Deus, que ama a todos e que por todos mandou seu Filho como Redentor. Ademais, quem ama realmente a todos quer que ninguém se perca. Sim, Deus tem por nós um amor que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera” (1Cor 13,7). Ele espera por todos, em absoluto.
Esse artigo foi tema de uma formação que foi gravada em vídeo e está disponível no canal do Areópago. Vide abaixo.
Referências CATECISMO da Igreja Católica (CIC). São Paulo: Loyola, 2000. BOFF, Clodovis. Escatologia: Breve tratado teológico-pastoral. São Paulo: Ave-Maria, 2012.