Ecologia bíblica
Os livros da Bíblia Sagrada, conforme a tradição judaico-cristã, oferece subsídios para estudar a relação entre a humanidade e a criação. Encontra-se aí uma base para avaliar a retórica ecológica bíblica em todas as suas dimensões. Em primeiro lugar, por causa de sua relação e dependência da criação, no plano bíblico, diga-se de passagem. Em segundo lugar, por causa de sua relação e dependência de Deus, ambas questões presentes em toda sociedade no debate contemporâneo. No início da Igreja Cristã, ensinava-se a doutrina da criação como um ato livre de Deus, uma doutrina que foi bem aceita no princípio do cristianismo, porém naquela época os estudiosos ainda compreendiam a questão da criação narrada na Bíblia de forma estritamente literal, sem avanço interpretativo.
Em tempos Santo Agostinho, já se compreendia que a ideia da criação no período restrito a sete dias foi simplesmente introduzida para auxiliar a inteligência limitada do homem, na distante Antiguidade pré-histórica quando ainda era muito pequeno o número de pessoas instruídas e letradas, e o acesso a escrita também era muito difícil, pois chegava-se a acreditar que o mundo havia sido criado num momento de tempo junto com o próprio tempo, sendo possivelmente necessário concebê-los as noções de tempo do mundo como muito diferentes da maneira como os concebemos nos dias atuais1. Conforme observa o biblista Von Rad, a narrativa sacerdotal da criação quer transmitir, não apenas conhecimentos teológicos, mas também, conhecimentos naturais. É uma das razões pelas quais os textos sobre a criação fornecem subsídios para apresentar possibilidades de uma interpretação ecológica nas trilhas literárias bíblicas2.
Ecologia no livro do Gênesis
Como ponto de partida, a exegese e a hermenêutica elaboram um caminho para a compreensão sobre a dominação humana: Deus ordenou ao homem e à mulher, no momento da criação, que “submetessem” a terra e “dominassem” os seres vivos (Gn 1,28; Sl 8,6-8). O papel da humanidade é único na criação, assim como a criação de homem e mulher à imagem de Deus é única (Gn 1,26-27; 9,6), o que os habilita a representar a Deus no plano terrestre para reinar absolutos sobre as coisas criadas. Mas a Bíblia não diz, de modo algum, que toda a criação existe para ser explorada de forma desregrada e insustentável, a pondo de estar correndo risco do seu extermínio, através dos hábitos sociais consumistas da humanidade. A mesma ideia encontra-se nas leis que limitam a exploração da terra (Ex 33, 11; Lv 25, 2-7), e no ensinamento de Jesus (Mt 6, 25s)3.
A relação da humanidade com a natureza, observada na narrativa bíblica da criação apresenta a superação de tensões e oferece caminhos para um viver harmonizado com Deus, com o outro e com a natureza. Com o ato de criar, Deus permanece junto à sua criação, sustentando e se relacionando com toda a obra criada. Sendo assim, a criação está toda interligada, numa relação de interdependência, Deus-Terra-Humanidade. Os teólogos referem-se à responsabilidade do homem para com a criação, observada nos relatos da criação, em Gênesis 1 e 2, com os quais se fundamentam e explicam as razões bíblico-teológicas pelas quais o mundo tem passado por tantos problemas ambientais.
Ao contrário dos grupos de críticos ambientalistas que apontam, a responsabilidade da narrativa do Gênesis como justificadora das ações humanas de dominação, e geradora dos efeitos destrutivos, sobre a natureza. Deus entregou o domínio da natureza ao homem, mas isso não quer dizer que ela pertença ao homem, uma vez que pertence a Deus, cabendo ao homem sua utilização responsável e a compreensão dos limites de sua responsabilidade. O importante é destacar o lugar adequado dos seres humanos dentro de toda a casa da criação4
Os seres humanos estão certamente acima das outras criaturas, mas são também criaturas que partilham a terra com todos os outros seres que Deus criou. É assim que, depois do dilúvio, Deus faz aliança com os homens e com todos os animais (Gn 9,8-17). Segundo o autor do Sl 104, o homem é somente uma entre tantas das criaturas viventes de que Deus tem cuidado; a terra é o hábitat dos seres viventes e Deus dá a cada um seu lugar. A criação é o fruto da atividade intencional da parte de Deus, conforme é narrado pelo livro do Gênesis capítulo 1 e 2. Toda a criação é boa, portanto cada criatura tem seu lugar neste mundo com dignidade própria, porém os seres humanos ocupam um lugar único entre as criaturas. Foram feitos à imagem e semelhança de Deus, portanto, receberam a ordem de “dominar” e “subjugar” a terra, e para isso os seres humanos são dotados de capacidade de tomar decisões que podem afetar positiva ou negativamente a Terra e seus moradores e ecossistemas. A Terra é o lar de todos, ela gera a sustentação das espécies, inclusive dos seres humanos.
Deus confia aos homens a missão de sermos zeladores da Terra, com a responsabilidade de exercerem este zelo de forma sábia, de maneira que extraiam para seu sustento, porém sem colocar em risco o equilíbrio da criação5. O estudo bíblico deve evitar as justificativas do pensamento de sistema, tendência utilitarista sobre a obra da criação. A releitura do primeiro capítulo de Gênesis, à luz da ética fundada em princípios ecológicos, permite uma exegese e uma hermenêutica não de forma antropocêntrica, teocêntrica ou egocêntrica, mas sim ecocêntrica, isto é, tomando a casa comum como ponto de partida e referencial nesta leitura6.
No texto em hebraico, a expressão “sujeitar a terra”, observa o verbo “kabash” e para dizer “dominar as criaturas” o verbo “radah”. Esses verbos, sempre que são empregados no Antigo Testamento, significam “submeter, subjugar, dominar.”7 Outra analise exegética do teólogo Lopes Júnior , no Novo Testamento, esclarece que no evangelho de João, é mostrado claramente o sentido que Jesus dava às palavras hebraicas “kabash e radah”, “submeter, subjugar e dominar” e que isto pode ser exemplificado no texto de João 13, quando Jesus, depois de lavar os pés de seus discípulos, lhes diz: “Vocês me chamam de Mestre e Senhor, e dizem bem, porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, lavei os pés de vocês, de igual forma vocês também devem lavar os pés uns dos outros.” Para Jesus, segundo Lopes Júnior, os termos verbais hebraicos “kabash” e radah”, traduzidos para língua portuguesa, significa respectivamente “submeter, subjugar” e “dominar” estão estreitamente relacionados ao cuidado com o outro e com a humanidade8.
Deus deu ao homem domínio sobre a terra e este domínio é corporativo, delegado, responsável e genérico, ou seja, inerentes ao homem e à mulher. Somente os dois juntos realizam a primeira ordenança de Deus, e nenhum dos dois, sozinho, é capaz de realizá-la. A ordem de domínio dada por Deus em Gênesis 1, 28 precede a queda do homem. A partir deste momento, o homem perde a capacidade de cumprir a ordem de Deus e o caos volta a ser estabelecido no mundo9.
A análise dos capítulos 1 e 2 do livro de Gênesis, no caso, tema da narrativa bíblica da criação, realizada sob a perspectiva da ética ecológica é apresentada para que a humanidade glorifique a Deus pela criação, uma vez que, a sua soberania atribuída ao homem sobre a criação manifesta-se através dos atos de reelaborar e de designar cada elemento criado.
Sobre a questão do mandato cultural atribuído em Gênesis 1, 26-28, conforme o biblista Stott, pode ser subdividido em três características; a primeira é sobre a nossa relação com Deus, a segunda é sobre a nossa relação uns com os outros, e a terceira é sobre a nossa relação com a terra e suas criaturas. A negligência com relação ao mandato cultural tem feito com que a terra seja entregue nas mãos daqueles que não têm nenhum temor a Deus, nenhum respeito para com o próximo, e nenhum cuidado com a nossa casa, que é este planeta e sua maravilhosa natureza. Entretanto, o ser humano faz parte da criação e é dependente dela em tudo e para tudo. O ser humano vive imerso num contexto de interdependência com a criação. Desde o princípio, nossa sorte está ligada ao solo e, por sua vez, a sorte do solo está associada a nossas atitudes para com seus elementos vitais10.
Mesmo que não haja consenso por parte de teólogos com relação a maneira de fazer a leitura e da interpretação ecocêntrica da narrativa bíblica de Gênesis 1, 28 e Gênesis 2, 15, todos concordam em que Deus delegou ao homem responsabilidades morais e éticas para lavrar e guardar o planeta como um patrimônio para esta e para as futuras gerações. Apesar de o livro de Gênesis ter contribuído com a maior parte da exegese bíblica sobre a ética relativa à criação do mundo e sobre a responsabilidade humana e os seus cuidados para com o patrimônio natural, ambiental, outros textos bíblicos, entre os quais se incluem as narrativas deuteronomistas, os livros de profecias, os poéticos. Também os evangelhos podem ajudar enriquecendo a base para a construção do discurso ecológico em associação com os princípios da ecologia.
Notas 1) BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2012. 4ªed. p. 118. Louis Berkhof (14 de outubro de 1873 - 18 de maio de 1957) é um teólogo sistemático reformado cujas obras têm sido muito influentes na teologia calvinista da América do Norte e América Latina. Sua Teologia Sistemática tem sido, durante décadas, o livro-texto utilizado em muitas faculdades protestantes de teologia no Brasil. Ele nasceu nos Países Baixos e mudou-se, ainda pequeno, para os Estados Unidos. 2) RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. Tradução Francisco Catão. São Paulo: Editora Aste / Targumim, 2006. 2ª edição. p. 227. Gerhard Von Rad (21 de outubro de 1901 a 31 de outubro de 1971) foi um professor teólogo alemão, acadêmico e da Universidade de Heidelberg. 3) LACOSTE, Jean-Yves (Coord.): MENESES, Paul (tradutor): Dicionário crítico de teologia; São Paulo: Paulinas / Edições Loyola, 2004. Jean-Yves Lacoste, nasceu em 6 de março de 1953, é um teólogo, escritor e filósofo francês. Ele foi professor visitante na Universidade de Chicago e da Universidade de Virginia. Ele foi o autor e diretor de uma grande enciclopédia, Dicionário Crítico de Teologia, autoridade sobre toda a investigação relacionada com conceitos religiosos e teologia cristã. 4) SCHAEFFER, Francis. Poluição e a Morte do Homem: Uma perspectiva Cristã da Ecologia. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã. 2003. p. 35. Francis Schaffer (30 de janeiro de 1912 – 15 de maio de 1984) foi um teólogo cristão evangélico americano, filósofo e pastor. Tornou-se famoso por seus escritos e pela criação da comunidade L’Abri (do francês, “O Abrigo”), na Suíça. 5) HOUSE, R. Paul. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2005. P.73. Paul R. House (nascido em 1958) é um erudito, autor e professor de seminário do Antigo Testamento americano que atuou como presidente da Sociedade Evangélica de Teologia de 2012. Ele ganhou seu bacharelado da Southwest Baptist University, seu mestrado na Universidade do Missouri e seu Sr. Div. E Ph.D. Do Seminário Teológico Batista do Sul. 6) REIMER, Haroldo. Paz na Criação de Deus: Esperança e Compromisso. Estudos Teológicos São Leopoldo v. 51 n. 1 p. 138-156 jan. / jun. 2011. Disponível em: est.edu.br/periodicos/index.php/estudos_ teologicos/article/download/183/208. Haroldo Reimer é Doutor em teologia, Pós-doutorado em História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp - 2010 a 2013); Doutorado em Teologia, Alemanha (1986 a 1990); bacharelado em Direito pela PUC Goiás (2006 a 2010). 7) Disponível em http://www.abiblia.org/bibliaHebraico.asp 8) LOPES JR, Orivaldo Pimentel. Ser Humano e Natureza na Teologia Cristã: Quando fizestes a um lençol freático, a mim me fizestes. Dossiê: Biodiversidade, Política e Religião. Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 17, p.79-87, abr./jun. 2010. Disponível em:http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view File/P.2175-5841.2010v8n17p79/25. Orivaldo Pimentel Lopes Júnior é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte desde 1994. Doutorou-se em Ciências Sociais na PUC/SP em 2002, com sanduíche na Drew University na New Jersey, Estados Unidos. Possui Graduação em Teologia (FTB/SP - 1979) e em Letras (UnP – 2002). 9) LIMEIRA, Amelia Ferreira Martins; ANDRADE, Maristela Oliveira de. Diálogo entre a tradição bíblica e a construção do discurso teológico ambiental cristão. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index .php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2012v10n26p603 10) STOTT, John. A Missão Cristã no Mundo Moderno. Viçosa, MG: Ultimato, 2010. p.17. John Robert Walmsley Stott, CBE (27 de abril de 1921 – 27 de julho de 2011) foi um pastor e teólogo angli-cano britânico, conhecido como um dos grandes nomes mundiais evangélicos. Foi um dos principais autores do pacto de Lausana, em 1974. Em 2005, a revista Time classificou Stott entre as 100 pessoas mais influentes do mundo.
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