Uma perspectiva Bíblica sobre a Ecologia (Pt 2)

Ecologia nas narrativas veterotestamentária

Encontra-se no livro de Deuteronômio algumas passagens relacionadas ao assunto sobre a Ecologia, a começar pela proibição e interdição do desmatamento de árvores frutíferas, conforme consta no capítulo 20, 19-20. Já no capítulo 22, 6- 7, exorta-se um ensinamento sobre como lidar com os pássaros e os ninhos das aves, sobretudo, recomenda-se que ao tomar posse dos filhotes, deve-se deixar em liberdade a mãe-pássaro, para efeito de salvaguardar novas procriações. Verifica-se também, a questão das regras e procedimentos sobre o saneamento básico e a higiene nos acampamentos israelitas são descritas no capítulo 23, 13-15. Com o objetivo de promover uma síntese da análise teológica em associação com os princípios da Ecologia nas narrativas da criação extraídas do livro de Jó, são destacados os seguintes segmentos textuais:

Nos capítulos e versículos 28, 25-26; 38-42; 33-41, conforme o autor do livro de Jó, somente Deus possui a compreensão da sabedoria porque só Ele criou forças misteriosas como o vento, a água, os relâmpagos e os trovões. O livro de Jó também constitui bom material para uma leitura ecológica a partir do questionamento de Jó a Deus sobre sua capacidade de gerenciar a criação, desencadeando uma resposta divina em que se descortina toda a complexidade das relações no espaço da criação e apresenta um Deus que se alegra e cuida da criação “independentemente” da sua importância para os seres humanos.1

Os textos bíblicos do Antigo Testamento demonstram que Deus é o criador supremo de todas as coisas e confiou ao homem toda a responsabilidade pelo cuidado, pelo zelo, pelo manejo consciente e sustentável da obra da criação. O pressuposto da criação como obra de Deus, sob a perspectiva judaico-cristã, perpassa os diversos livros das Sagradas Escrituras. A criação apresentada como realidade teocêntrica, sugere que a criação não existe somente em função do usufruto, benefício e sobrevivência da humanidade, mas para a manifestação da glória de Deus; toda criatura, animada ou inanimada, o louva e o adora (Sl 148; Ap 5,13). Portanto, toda criatura tem seu valor enquanto dom do Criador.

Ecologia nas narrativas neotestamentária

Igualmente, deve-se ressaltar que no Novo Testamento, nos Evangelhos, também no livro de Atos dos Apóstolos ou nas cartas Paulinas, apresenta-se a questão da terra, da água, do trabalho escravo e da necessidade de refazer a vida de maneira significativa procurando estabelecer uma contextualização de paradigmas e posturas ecologicamente corretas, conforme a seguinte exegese do teólogo Carriker, o qual demonstra que a partir do capítulo 8 de Romanos, apresenta que, somente aqueles que são guiados pelo Espírito de Deus são de fato filhos de Deus (v.14). Como filhos, somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo (v.17). O texto bíblico fala de uma herança “gloriosa”, (v.18), mas imediatamente vincula a nossa glória eterna, em contraste com o sofrimento atual, com a sorte de toda criação (v.19 e 25). A “liberdade” e a “glória” futuras dos cristãos estão vinculadas àquelas da criação porque o cuidado da criação é incumbência humana desde o início e, por isso, é inseparável também do destino glorioso dos cristãos. Através da hermenêutica aplicável a de Romanos 8, 17-26, a glória a ser revelada (v. 18) aparecerá quando os filhos de Deus resgatados da condição de pecadores, dignos de condenação, para a condição de santos, aspirantes à salvação, pelos méritos de Cristo, forem revelados em sua nova natureza (v. 19), e a criação também será libertada de seu presente estado de imperfeição e declínio (v. 20, 21).

A revelação dessa glória fará mais do que extinguir o dano e a perda (v. 20) que a ordem criada sofreu em resultado da queda de Adão (Gênesis 3, 17), pois, conforme Reimer, a regeneração de todas as coisas (Apocalipse 21) na ordem criada corresponde à liberdade na glória (v. 17-18) a ser desfrutada pelos filhos de Deus.

A criação pode ser comparada como uma mãe que geme com as dores do parto, pois a criação inteira tem um destino planejado por Deus e deseja ardentemente que seja cumprido, tal como sucede no plano da esperança e da fé, aos próprios crentes (v. 23-26). Todas as religiões, em particular as cristãs têm a incumbência de desencadear a libertação da criação. A renovação do mundo é uma parte integrante da esperança na tradição judaico-cristã e a criação, que está sofrendo, tem a expectativa de que o poder de Cristo operante nas ações dos fiéis, membros das igrejas cristãs, a liberte do sofrimento e das amarras da opressão e do pecado que gera degradação ambiental, destruição da Casa Comum. Isso remete para a noção de nova criação e adquire significado antropológico e expande o problema à sua dimensão cosmológica. A esperança de cada cristão repousa na fidelidade que emana inesgotável da parte de Deus Pai que os amou tanto que lhes deu o Seu próprio Filho. Esse grito e esse gemido de dor do mundo (Romanos 8, 22), são causadas pelas constantes agressões no âmago dos ecossistemas que sofre este planeta. Tal destruição da natureza, da qual é gerada a crise ecológica, intensificou-se com celeridade à medida em que a humanidade expandiu o movimento de industrialização, que com o passar do tempo, sofisticou-se, não raro sem o planejamento urbano ambiental e paisagístico que deveria ter ocorrido paralelamente, pois tal dissociação foi devida ao apressamento da produção de modo a atender a demanda do consumo da humanidade.

Conforme Carriker, ao comparar a teologia Paulina com o que ele mesmo denomina a teologia prática da “redenção” da criação, identifica assim a ética ecológica cristã com essa teologia e ressalta que a criação aguarda com grande expectativa para que a própria regeneração seja viabilizada a manifestação cidadã, pastoral e política dos filhos de Deus. Com isso, Paulo pretende exortar que os membros da Igreja se envolvam não somente com a preservação do meio ambientes, mas que também auxiliem a sociedade em sua luta de transformação das realidades sociais não condizentes com a ética, a moral e princípios de vida e conduta individual e social cristãos, o que deve afetar também as condições de salubridade e de preservação dos lugares em que as pessoas moram e sobrevivem. Pode-se pensar sobre a instauração de uma possível forma de ecologia humana. Segundo Schaeffer, Paulo deixa expresso que quando nossos corpos, “corpos humanos”, forem levantados dentre os mortos, então a natureza também será redimida, para restaurar a gloriosa liberdade dos filhos de Deus, porque o sangue do Cordeiro Redentor, Jesus Cristo, remirá o homem e a natureza na sua integridade.2

Para Moltmann, a criação, mantém-se num sistema aberto ao futuro, uma vez que, historicamente, terá seu fim na consumação dos tempos, portanto, a teologia tem que falar da criação não só no começo, mas, também, no seu processo histórico-salvífico, indo até o final dos tempos, isto é, abranger o processo total da criação de Deus que compreende o criar inicial, o criar histórico, e o criar escatológico. A criação original engendra a história da salvação e ambas conduzem para o reino da glória3. O autor do Apocalipse anuncia que esta esperança já começou a se realizar: “Eu vi um novo céu e uma nova terra” (Apocalipse 21, 1).

Ecologia no Apocalipse

Para Reimer, o livro de Apocalipse apresenta o final da criação de Deus como um evento único e universal, no qual novos céus e novas terras serão criados, conforme suas narrativas que tratam da destruição e da restauração. Enquanto o livro do Gênesis aponta para a expectativa da salvação de Deus, segundo o princípio de que Deus pode recriar todas as coisas, o livro do Apocalipse, nos capítulos 21 e 22, assegura e profetiza que de fato todas as coisas serão recriadas. A partir dessas posturas pode-se concluir que quando estão sob a pressão de contexto sócio histórico hostil, as comunidades cristãs reinterpretam tradições profético apocalípticas dentro de um horizonte histórico salvífico. Verifica-se então que o contexto retoma o quadro de conflitos no qual viviam as Igrejas da Ásia Menor, concomitantemente à época de produção dos textos do Apocalipse, as quais enfrentavam uma situação de opressão política, de exploração econômica e de discriminação religiosa, o qual poderia ser retratado como “o ressurgir do caos original”.

Os textos apocalípticos releem e reescrevem a tradição da criação na expectativa de novos céus e de nova terra. Hoje em dia, a Igreja ainda aguarda o cumprimento das narrativas proféticas do Apocalipse considerando que viu serem cumpridas as narrativas mosaicas, históricas, poéticas, sapienciais, proféticas e evangelísticas da Sagrada Escritura durante a história da humanidade no decurso dos séculos, antes e depois dos séculos. A perícope “Então vi novos céus e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham passado; e o mar já não existia” contém uma metáfora apocalíptica referente aos mesmos céus e terra renovados, em comparação à transformação que Cristo opera em homens e mulheres, não física, mas interiormente. Conforme os trechos da 2 Coríntios, no capítulo 5, 17 e em Gálatas 6, 15, é possível verificar uma diferença entre “nova criação” e “novas criaturas”, ou seja, tornam-se novas criaturas as pessoas que aceitam, acolhem e vivem os ensinamentos de Jesus Cristo, portanto não é preciso mudar a aparência exterior para ser nova criatura, porque uma vez configurados em Cristo as pessoas serão recriadas e renovadas, sem precisar alterar o corpo físico. A ideia da renovação e restauração se aplica a toda à criação. Para participarem da renovação da criação, Deus através da mensagem dos evangelhos chama os cristãos para evangelizar e chama os cristãos para fazer a sua parte na renovação da criação, mas não deixa de ter a autoria sobre o novo céu e a nova terra. Através da salvação trazida por Jesus, a própria Criação será redimida, por isso o povo de Deus, a Igreja, tem relevante papel colaborativo na redenção da criação.

De acordo com o pensamento de Carriker e de Schaeffer, a missiologia deve levar a sério o papel criador de Deus, que age dentro da história humana, pois será a partir do resgate da noção do Deus criador que a humanidade compreenderá o seu destino na história, dentro dum mundo ainda em construção por Deus. Portanto, a visão apocalíptica da criação pressupõe, não apenas o seu julgamento (2 Pedro 3, 1-12), mas também e, por último, a sua renovação (2 Pedro 3, 13), ou seja, Deus estabelecerá um novo céu e nova terra, que serão caracterizados pela justiça, paz e compaixão por meio do Redentor Jesus.

Analisando a salvação de toda a criação, pelo viés da soteriologia (a salvação do homem), verifica-se que ela não separa os seres humanos do resto do mundo, mas sabe que são solidários de todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus. (Cl 1, 20). A esperança da salvação estende-se a toda a criação que, no fim dos tempos, será libertada da corrupção (Rm 8, 20-21) e toda renovada (2 Pedro 3, 13; Apocalipse 21, 1). Os homens não têm futuro independente dela4.

Com o pecado Deus expulsou o homem do jardim do Édem, com a redenção Deus recebe de volta o homem no jardim. Na visão final de João, o jardim se tornou uma praça da Nova Jerusalém, onde a árvore da vida está no meio e suas folhas curam os povos (Apocalipse 21, 1-5). Jesus é a porta de entrada para o jardim ou a praça da nova cidade. Portanto, existe uma expectativa por parte dos cristãos, da existência de novos céus e nova terra, neste sentido, sendo renovados por Deus por uma humanidade regenerada em seus valores morais e princípios éticos. A criação passa pelo processo de destruição para culminar na sua restauração.

Notas
1) LIMEIRA, Amelia Ferreira Martins; ANDRADE, Maristela Oliveira de. Diálogo entre a tradição bíblica e a construção do discurso teológico ambiental cristão. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index
.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2012v10n26p603
2) LIMEIRA, Amelia Ferreira Martins; ANDRADE, Maristela Oliveira de. Diálogo entre a tradição bíblica e a construção do discurso teológico ambiental cristão. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index
.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2012v10n26p603
3) MOLTMANN, Jurgen. (Tradução) Haroldo Reimer, Ivoni Richter Reimer. Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. p. 111.
4) LACOSTE, Jean-Yves (Coord.): MENESES, Paul (tradutor): Dicionário crítico de teologia; São Paulo: Paulinas / Edições Loyola, 2004.

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