Escatologia: O que é a Morte?

Falar antes de vida

Antes propriamente de falar da morte, é importante falar da vida. E falar de vida é, em algum momento, se questionar sobre: quem sou eu? De onde eu vim? Pra onde vou? Estas perguntas constituintes do ser humano precisam ser respondidas na nossa peregrinação nesta terra, durante o processo de descoberta de Deus.

Talvez se deva antes perguntar: “Por que eu fui criado? Por que eu existo?” Já se questionou o porquê Deus te criou? Por que afinal Deus criou o ser humano?

A teologia e a filosofia foram a fundo nessas questões, chegando até em dúvidas irrespondíveis, como:

“Se no princípio Deus fez o céu e a terra, então o que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? Que foi que fez Deus mudar repentinamente de ideia e fazer o que nunca tinha feito antes nos tempos eternos?”

Santo Agostinho

O próprio Santo Agostinho, ironicamente, vai responder que Deus estava preparando o inferno para quem fizesse tais perguntas. No entanto, confessa: “aquilo que não sei, não sei.” [Confissões, XI, 10 e 12]. Enfim, são perguntas que guardamos conosco para fazermos pessoalmente para Deus.

Enquanto esse nosso encontro não acontece [e eu particularmente nem com pressa estou], podemos nos conformar com o que a teologia, de forma poética, ensina: Deus, na sua comunhão trinitária (família), transbordava de amor que não podia ser contido nele mesmo, por isso criou tudo o que existe, tendo o homem como sua obra prima. Existimos, portanto, porque o amor de Deus não cabia em si mesmo e foi derramado em toda a sua criação.

Agora que já sabemos porque existimos, podemos facilmente chegar na compreensão daquelas três primeiras perguntas:

  1. Quem sou eu?
    R: Criatura amada e querida por Deus.
  2. De onde eu vim?
    R: De Deus.
  3. Para onde vou?
    R: Para Deus.

Diferente dos anjos, que são criaturas que não passam pela experiência corruptível, a vida humana acontece em primeiro lugar aqui nesta terra.

E nesta vida, corruptível e limitada, precisamos necessariamente passar pelo maior enigma da condição humana: a morte. Esse assunto ainda soa como um tabu, um tema envolvido por incertezas. Mas hoje, mais do que nunca, é preciso falar sobre a morte, especialmente porque, com a pandemia da Covid-19, a morte nunca foi tão próxima a esta geração. Por isso, avancemos em nossa partilha!

A saber: o conteúdo deste artigo reflete é fé católica; uma teologia elaborada com base na Sagrada Escritura, na Tradição e no Magistério da Igreja, e que certamente ultrapassa a nossa imaginação e entendimento.

A origem da morte

A morte é um processo natural da nossa condição; mas para a fé ela é na verdade o “salário do pecado” (Rm 6,23). Isso porque Deus não havia planejado a morte como condição desta vida.

No princípio, Deus quis que o homem – embora de natureza mortal – pudesse participar de uma realidade ilimitada, sem a necessidade de um fim. Mas por conta do nosso pecado [original] – a vontade de sermos deuses de nós mesmos –, recebemos consequentemente a condição temporal, limitada, para esta vida: “Você comerá seu pão com o suor do rosto, até que volte para a terra, pois dela foi tirado. Você é pó, e ao pó voltará.” Gn 3,19.

Por essa razão, a morte foi introduzida no mundo por causa do pecado, obtendo assim uma aparente vitória passageira sobre o homem, mas não uma vitória definitiva.

No entendimento geral, a morte é simplesmente o fim da vida biológica. Contudo, ainda é bastante difundida a ideia de que, com a morte, tudo acaba. E se tudo vai acabar, então o que vale é o agora: a saúde, a beleza, o gozar. A morte aparece na sociedade como a grande inimiga, a “indesejada”, a derrota final do ser humano.

A fim de oferecer uma esperança verdadeira a todos que temem a obscuridade da morte é que devemos falar mais sobre ela – a nossa irmã morte, como dizia São Francisco de Assis.

A morte e seus desdobramentos

Em curtas palavras, a morte não é o fim [ponto]. Claro que essa afirmação não se baseia na lógica de uma matemática bem resolvida, ela é endossada pela fé na encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Após a morte, o corpo, já cadáver, se degrada, enquanto a alma se separa do corpo e sobrevive a ele. De fato, a alma é feita de uma substância espiritual, irredutível à matéria perecível. [CIC 997]

Com a morte – separação da alma e do corpo –, o corpo cai na corrupção, ao passo que a alma, que é imortal, se encaminha para o juízo de Deus e espera unir-se novamente ao corpo quando ele ressurgir transformado na volta do Senhor. Essa é a doutrina comum da Igreja: com a morte, alma e corpo [corruptível] se separam, e vão de novo se reencontrar [alma + corpo incorruptível] no fim dos tempos [na ressurreição da carne].

Estado intermédio

Esse tempo entre “alma separada” [visão beatifica e felicidade parcial] e fim dos tempos [ressurreição da carne, felicidade plena] é conhecida como “tempo intermediário” ou “estado intermédio”. Um tempo de espera que também é acreditado pela Igreja Ortodoxa e pelo Islã.

Por outro lado, enquanto a alma permanece separada do corpo, ela experimenta em estado antinatural. A alma foi feita por Deus para habitar um corpo, e sem essa sua condição intrínseca, ela não se plenifica. Por isso mesmo está sempre “ansiosa” por se reunir ao corpo. “A imortalidade da alma parece exigir a ressurreição do corpo”, dizia Santo Tomás de Aquino. Se ela é separável do corpo, é unicamente por causa do pecado, mas, mesmo separada, ela mantém um “apetite natural de administrar um corpo”, assim exprimia Santo Agostinho.

Três interpretações sobre a morte

Além dessa interpretação da morte da qual a Igreja ensina [unidualidade], existe ainda duas outras bastante estudadas por outros grupos: o dualismo espiritualista e o monismo. Abaixo, um resumo das três posições acerca da morte em forma de esquema.

IDEIA DE SER HUMANOIDEIA DE MORTE
1. Dualismo espiritualista: corpo e alma como elos justapostos; corpo como prisão (Posição extrema I)Morte = é libertação definitiva da alma em relação ao corpo, que desaparece para sempre (Doutrina herética, antiga)
2. Monismo: corpo e alma como elos coincidentes (Posição extrema II)Morte = é passagem do homem todo (corpo+alma), do tempo para a eternidade (Doutrina heterodoxa, recente)
3. Unidualidade: Corpo e alma como elos entrelaçados (Posição média superior)Morte = é separação alma–corpo, por causa do pecado, e sua reunião definitiva no final dos tempos. Doutrina ortodoxa, tradicional)  

Três aproximações da morte

Por fim, podemos abordar a morte a partir de três ângulos, todos eles verdadeiros, mas crescendo em profundidade: a morte do ponto de vista biológico, a morte do ponto de vista humano e a morte do ponto de vista espiritual.

  1. Biológico: Aqui a morte aparece como um fenômeno “natural”. É a perspectiva do biólogo e do médico. Enquanto somos “natureza”, somos mortais. Uma conditio sine qua non do ser humano.
  2. Humano: Todos partilhamos de um sentimento íntimo de imortalidade. Como se mesmo com a morte não tivéssemos um fim biológico. Mas quando a morte chega, ao próximo mais próximo, então é sentida como algo não natural, suscitando medo e até revolta. Buda dizia: “O homem comum pensa com indiferença na morte de um estranho, com tristeza na morte de um parente e com horror na morte própria”
  3. Espiritual: Considerada a pior morte, é aquela que consiste no afastamento de Deus. A morte da alma. O livro do Apocalipse a chama de “segunda morte”. Para o cristão, viver ou morrer é, no fundo, indiferente. O importante é estar na graça, ou seja, em comunhão com Deus, pois é isso viver verdadeiramente.

Esperança sempre

O certo é que só existe vida: esta vida, neste mundo, aquela vida, no outro, mas sempre vida. Em si, a morte não é nada. Ela não existe como fim, todavia é a única ponte que nos leva ao outro lado, ao lado da verdadeira luz. Talvez agora faça maior sentido a frase de Santa Teresinha, quando esta diz: “Eu não morro, entro na Vida.”

No último milésimo de segundo de nossa existência, podemos ainda fazer um último “juízo” sobre nossa vida inteira e então optar ou não por Deus e por seu amor. Esse último momento possível de salvação não leva em conta a vida pregressa do indivíduo [não neste momento], é na verdade mais um ato de amor de Deus, que respeita, mesmo aqui, a nossa liberdade de escolha entre céu e inferno. No entanto – e infelizmente – quem preferiu a morte em vida, dificilmente escolherá a vida na morte.

De qualquer maneira, a morte não é o fim! A vida continua, sempre. Na passagem bíblica abaixo mais um alento. Coragem!

Deus criou o homem para a imortalidade e o fez à imagem de sua própria natureza; foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e experimentam-na os que a ele pertencem. A vida dos justos está nas mãos de Deus, e nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos parecem ter morrido; sua saída do mundo foi considerada uma desgraça, e sua partida do meio de nós, uma destruição; mas eles estão em paz. Aos olhos dos homens parecem ter sido castigados, mas sua esperança é cheia de imortalidade; tendo sofrido leves correções, serão cumulados de grandes bens, porque Deus os pôs à prova e os achou dignos de si. Provou-os como se prova o ouro no fogo e aceitou-os como ofertas de holocausto; Os que nele confiam compreenderão a verdade, e os que perseveram no amor ficarão junto dele, porque a graça e a misericórdia são para seus eleitos.

Sabedoria 2,23-3,9

Esse artigo foi tema de uma formação que foi gravada em vídeo e está disponível no canal do Areópago. Vide abaixo.


Referências
CATECISMO da Igreja Católica (CIC). São Paulo: Loyola, 2000.
BOFF, Clodovis. Escatologia: Breve tratado teológico-pastoral. São Paulo: Ave-Maria, 2012.
AGOSTINHO, S. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus: 1984.

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2 respostas em “Escatologia: O que é a Morte?”

Um bom início de encontro, esse sobre a morte que, embora seja o maior exemplo de verdade que existe, muitos não dão a devida atenção a ela. E porquê não se dão? Por não estarem vivendo e se preparando de vidamente para essa passagem da ponte que, dependendo do percurso até a cabeceira do lado de cá, encontrará do outro lado luz ou trevas. Postei um texto no Facebook quando da passagem de meu pai, há um ano e seis meses, no qual faço um resumo com base nós últimos dias que meu pai passou na UTI do hospital. Algumas pessoas que também tiveram passagem de entes queridos, nesse período de pandemia, disseram que sentiram-se confortadas e conformadas pela passagem de seus entes, depois que leram o que escrevi. Em suma, “a morte é um presente ofertado por Deus aos que tiverem o privilégio da vida”. No entanto, a assimilação dessa premissa só é possível através da fé, ou seja, por aqueles que seguem O Caminho da Verdade que dá sentido à Vida, que é o próprio caminho daquele que disse que é O Caminho, A Verdade e A Vida. Abraços Solidários e Pazamorefesperança!

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