Kyrie, eleison: história e espiritualidade na liturgia

Para os cristãos católicos, a missa dominical é um dos momentos mais importantes da semana. Nela, cada fiel tem a oportunidade de dedicar um pequeno espaço do próprio tempo exclusivamente para ter um encontro pessoal com o Criador e celebrar “a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n’Ele da primeira criação e o início da «nova criação»” (JOÃO PAULO II, n. 1).

Um dos “instrumentos” que nos ajudam a ter esse encontro é a liturgia da missa. Mas como aproveitar esse “instrumento”, com todos os benefícios que ele pode oferecer, sem conhecer bem a missa, com seus ritos, símbolos e significados tão profundos? Participar da missa, sem compreender todos esses elementos, seria como assistir a um filme em chinês e sem legenda (PARO, 2019. p. 5). Ou seja, apesar de ver a imagem, a pessoa entende praticamente nada do que está acontecendo.

Por isso, como afirma o teólogo africano cardeal Francis Arinze,“a formação litúrgica adequada é necessária para todos. E tal formação não pode ser adquirida de modo definitivo. Deve se estender por toda a nossa vida” (ARINZE, 2014, p. 129).

Essa missão, de aprofundar cada vez mais no conhecimento da liturgia da missa, precisa ser assumida por cada católico com seriedade, pois, com isso, a própria vida de oração tem muito a se enriquecer. Além disso, é uma excelente maneira de amadurecer a própria fé. Afinal, como ensina Santo Agostinho, “ninguém pode amar o que não conhece” (AGOSTINHO, 1994, p. 229). Quanto mais se conhece a liturgia e seus benefícios, mais se ama. E quanto mais se ama, mais se deseja conhecer e aproveitar todas as riquezas que a liturgia pode oferecer.

Diante dessas motivações, apresentamos uma reflexão a respeito de uma parte do rito da missa que, algumas vezes, passa quase despercebida. E, infelizmente, em muitos lugares não é realmente valorizada diante do conteúdo e da profundidade que tem: o Kyrie, eleison (expressão em grego traduzida por “Senhor, tende piedade de nós”).

O Kyrie, como é chamado, pode fazer parte do Ato Penitencial ou ser rezado logo em seguida (IGRM, n. 52). Independente da forma, ele não costuma durar mais do que poucos minutos, o que não diminui em nada os significados que carrega em si.

A história do Kyrie, eleison

Muitas vezes, temos a falsa impressão de que a liturgia da missa caiu pronta do céu, ou que foi revelada diretamente por um anjo a alguém. Porém, a realidade é diferente. Por isso, para compreendermos bem o significado de muitas das partes do rito da missa, precisamos, antes, olhar para a história de cada uma delas.

Se observarmos as palavras de maneira independente, já no Antigo Testamento encontramos Kyrios (Senhor) e eleison (tende piedade) sendo dirigidas ao Deus de Israel, principalmente no livro dos Salmos, mas sempre separadamente. No Novo Testamento, os primeiros cristãos já se referiam a Jesus como sendo o Senhor (Kyrios) do Universo (ASSUNÇÃO, 2016, p. 90).

No início, essa frase, que durante o rito da missa é repetida sem se prestar muita atenção, era utilizada pelos pagãos quando se dirigiam ao imperador romano ou a alguma outra divindade (AUGÉ, 1998, p. 150). Na antiguidade, essa frase não era utilizada como uma oração, mas, sobretudo, como uma homenagem a quem era dirigida (ASSUNÇÃO, 2016, p. 90).

Na liturgia cristã, de acordo com os registros históricos, a expressão Kyrie, eleison só foi utilizada a partir do século IV, em Jerusalém, durante as orações, quando eram feitas diversas súplicas (ladainhas) e o povo respondia com o Kyrie (AUGÉ, 1998, p. 151). Após diversas mudanças, o Kyrie se manteve na liturgia católica, sendo a única parte importante em idioma grego (BERGMAN, 2015, p. 8).

A espiritualidade do Kyrie, eleison

Todavia, conhecer a história, ainda que seja admirável, não é suficiente para nos ajudar a vivenciar melhor esse momento da missa. É muito importante, então, também conhecer o conteúdo espiritual que há nessa frase.

Nos primeiros séculos, os cristãos foram duramente perseguidos pelas autoridades romanas. Um dos motivos das perseguições era o fato de os cristãos não participarem do culto do Império (CORBELLINI, 2019, p. 9) dirigido ao imperador e aos deuses romanos. Ou Seja, enquanto o povo homenageava as divindades e o próprio imperador (que era considerado um deus), os cristãos se dirigiam unicamente ao Deus verdadeiro e se recusavam a oferecer sacrifícios, queimar incensos e adorar as divindades pagãs. O Senhor (Kyrios) dos cristãos era outro e isso custava caro, inclusive a própria vida. Por isso, hoje, rezar essa frase deve lembrar a cada fiel o quanto ela custou para tantos homens e mulheres que ousaram desafiar o poder vigente para dar testemunho de sua fé ao professar a crença em Jesus como único Senhor e Salvador de suas vidas.

Outro aspecto espiritual, se refere a quem se dirige quando se reza o Kyrie. Durante a missa, toda oração é dirigida à Trindade (oramos ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo) e isso se reflete no fato de termos três invocações (Kyrie, eleison!, Christe, eleison!, Kyrie, eleison!).

No entanto, conforme explica o teólogo jesuíta Pe. Joseph A. Jungmann, apesar de haver essa lembrança simbólica da Trindade, todo o conjunto é direcionado a Jesus (o Filho, segunda pessoa da Trindade). Afinal, “[…] na realidade, os grupos de Kyrie também são direcionados a Cristo. Esse é o uso cristão paulino e primitivo, onde Kyrios; é geralmente aplicado a Cristo. E corresponde a toda a tradição em que o próprio Kyrie, eleison surgiu” (JUNGMANN, [s.a.], p. 341) (Tradução nossa.).

Durante a liturgia, “quando clamamos em alta voz Kyrie!, Christe!, estamos gritando para o mesmo destinatário, para o único Senhor e Cristo: Jesus” (ASSUNÇÃO, 2016, p. 91).

Na liturgia, aquilo que se reza (Lex orandi) está profundamente ligado a aquilo em que se acredita (Lex credendi), ou seja, oração e não se separam. Sendo assim, cada vez que alguém reza ou canta o Kyrie, está proclamando publicamente em qual Jesus acredita.
Quando se compreende bem essa dinâmica (presente em toda a liturgia da Igreja), se começa a prestar mais atenção e a valorizar muito mais todo o conteúdo de fé presente em cada parte da missa.

Mas, afinal, Jesus é Senhor ou Cristo?

A resposta é “os dois”, ou seja, Jesus é tanto Senhor quanto Cristo. Mas qual o significado de cada afirmação?

Dizer que Jesus é “Senhor” significa professar a fé em sua divindade (SILANES, 1988, p. 1009), ou seja, que ele é Deus e não um homem qualquer que andou pelo mundo fazendo o bem.

Já afirmar que Jesus é “Cristo” significa professar a fé em sua missão enquanto verdadeiro Messias (= Ungido, Rei) do povo de Israel (SILANES, 1988, p. 1009) e daqueles que firmaram a nova Aliança em seu sangue redentor que foi derramado na cruz.

Kyrie: esperança de “cura”

Por fim, além de todo o conteúdo de fé presente no Kyrie, existe ainda a própria disposição que ele deve inspirar em cada pessoa que o reza. O papa emérito Bento XVI explica que a chave para mergulharmos nesse mistério é a figura do cego Bartimeu (Marcos 10,46-52) (cf. ASSUNÇÃO, 2016, p. 91). Para aquele homem, caído pelo caminho e necessitado da cura, o encontro com Jesus é algo definitivo e nada simples, pois

[…] a condição de cegueira tem um significado denso nos Evangelhos. Representa o homem que tem necessidade da luz de Deus – a luz da fé – para conhecer verdadeiramente a realidade e caminhar pela estrada da vida. Condição essencial é reconhecer-se cego, necessitado desta luz; caso contrário, permanece-se cego para sempre (cf. Jo 9,39-41). […] Bartimeu representa o homem que reconhece o seu mal, e grita ao Senhor com a confiança de ser curado. A sua imploração, simples e sincera, é exemplar […] No encontro com Cristo, vivido com fé, Bartimeu readquire a luz que havia perdido e, com ela, a plenitude da sua própria dignidade: põe-se de pé e retoma o caminho, que desde então tem um guia, Jesus, e uma estrada, a mesma que Jesus percorre.

Bento XVI, 2012

Bartimeu simboliza cada um de nós que, como ele, estamos cegos por nossos erros, egoísmos, indiferenças… e tantas outras coisas que nos impedem de ver o mundo com os olhos do Criador. Mas ele não se dá por vencido, ele grita, cheio de esperança para o único que poderia devolver o que ele havia perdido durante a vida. Ele pede confiante, cheio de esperança, de que essa cura virá. Por isso, a cada liturgia, se pede insistentemente “Senhor, tende piedade de nós”. E isso significa pedir que a luz da fé cure as cegueiras para que se possa levantar e, como Bartimeu, seguir Jesus pelo caminho (Marcos 10,52).

Referencias
AGOSTINHO. A Trindade. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1994. (Patrística)
ARINZE, Francis. Celebrando a Santa Eucaristia. Campinas: Ecclesiae, 2014.
ASSUNÇÃO, Rudy Albino de. O Sacrifício da Palavra: a liturgia da missa segundo Bento XVI. Campinas: Ecclesiae, 2016.
AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. 2. ed. São Paulo: Ave-Maria, 1998.
BENTO XVI. Homilia da santa missa para a conclusão do Sínodo dos Bispos, 28 out. 2012. Disponível em: www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/homilies/2012/documents/hf_ben-xvi_hom_20121028_conclusione-sinodo.html. Acesso em: 30 jun. 2020
BERGMAN, Lisa. Tesouro da Tradição: Guia da Missa Tridentina. Campinas: Ecclesiae, 2015.
CNBB. Bíblia Sagrada. 2. ed. Brasília: CNBB, 2019.
CNBB. Instrução Geral do Missal Romano e Instrução ao Lecionário. 3. ed. Brasília: Edições CNBB, 2011.
CORBELLINI, Vital. O martírio na Igreja antiga. Brasília: Edições CNBB, 2019.
JOÃO PAULO II. Dies Domini: sobre a santificação do domingo. Disponível em: www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_letters/1998/documents/hf_jp-ii_apl_05071998_dies-domini.html. Acesso em: 2 jul. 2020.
JUNGMANN, Joseph A. The Mass of the Roman Rite: its origins and development (Missarum Sollemnia). [s.l.]: [s.e.], [s.a.].
PARO, Thiago Faccini. Celebrar e iniciar ao mistério: a liturgia. Brasília: Edições CNBB, 2019.
SILANES, Nereo. (dir.). Dicionário teológico: o Deus cristão. São Paulo: Paulus, 1988.

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6 respostas em “Kyrie, eleison: história e espiritualidade na liturgia”

Excelente informação!!!
Conhecer e aprender, ajudo o homem a crescer e viver sem medo!!
Um do ato de Amor nos fará conhecer melhor Jesus “Santa Terezinha do Menino Jesus”

Ótimo texto!!! Além de acessível é muito esclarecedor, traz “luz” à nossa, por vezes, automática “cegueira” litúrgica. Aquilo que se reza sempre deve estar ligado àquilo que se acredita!

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