História da Igreja (Pt 2) Período Medieval

Aproximadamente 1.000 anos é o período que se entende por Idade Média ou Medieval. Há muitas variações nas datas que querem definir o início e o fim desta época. O estudo que produzimos vai se utilizar da classificação realizada pelo historiador do século XVII, Jorge Horn, que enquadra a história antiga com o início do calendário cristão até o ano de 476 (queda do Império Romano no Ocidente) e Idade Média de 476 até 1453 (queda do Império Romano no Oriente).

Não foram poucas as vezes em que a história retratada neste período apresentou uma temática mais negativa que positiva. A Idade Média é, por muitos, considerada uma “era das trevas”. Se você que nos lê espera encontrar o endosso deste tipo de afirmação, então é provável que iremos lhe decepcionar. O Areópago quer apresentar a história que a Igreja percorreu – no desafio de resumir um milênio – com fatos verdadeiramente relevantes deste período, contando o que de nefasto marcou a época, mas igualmente apresentando os maravilhosos acontecimentos de Deus na humanidade.

Feita a devida apresentação, podemos enfim adentrar nos acontecimentos que escolhemos como de grande relevância e que, sem dúvida, vai desmistificar muitos conceitos antigos.

Sejam bem-vindos à História da Igreja (Pt 2) Período Medieval.
(Ah, tem também um vídeo bem legal pra você sobre este artigo, disponível ao final).


Enfraquecimento do Império Romano

A República Romana (início em 509 a.C.), mais tarde Império Romano (a partir de 27 a.C.), expandiu o seu domínio por vastas regiões durante a sua existência. Para isso contou com um exército cada vez maior: soldados preparados para a guerra, com armas de grande poder e com suprimentos necessários para as conquistas.

Para manter um exército é preciso investir pesado em todo tipo de guarnição, tornando os homens preparados, motivados, saudáveis e disponíveis. Isso foi garantido durante as conquistas do Império. Mas desde o primeiro século da era cristã não houve grandes empreitadas. Na verdade, muita coisa mudou a partir do início do cristianismo. A mão de obra escravagista também estava em grande declínio por conta da defesa da igualdade entre os povos defendida pelos cristãos. Obviamente não se pode culpar a novidade cristã como a queda de um império tão poderoso, mas foi assim, lentamente, que o Império Romano começou a perder sua força militar, governamental e financeira.

Com esse enfraquecimento geral, as fronteiras do Império deixaram de ter a segurança e controle militar de antigamente. O temor das invasões pelos povos vizinhos (germânicos, francos, vândalos, visigodos, ostrogodos, anglos, saxões, jutos, hérulos, burgúndios, lombardos e vários outros) se tornou uma ameaça iminente.

Para tentar sanar sobretudo a crise financeira, o imperador Diocleciano (286) dividiu o Império em duas partes: o Ocidente, com capital em Roma, e o Oriente, com capital em Bizâncio (futura Constantinopla – hoje Istambul, Turquia). Já no início do século IV, o imperador Constantino reunificou o Império. Mas como o risco de invasão era maior na parte ocidental, Constantino transferiu a capital para Bizâncio, mais protegida e, na época, mais rica. No final do século (395), o imperador Teodósio voltou atrás e estabeleceu a divisão definitiva: Império Romano do Ocidente, com capital em Roma, e Império Romano do Oriente – também chamado de Império Bizantino – com capital em Constantinopla.

Foi também nessa época, entre os séculos IV e V, que as cinco primeiras Igrejas apostólicas receberam o título de patriarcados, ou seja, seus bispos eram patriarcas e tinham primazia sobre as outras comunidades cristãs. Os cinco patriarcados eram Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Na pentarquia (cinco governos, em grego), o Bispo de Roma, sucessor de Pedro, tinha o primado de honra entre os demais patriarcas. Mais tarde, com exceção de Roma, os demais patriarcados tornar-se-ão parte do que conhecemos como Igreja Ortodoxa (oriental). Veremos isso logo mais.

Ondas migratórias

A história muda quando as populações se colocam em movimento. E foi isso que aconteceu entre o século IV e V, despontando na grande onda migratória dos “bárbaros” pela Europa: os hunos (povo da Sibéria) promovem grandes invasões a vários territórios; os visigodos (povo da Germânia) fogem dos hunos e se refugiam no Império Romano (376); Valente, o imperador, tenta impedi-los, mas acaba sendo vencido na famosa batalha de Adrianópolis. E assim os povos vão se espalhando, fragmentando cada vez mais o Império Romano no Ocidente, já enfraquecido, até o seu fim.

“A Igreja acompanhou todos esses movimentos, ora agarrando-se ao passado romano em que havia surgido, ora lançando-se nos braços de um futuro inevitável; de qualquer modo, ela foi se transformando de acordo com as exigências do presente histórico, e pôde assim manter o passo e ingressar em plena forma no segundo milênio.”

PIERINI, 1998, p. 39

Toda essa movimentação populacional transformou as duas partes do velho Império Romano: no ocidente, a organização social romana perdia espaço para a germânica, ou seja, da realidade publica à privada, do burocrático ao feudal, da autoridade funcional à autoridade dominadora; no oriente ocorreu o contrário, um maior apego aos valores romanos antigos e um cesaropapismo[1] mais rígido e rigoroso.

O nosso estudo traz um foco maior nos acontecimentos da Igreja romana, do Ocidente, onde ela vai se adaptar ao sistema feudal, sobretudo a partir da conversão dos bárbaros ao catolicismo. E foram os francos a primeira tribo bárbara a aderir ao catolicismo. Isso se deu por meio da conversão do seu rei, Clóvis – que teve um casamento arranjado pelos bispos católicos com ninguém menos que Santa Clotilde. É verdade que outras tribos bárbaras já haviam assumido alguma vertente do cristianismo, como os vândalos, mas esses foram convertidos ao arianismo (heresia que estudamos na História da Igreja Antiga). Os francos, por sua vez, graças as pregações de São Remígio, assumiram a Fé na Trindade. Eles foram os primeiros a fundir os interesses estatais e eclesiásticos, dando assim origem as chamadas “Igrejas próprias, ou privadas”, em outras palavras, paróquias, dioceses, abadias etc. Começa então a percepção e/ou necessidade da criação de um “Estado Pontifício” para gerir todas essas concessões feudais.

Carlos Magno

Com o passar do tempo os francos tornam-se grandes aliados da Igreja, seja influenciando outras tribos a aderirem à Fé, seja defendendo os interesses eclesiásticos. Portanto, a relação entre eles e a Igreja era bastante estratégica e, por vezes, problemática. De qualquer maneira, o governo dos francos era de interesse do alto clero.

Em determinado momento o reino franco passou para as mãos de reis indolentes, mais preocupados com festas do que com a condução do reino. Tais monarcas se valiam muito mais pelo fato de serem descendentes de Clóvis do que na competência e na capacidade de serem reis de fato. Foi então que recaiu aos mordomos do palácio a tarefa de governar o reino enquanto os reis festejavam. A situação durou até que um desses mordomos, Pepino o Breve, perguntou ao Papa Zacarias se já não estava na hora do rei de fato se tornar também rei de Direito. O Papa concordou e o último rei merovíngio[2] foi deposto para que Pepino fosse coroado rei. Será sob este reinado de Pepino que nasce o Estado Pontifício e a dinastia carolíngia. Porém, será Carlos, filho e sucessor de Pepino, que se tornará o modelo do monarca cristão, seu nome se torna lendário e os seus feitos garantem a ele a alcunha de “Magno” (Grande): conquista territórios, defende a Igreja, converte os pagãos, patrocina um renascimento cultural, luta contra vikings e revoltosos.

Carlos Magno foi uma poderosa personalidade de sua época, uma espécie de gênio estratégico. Durante trinta anos ele construiu um novo império, expandindo as conquistas territoriais e “cristianizando” os povos vencidos. Todo súdito do imperador devia ser cristão. Carlos Magno se considerava representante de Deus na terra e seu desejo era instaurar a Cidade de Deus sonhada por Santo Agostinho. No Natal de 800 acontece, enfim, a coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III, como imperador dos romanos. E se antes já era confusa a separação do temporal com o espiritual, com Carlos Magno estas duas realidades serão cada vez mais sobrepostas. Tanto o Papa como o Imperador tornaram-se, na prática, vassalos um do outro, garantindo assim a defesa e a promoção da cristandade (união entre estado e Igreja).  

Contrário a esse jogo de poder, se levanta um movimento que luta pela “liberdade da Igreja” dos vínculos feudais e dos abusos frequentes. Isso se deu a partir do século X, dentro do ambiente monástico da Abadia de Cluny.

O Cisma do Oriente (Grande Cisma)

Paralelo a tudo o que acontecia na parte ocidental, a Igreja oriental percorria o seu próprio caminho. Ora na mesma direção, ora em direção oposta. Isso fez com que cada parte da Igreja incorporasse características próprias e distintas entre elas, fazendo que a distância entre Constantinopla (capital oriental) e Roma (capital ocidental) fossem infinitamente maiores que os mil e quinhentos quilômetros que as separavam.

Eram de fato dois mundos completamente diferentes, cujo diálogo sempre se revelou difícil e que lentamente, desde o século IV, ambas se afastaram uma da outra. Seria o maior problema o antagonismo político – papa ou rei? Ou cultural e litúrgico – grego ou latim? A teologia também se dividia em diversas querelas desde o Concílio de Niceia em 325 d.C., sobretudo no que diz respeito a divindade de Cristo. Mais tarde a questão do Filioque (procedência do Espírito Santo) apareceria também como crucial para o desentendimento entre as Igrejas: o oriente defendia que a origem do Espírito Santo era relacionada somente ao Pai; já o Ocidente, além do Pai, agregava também o Filho como origem. Atualmente, porém, ambas Igrejas veem suas posições sobre o tema mais como uma diferença de ênfase teológica do que dogmática.

A crise chegou em seu ápice em 1054, quando a Igreja de Constantinopla deixou de aceitar a autoridade de Roma. O papa Leão IX envia em seu nome o cardeal Humberto à Constantinopla a fim de intermediar a relação entre as Igrejas e apaziguar a situação. Ao invés disso, o Cardeal Humberto, compreendendo a crise como generalizada, excomunga o Patriarca Miguel Cerulário e toda a Igreja oriental. Em contrapartida o Patriarca Miguel fez o mesmo, excomungando o Papa Leão IX e toda a Igreja ocidental.

Após o Cisma, os cristãos do Oriente passaram a ser chamados “ortodoxos” (reta doutrina em grego), enquanto os do Ocidente são conhecidos como “católicos romanos”, por sua ligação à Sé Apostólica de Roma.

Reforma dos Monges (Negros e Brancos)

Vamos agora retomar ao imbróglio entre a cristandade e o movimento que lutava por uma Igreja livre. Lembrando que, desde a aproximação entre o poder espiritual da Igreja e o poder temporal do Imperador (ou reis, quando era o caso), o perigo de deturpações e uso indevido da Fé para fins políticos se fazia presente. Poderíamos dizer que quanto mais perto do rei, maior o risco de ficar longe de Cristo.

Ora, cada época traz consigo riscos diferentes. Se as decisões que se toma diante deles são certas ou erradas somente a História será capaz de dizer. Esse cambio de influências tornou possível que a Igreja fosse protegida em alguns momentos e contribuiu para a expansão da Fé em lugares remotos, produziu santos reis e rainhas e ajudou para que o cristianismo se entranhasse na cultura ocidental. Contudo, nesse processo de alianças com os poderes temporais também se fizeram presentes as armadilhas e as corrupções que elas acarretavam. Muitos governantes perceberam que seu poder aumentava, conforme controlavam as mentes e os corações do povo. E esse controle era facilmente proporcionado pela religião.

Toda essa situação desencadeou uma série de corrupções e escândalos. Parte do clero estava muito mais sedenta pelos poderes deste mundo do que pelas riquezas do Evangelho. Era comum que essa parte dos clérigos se envolvessem nas três grandes pragas dessa época:

  1. nepotismo
    (favoritismo pelos parentes para ocupar funções eclesiásticas);
  2. simonia
    (compra/venda de sacramentos, bens religiosos e cargos sagrados);
  3. concubinato
    (relações conjugais ilegítimas).

Em contrapartida a este momento difícil, suscitaram também discípulos fiéis, dispostos a manter viva a chama da verdadeira fé. Diante dessa realidade perniciosa de interferência do poder temporal e de decadência moral do clero surgiram os movimentos reformadores, os quais buscavam resgatar a autenticidade e fidelidade da Igreja. Entre esses movimentos o mais importante do século X foi sem dúvidas o representado pelos monges da abadia francesa de Cluny.

Cluny era um mosteiro marcado pela rígida observância da Regra de São Bento (um itinerário espiritual de conversão a Deus por meio da obediência) e pelo desejo de reformar a cristandade. Seus monges aspiravam alcançar as virtudes evangélicas através da oração, do jejum, da austeridade, do estudo e do trabalho. Desprezavam o mundo, amavam a Deus e eram admirados pelo povo.

A abadia de Cluny exerceu forte influência sobre a Igreja e sociedade daquela época. Não tardou até que os ministros que eram formados em suas fileiras começassem a ascender na hierarquia eclesiástica. Como quando Hildebrando, um de seus monges mais célebres, tornou-se Papa, sob o nome de Gregório VII, empreitando uma grande reforma que visou moralizar o clero e resgatar o controle da Igreja que estava nas mãos dos reis. As reformas que se desenvolveram a partir dele levam o nome de Reformas Gregorianas, nas quais ele propõe que é o poder temporal que deve se submeter a Igreja e não o contrário (Dictatus Papae – principal documento que instituiu as bases da Reforma Gregoriana).

Com o tempo o próprio movimento de Cluny vai se acomodando ao sistema em que estava inserido. Surge então na França um novo movimento envolvendo monges, trata-se da ordem dos cistercienses. A diferença “visual” entre estes monges era que, enquanto em Cluny se usava o hábito negro, os cistercienses usavam branco. Um novo frescor à vida monástica na Idade Média. O auge do movimento foi quando o filho de um nobre, seduzido e apaixonado por Cristo, resolveu entrar para a Ordem. Esse jovem passou para a história como Bernardo de Claraval (sim, o santo).

Celibato sacerdotal

Antes de continuar, é muito pertinente compreender melhor um tema antigo, de grande curiosidade e que ainda hoje se faz assunto em grupos que discutem a religião, que é a condição celibatária dos sacerdotes. Ou seja, durante o seu processo histórico a Igreja adotou como condição aos seus padres a renúncia da relação matrimonial e/ou qualquer relação intima (sexual) com outra pessoa.

Desde a antiguidade esta prática já era adotada por muitos padres e monges com a finalidade de, assim, se dedicarem mais e melhor as coisas de Deus. Por outro lado, muitos outros eram casados. O próprio apóstolo Pedro tinha esposa como aponta os relatos bíblicos. Essa realidade dualista foi pauta em alguns concílios, sendo proposto a observância do celibato por toda a Igreja. Mas foi somente no século XII, no primeiro e segundo concílios de Latrão, que se normatiza a obrigatoriedade do celibato aos clérigos católicos romanos, ou seja, ocidentais. No oriente os padres, até hoje, podem contrair matrimônio (antes de serem ordenados padres), e somente o bispo tem a obrigatoriedade de observar o celibato.

Por fim, essa condição, embora faça parte da Tradição da Igreja no ocidente e tem o seu valor, não é um dogma de fé (verdade absoluta e inquestionável), por isso pode ser discutida e colocada em estudo a qualquer momento.

Cruzadas (Guerras Santas)

A nossa jornada chega agora em um dos temas mais polêmicos desse período: as Cruzadas. As Cruzadas foram expedições militares com fundamentação religiosa que tinham como objetivo “libertar” os lugares sagrados do Cristianismo, como a cidade de Jerusalém, que estavam sob o domínio muçulmano.


A saber, o Islã surge na Arábia Saudita durante o século VII d.C. e garante uma grande expansão religiosa e militar logo após sua fundação por Maomé. A relação entre cristãos e muçulmanos será intensa e dificilmente harmônica na Idade Média. Não iremos entrar em maiores detalhes sobre este assunto, mas aconselhamos um aprofundamento a posteriori sobre a influência e convivência entre Islã e Cristianismo.


A ideia de empunhar a espada em nome de Jesus e lutar contra um inimigo pode nos parecer absurda. Como conceber que uma religião que prega atitudes não violentas possa ser usada para justificar uma guerra? No entanto, a mentalidade guerreira estava incrustada na cultura medieval. Além disso, a ideia de que, diante de uma injusta agressão, existe a possibilidade do uso da força em legítima defesa já estava estabelecida na Teologia cristã da época. Para se ter uma ideia Santo Agostinho e, mais tarde, Santo Tomás de Aquino apresentaram o conceito de Guerra Justa. As Cruzadas, porém, constituíram-se de um passo a mais: elas seriam não Guerras Justas, mas Guerras Santas!

Claro, como todo evento histórico, as Cruzadas possuíram antecedentes que remontam a alguns séculos do seu aparecimento. Contudo, para não nos alongarmos muito, faremos uma síntese do processo que acarretou a convocação de Guerras Santas.

Vamos recapitular alguns pontos importantes: o Império Romano estava dividido em duas grandes porções: a parte ocidental, que na Idade Média já não existia mais, e a Oriental, a qual permaneceu viva e passou a ser conhecida como Império Bizantino. Vimos também que com o tempo a divisão política se tornou divisão religiosa: os cristãos ocidentais eram católicos romanos, ligados ao Papa (Roma), e os cristãos orientais eram ortodoxos, ligados aos patriarcas das grandes Igrejas do Oriente. Pois bem, os lugares considerados sagrados, tanto para católicos como para ortodoxos, estavam no Oriente. A cidade de Jerusalém, Belém de Judá, Cafarnaum, o Rio Jordão, os templos da Natividade (construída na gruta onde Cristo havia nascido) e do Santo Sepulcro (onde o corpo de Jesus foi sepultado e de onde ressuscitou), todos estes locais estavam no território do Império Bizantino, portanto, dos cristãos orientais.

Ainda que os cristãos ocidentais estivessem desligados do Oriente, eles ainda estavam afetiva e psicologicamente envolvidos com os lugares santos. As peregrinações à Terra Santa desempenhavam importante papel na época. Tão comum como as atuais romarias ao Santuário Nacional de Aparecida eram as peregrinações dos católicos europeus para Jerusalém. Mais importante: muitas vezes o processo de penitência, ligado ao Sacramento da Reconciliação, dependiam dessas peregrinações.

Enquanto o território da Terra Santa estava sob o domínio bizantino não houve grandes dificuldades para os católicos acessarem os lugares sagrados. Todavia, a região caiu sob o domínio dos seguidores do islamismo. O domínio muçulmano, contudo, em seu início não foi hostil às peregrinações cristãs, pelo contrário, demonstrou alguma tolerância.

Foi no século XI, quando uma nova tribo muçulmana, a dos turcos seljúcidas, assumiu o controle da Terra Santa que teve início uma série de ações contrárias aos peregrinos, em alguns casos com grande violência e perseguição. Além disso, o imperador bizantino temia que os muçulmanos continuassem com seu processo de conquistas territoriais e, como já havia perdido parte do seu território, não queria conceder mais. Por essa razão mandou um pedido de socorro ao papa.

Urbano II, Sumo Pontífice, o qual tinha vindo da abadia de Cluny, viu nesse pedido de socorro a chance de reatar as Igrejas do Ocidente e Oriente. Mais que isso, ele teria a oportunidade de canalizar o impulso guerreiro dos europeus em direção a uma “causa justa”: os descendentes dos bárbaros não iriam mais guerrear entre si em disputas injustas, egoístas e gananciosas, mas iriam guerrear pelas coisas de Deus. Em 1095 o Santo Padre discursou diante de vários nobres cavaleiros franceses. Em suas palavras ele incitou os guerreiros a empunharem suas armas em nome de Cristo para libertar os lugares santos do domínio islâmico, garantindo a volta das peregrinações.

E assim começou a primeira “Guerra Santa”, que de santa não teve lá muita coisa. Havia sim um sentimento religioso, muitas vezes autêntico, porém também existiram episódios de crueldade, violência gratuita e de cobiça desenfreada. O episódio mais lamentável foi perpetrado quando os cruzados finalmente conquistaram Jerusalém, ali foi promovido um terrível massacre contra a população muçulmana e judaica, não foram poupados nem mulheres nem crianças.

Enfim, a Primeira Cruzada conseguiu o objetivo e garantiu a existência dos cristãos na Terra Santa durante quase noventa anos. Até que em 1187 d.C. Jerusalém foi retomada pelos muçulmanos sob comando do famoso sultão Saladino. Mais oito expedições (classificadas como Cruzadas pela história) foram conduzidas rumo ao Oriente Médio, porém nenhuma delas obteve o êxito da primeira em reconquistar Jerusalém.

Vale ressaltar que também houve Cruzadas dentro da Europa. Entre essas são apontadas a reconquista da Espanha e de Portugal, a Cruzada ao norte da Europa e a Cruzada contra os Cátaros. Mas isso é uma outra história.

Um dos pontos mais lembrados das Cruzadas foi o surgimento das Ordens Militares. Tratavam-se de ordens de cavaleiros que faziam votos religiosos de pobreza, castidade e obediência. Essas ordens eram muito admiradas pelo povo, faziam obras de caridade, como alimentar os famintos e cuidar dos enfermos, além de defender os cristãos de ataques tanto no território cristão como no território inimigo. Tornaram-se quase como que super-heróis (aliás, muitas das qualidades dos heróis da literatura, dos quadrinhos e do cinema são inspiradas nesses cavaleiros). A primeira e mais importante dessas ordens foi a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão (Ordem do Templo), conhecida como Templários. Muitas outras ordens foram criadas a partir do Templo, boa parte delas existe até hoje, é o caso da Ordem de Malta e Ordem Teutônica. Hoje essas organizações desempenham muitas obras sociais.

No saldo das Cruzadas estão pontos positivos e negativos. Um importante aspecto positivo foi a reativação do comércio com o Oriente. Essa realidade contribuiu para o ressurgimento da vida urbana e o intercâmbio cultural entre as diferentes sociedades da época. Entre os pontos negativos pode se contar a piora das relações entre católicos e ortodoxos e entre católicos e judeus.

Educação, cultura e religião

Pode ser que o termo fake-news seja relativamente novo para o nosso tempo, mas a prática de espalhar falsas verdades não é de hoje. Há um preconceito difundido sobre o período medieval sobre um suposto desprezo pelo conhecimento e a predominância das superstições. Tudo isso sob o pretexto de que a Igreja Católica preteria a razão para favorecer seus dogmas. Essa imagem foi construída a partir de uma mentalidade avessa à religião. Contudo, essa ideia de que na Idade Média o conhecimento científico era odiado não passa de fantasia, para não dizer que se trata de grosseira mentira.

A presença da Igreja na Idade Média favoreceu vários avanços em várias áreas do conhecimento humano. A primeira coisa que se pode citar para provar essa afirmação é a ação dos monges beneditinos, através da qual o conhecimento da era clássica foi transmitido até nós. Sim, pois foram os monges copistas que preservaram as obras escritas dos grandes mestres da filosofia antiga. Lembremos: não existia a imprensa e, uma vez que os livros se deterioravam pela ação do tempo, era necessário fazer novas cópias deles à mão.

Para a educação foi inventado o sistema escolástico, o qual possuía uma estrutura específica onde mestre e alunos tomavam determinado tema como objeto e o esmiuçavam através do intenso debate. Analisavam argumentos favoráveis e contrários na construção do conhecimento. Esse era o método utilizado por Santo Tomás de Aquino e está presente em sua obra mais conhecida: a Suma Teológica.

Também podemos citar a criação das universidades medievais. Essas instituições foram uma das grandes invenções do período e sem precedentes. Surgiram a partir das Escolas Catedralícias, assim chamadas porque se ligavam a algumas catedrais. Através delas o conhecimento científico pode se estruturar de uma maneira sistemática e tal realidade favoreceu muitos avanços nos campos da filosofia, medicina, Teologia, Direito e outras áreas de conhecimento que surgiram posteriormente. As duas principais universidades fundadas na Europa medieval foram a de Bolonha (1088) na Itália e a de Paris (1170) na França, no entanto existem outras e que chegaram até o nosso tempo com grande prestígio, como: Oxford (1167) no Reino Unido, Salamanca (1218) na Espanha, Coimbra (1290) em Portugal etc. De maneira geral as universidades receberam da Igreja muitos benefícios, como por exemplo decretos do papa que se destinavam aos universitários e que lhes garantiam algumas facilidades.

Naquilo que se refere às artes, a Idade Média foi um tempo de intensa criatividade. Existem obras de poesia, literatura, pintura e escultura. Mas o exemplo mais eloquente da arte medieval é sem dúvidas a arquitetura gótica presente sobretudo nas catedrais, como a de Notre Damme em Paris. Esses edifícios foram construídos para provocar todos os sentidos humanos durante o culto. Privilegiavam a luz, através de belíssimos vitrais que proporcionavam iluminação e um turbilhão de cores no interior do templo. Além disso, sua arquitetura ogival possuía uma acústica bastante eficiente.

Outro legado foi a sistematização da música com as notações musicais que se utilizam de símbolos para representar sons e ritmos. As famosas partituras musicais começaram a ser estabelecidas na Idade Média a partir do canto gregoriano, música litúrgica católica que era parte essencial do culto cristão.

Sem dúvidas a cultura era totalmente permeada pelos elementos da religião cristã de tal maneira que a fé influenciava a vida social e essa última também afetava a vivência da primeira. Por exemplo, a ideia de Paraíso Celeste foi modelada a exemplo da estrutura social da época, na qual Jesus Cristo seria um rei ao estilo feudal, os santos a sua corte e os anjos comporiam o seu exército. As vestes litúrgicas surgidas nessa época emulam de alguma forma as vestimentas de príncipes, reis e imperadores.

Ainda sobre a religião, é bastante interessante saber que boa parte das devoções populares que conhecemos atualmente tiveram seu início na Idade Média. Uma das devoções mais importantes é a de Corpus Christi, de fato, a prática de adoração à Eucaristia se intensificou nesse tempo, principalmente para se opor às heresias eucarísticas, as quais afirmavam que no pão e vinho consagrados existe apenas um símbolo e não o Corpo e Sangue de Cristo. Como já mencionado, as peregrinações possuíam grande importância na vida social e estavam ligadas às relíquias dos santos, isto é, parte de seus corpos ou objetos que a eles pertencessem e que eram conservados em determinadas igrejas. A catedral de Santiago de Compostela era um dos pontos preferidos para peregrinações, pois ali se encontram as relíquias do apóstolo São Tiago Maior.

Inquisição (Tribunal da Misericórdia)

E, claro, não poderíamos passar por esse período do tempo sem falar do que foi a Inquisição. Símbolo máximo do poderio e controle ideológico da Igreja medieval, a Inquisição certamente é uma das mais famigeradas (e odiadas) instituições da história humana. Teria sido ela a invenção de homens perversos que, esquecendo-se dos ensinamentos de Cristo, apegaram-se demasiadamente ao poder mundano? A resposta não é tão simples assim. Claro, uma organização como a Inquisição é inaceitável no mundo atual, porém no mundo medieval era, não só admitida, como também esperada. Com efeito, surgiu depois que a Igreja recebeu exigências do poder secular para resolver os problemas das heresias, as quais poderiam levar o tecido social à ruptura.

Geralmente a Inquisição é associada a clérigos sádicos, sem apreço aos valores do Evangelho nem dotados de misericórdia. Porém, é surpreendente descobrir que o papa Gregório IX, seu fundador, possuía no seu círculo de amizade santos do quilate de Domingos de Gusmão e Francisco de Assis. Pois é, a História é composta por ambiguidades difíceis de analisar.

PERNOUD, 1994

A Inquisição surgiu diante de um desafio: o crescimento de uma heresia vinda da França. Os adeptos desta heresia se autoproclamavam “cátaros”, isto é, “os puros”. Tal pureza se manifestaria pelo afastamento radical entre as realidades espirituais (boas) e carnais (más). Superficialmente não parece nada demais, afinal existem pessoas piedosas que possuem esses escrúpulos. Contudo, essa divisão que os cátaros faziam era extrema. Eles acreditavam que o mundo espiritual havia sido criado pelo verdadeiro Deus, enquanto o mundo material era criação de uma divindade maligna. O corpo nada mais seria que uma “prisão”, da qual o espírito somente se livrava na hora da morte. Por essa razão, esses hereges eram contrários ao casamento e à procriação. Existem relatos até sobre o assassinato de mulheres grávidas, ora, elas geravam em seus ventres novas “prisões malignas”. Também se opunham aos juramentos perante tribunais, fato que trazia muitos impasses para a organização social, e eram terrivelmente críticos à Igreja e à sua hierarquia. Interessante a análise que o importante historiador Le Goff (2016) faz sobre as heresias de modo geral: seriam elas “as formas mais agudas da alienação ideológicas”.

O catarismo, a exemplo de outras heresias, logo se disseminou pela Europa. Suas doutrinas colocavam em xeque a organização social. Por esse motivo, muitos representantes do poder temporal quiseram aniquilar o movimento, antes que esse aniquilasse a sociedade. Assim, muitos pediram ao poder eclesiástico que tomasse providencias. Como se a Igreja demorasse a agir, alguns governantes tomaram para si a função de expurgar a heresia, por vezes a própria população julgava, condenava e executava.

Foi para evitar que situações como essas se generalizassem que o papa tomou como função exclusiva da Igreja a função de julgar os casos de heresias. Por isso, em 1231 criou o Tribunal da Inquisição. Esse tribunal funcionaria de maneira autônoma e não precisaria da autorização dos bispos locais para se estabelecer e agir. Ela possuía suas regras e não realizava julgamentos guiando-se apenas pelo arbítrio do juiz. Pelo contrário, havia uma liturgia processual a ser seguida e respeitada (que nem sempre o era). Daniel-Rops (2011), historiador francês, explica muito bem esses passos, os quais nem sempre acarretavam condenação e, mesmo quando resultavam na condenação do réu, por vezes não terminava com sua execução. O arrependimento e retratação pública já eram suficientes para que o acusado de heresia fosse perdoado. Embora tenha sim utilizado a tortura como método processual (prática resgatada do antigo direito romano), não o fez de modo generalizado e sem ressalvas, pelo contrário, alguns papas e canonistas desaconselhavam.

Diferente do que muita gente acredita, a Inquisição não executava os condenados, esses eram entregues ao poder civil, o qual se responsabilizava por aplicar a pena temporal. Esse detalhe, porém, não deve eximir a Igreja de sua responsabilidade, é o que diz o mesmo Daniel-Rops.

Não obstante o fato de ter nascido na Idade Média, será durante a Modernidade que a Inquisição alcançará seu apogeu.

Muito ainda teríamos para falar sobre essa instituição tão controversa, porém o que foi aqui apresentado já é o suficiente para saber qual foi sua importância e papel no período estudado. Mas, apenas para citar algumas curiosidades: a Inquisição não esteve presente em toda a Europa, somente em algumas regiões específicas e em períodos específicos; há relatos de pessoas encarceradas em prisões civis que blasfemavam apenas para serem transferidas para as cadeias da Inquisição, as quais proporcionariam um tratamento melhor (MOCZAR, 2014)

Enfim, o fim!
Agora temos um encontro marcado na Idade Moderna. Até breve!


Esse artigo foi gravado em vídeo e está disponível no canal do Areópago. Vide abaixo.


Notas
[1] O Rei ou Imperador era alguém considerado superior a todos os demais e eleito por Deus para governar o Estado e a Igreja, administrar os conflitos e manter a unidade de ambas.
[2] Dinastia a qual pertencia Clóvis e seus descendentes.
Referências
PIERINI, F. A idade média: Curso de História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1998.
PIERRARD, P. História da Igreja. 3ª. ed. São Paulo: Paulinas, 1982.
DANIEL-ROPS , H. A Igreja das Catedrais e das Cruzadas. 2ª. ed. São Paulo: Quadrante, v. III, 2011. (História da Igreja de Cristo).
LE GOFF, J. A civilização do Ocidente medieval. Petrópolis: Vozes, 2016.
MOCZAR, D. Sete mentiras sobre a Igreja Católica. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Castela, 2014.
PERNOUD, R. Idade Média: o que não nos ensinaram. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1994.

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Uma resposta em “História da Igreja (Pt 2) Período Medieval”

Bruno e Davi, parabéns pelo texto tão gostoso de ler e com tanta informação histórica importante! O Professor Ulisses Leva ficará feliz de ler o trabalho de pesquisa e capacidade de síntese! Li tudo sem parar! Vou reler.

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