A Igreja no período medieval alcançou uma enorme influência em todas as camadas sociais e em todas as circunstâncias da vida humana. No final desse mesmo período, toda essa influência começa a declinar, culminando em uma grande rejeição e fomentando a famigerada reforma protestante. Esses acontecimentos marcam a entrada de uma nova era para a vida da Igreja: o período moderno, que se estende do século XVI ao século XVIII.
Bem-vindos de volta! Chegamos ao terceiro capítulo da História da Igreja, agora, no Período Moderno (como de costume, você vai encontrar um vídeo sobre este tema ao final do artigo). E se prepare, pois os acontecimentos desse período vão lhe aflorar muitos sentimentos, bons e outros não tão bons. Preparados?! Vamos adiante!
A situação do Clero no século XVI
Para dar contexto à época, a situação religiosa do século XVI tem interpretações distintas. A tese mais conhecida é de que o declínio da Igreja se deu pelos abusos e desordens dentro do clero. Isso em todos os seus níveis: desde o coroinha até o Papa. Essa tese não é desprovida de verdade, porém muito genérica e exagerada. Uma outra tese retrata que, ao final da Idade Média, duas grandes correntes escolásticas dominavam o ensino nas universidades: a via antiqua (reales) e a via moderna (nominales). Ambas as correntes perderam o impulso intelectual que as motivavam, passando a sentir falta de mestres originais que pudessem, de novo, dar respostas a fé no tempo presente. Não demora até se ter a impressão de que a teologia não atinge mais a essência da vida.
Ainda que a Igreja tenha contado com numerosos bispos piedosos, instruídos e edificantes, muitos outros viviam como príncipes, com grande pompa e cercados por uma numerosa corte. Eles eram escolhidos não para o bem da Igreja local, mas por interesses ligados ao nepotismo [favoritismo pelos parentes para ocupar funções eclesiásticas] ou mesmo por simonia [compra/venda de sacramentos, bens religiosos e cargos sagrados]. Outra praga que cercava o alto clero era a prática, quase que comum, do concubinato, ou seja, mesmo contra as orientações da Igreja, muitos clérigos mantinham relações amorosas às escondidas; os filhos, resultado de tais relações, logo passavam a exercer cargos dentro da Igreja.
Para além disso havia rivalidades, inveja e grande controvérsias entre sacerdotes seculares e religiosos de diversas ordens. Não havia consenso sobre responsabilidades, privilégios, benefícios e precedência entre eles.
A formação religiosa dos que se sentiam chamados a vida eclesiástica era um outro problema: não havia seminários nem programas formativos bem definidos. Eram poucos padres que tinham os estudos universitários completos. Antes da ordenação era exigido um simples exame aos futuros clérigos que se resumia em conhecimento mínimo do latim (suficiente para ler e pronunciar) e de teologia (resumindo nos sacramentos, na explicação do Credo e do Decálogo).
A situação da sociedade no século XVI
Crescia entre o povo uma extraordinária corrente devocional e de misticismo. Isto porque a unidade cristã já se encontrava rompida; boa parte dos pastores abandonaram suas ovelhas em troca de uma vida principesca. O povo se encontrava muitas vezes sozinho, frente aos grandes dilemas da época, frente a temores como a guerra, epidemias, a miséria etc. As devoções, por serem métodos de oração simples e acessíveis, foram uma solução que manteve viva a fé. As pessoas se lançavam sobre relíquias, verdadeiras ou falsas. As peregrinações a lugares santos estavam com grande popularidade.
E, como se não bastasse a negligência de muitos representantes da Igreja, as práticas devocionais – que mantinham a fé do povo – passaram a ser taxadas e usadas como penitências. Ou seja, para se obter o perdão dos pecados pelo sacramento da reconciliação, por exemplo, o fiel precisava realizar uma penitência que dispensaria gastos monetários. Essa prática ficou conhecida como a compra de indulgências. Esses abusos atingiam em cheio o povo humilde que, sem dinheiro, se afastavam do sagrado.
As crises dessa época impulsionaram o crescimento de um movimento cultural, artístico, filosófico e científico, que havia surgido no século XIII com a pretensão de reler a história e as literaturas clássicas para delas encontrar novas respostas ao momento atual e, enfim, colocar as coisas novamente nos trilhos. Esse movimento recebeu o nome de Humanismo principalmente por trazer uma visão antropocêntrica, isto é, a compreensão do homem no centro de todas as coisas. O Humanismo terá grande e durável influência sobre a história cultural da Europa, dando base para as reformas, tanto protestante como da Igreja.
Os Papas renascentistas
Os pontífices que governaram a Igreja na época efervescente do Humanismo ficaram conhecidos como Papas Renascentistas. Era um tempo de grande inquietude, com uma mudança de cenário mundial e, por isso, gerando novos problemas e novos desafios dentro e fora da Igreja. No entanto esses pontífices se apegaram aos gostos artísticos e se preocupavam com questões políticas, quando deveriam ter assumido totalmente o sofrimento e as aspirações espirituais do povo. Os papas desse período foram:
- Nicolau V [1447-1455];
- Calixto II [1455-1458];
- Pio II [1458-1464];
- Paulo II [1464-1471];
- Sixto IV [1471-1484];
- Inocêncio VIII [1484-1492];
- Alexandre VI [1492-1503];
- Pio III [1503];
- Júlio II [1503-1513];
- Leão X [1513- 1521].
É certo que, se eles não tivessem se envolvido de tal maneira em assuntos de ordem meramente mundana e política, esses papas teriam as condições de evitar o doloroso cisma protestante que estava por vir. Ainda assim,
Surge Martinho Lutero
Um monge assistia inconformado a todo esse cenário. Seu nome era Martinho Lutero.
Martinho nasceu em Eisleben, na Alemanha, no dia 10 de novembro de 1483. De família simples e provavelmente pobre, o menino cresceu educado com bastante austeridade. Era alegre e bastante inteligente; em 1505 já havia conquistado o doutorado em filosofia. Talvez essa sua característica precoce o tenha levado a experimentar algumas crises ainda muito cedo, como quando começou a associar que, todo ato que não tivesse em si uma finalidade claramente boa, seria pecado e, por isso, deveria ser repudiado pelo homem; contudo, ele mesmo se via preso a muitos desses pecados.
Com toda essa inquietude no coração, buscando o seu lugar numa sociedade visivelmente degradante, Martinho teve a vida transformada a partir de um fenômeno da natureza [ou intervenção divina se preferir] que ficou conhecido como a ‘tempestade de Stotternheim’. No caminho para a universidade de Erfurt, Martinho Lutero se viu desabrigado em meio a uma tempestade, sendo quase atingido por um raio. O medo se apoderou dele que, desesperado, gritou a intercessão de Santa Ana com a seguinte promessa: “Santa Ana! Salva-me e eu me tornarei monge”. Menos de um mês depois Martinho entrava para o convento dos agostinianos, com 22 anos de idade.
A vida monástica de Martinho Lutero, a exemplo de sua infância, foi bastante rigorosa, coerente, entregue ao esforço de alcançar a perfeição cristã, sem meias medidas. O objetivo divino recompensaria toda mortificação. Se empenhou nos estudos e foi ordenado padre dois anos após sua entrada no convento de Erfurt.
Enquanto avançava na vida religiosa e intelectual, a problemática acerca do pecado ainda assombrava o seu coração, evoluindo para uma pergunta dupla: como pode o homem pecador se justificar perante Deus? E como o homem pode ter a certeza de ter alcançado [ou não] essa justificação?
A experiência da torre
De fato, o homem não se justifica nem tão pouco se salva sozinho, longe da graça e da misericórdia de Deus. Pensar diferente disto é mergulhar a alma numa angústia invencível. Martinho Lutero, apoiado pela ideia escolástica, equiparou o conceito de justiça humana para o plano divino, transformando Deus em um juiz implacável, alguém que retribuía na mesma medida às ações, boas e ruins, dos homens. Depois, porém, de um longo tempo, Martinho superou esse conceito naquilo que chamou de a experiência da torre, e ele mesmo conta como isso ocorreu, partindo da sua própria autobiografia:
“Ardia em mim o desejo de compreender corretamente uma expressão usada na carta aos Romanos, no seu primeiro capítulo, lá onde se diz: ‘A justiça de Deus é revelada no evangelho’, porque até aquele momento eu pensava nisso com medo […] Eu entendia, com ela, a justiça que eles chamavam de formal ou ativa, aquela pela qual Deus é justo e que o leva a punir os pecadores e os culpados. Apesar do caráter irrepreensível da minha vida de monge, eu me sentia pecador diante de Deus, minha consciência estava extremamente inquieta e eu não tinha nenhuma certeza de que Deus aceitava as minhas reparações. Além disso, eu de fato não amava esse Deus justo e vingativo. Eu odiava […] Eu estava fora de mim, a minha consciência estava violentamente perturbada e eu examinava continuamente essa passagem de São Paulo, no ardente desejo de saber o que Paulo realmente quis dizer. Enfim, Deus teve piedade de mim. Enquanto eu meditava, dia e noite, examinando a concatenação destas expressões: ‘a justiça de Deus é revelada no evangelho, como está escrito o justo viverá pela fé’, comecei a compreender que a justiça de Deus significa aqui a justiça que Deus doa e graças à qual o justo vive, se tiver fé. Portanto, o sentido da frase é este: o evangelho nos revela a justiça de Deus, mas a justiça passiva, pela qual Deus, na sua misericórdia, nos justifica por meio da fé, como está escrito: o justo viverá pela fé. Imediatamente, senti que renascia, e me pareceu ter encontrado as portas abertas do próprio Paraíso. Desde então, a Escritura passou a ter aos meus olhos um aspecto novo […] Se antes eu detestava essa expressão ‘justiça de Deus’, agora eu a amava…”
Martim Lutero, Prefácio às suas obras, 1545
Embora Martinho fosse um monge irrepreensível, assumia-se como pecador. O Evangelho, por sua vez, ao invés de ser intuído como caminho libertador e de alegria, era vivido como “lei”, tornando a vida ainda mais desesperançosa. A ‘experiência da torre’ traça essa mudança de paradigma sobre o que significa a justiça de Deus, antes compreendida como retributiva de Deus, que pune o pecador, para uma justiça de misericórdia, que justifica o pecador que crê. Essa será a essência da Reforma que Martinho estava prestes a encabeçar.
O problema das indulgências e as 95 teses
Como já visto, era comum pagar taxas para, por exemplo, obter a remissão dos pecados no sacramento da reconciliação. No entanto, essa situação avançou para limites insustentáveis. O estopim veio da sede de poder do jovem bispo de 19 anos, Alberto de Brandemburgo, da Alemanha. Dom Alberto se tornou bispo de três dioceses, cujas nomeações foram compradas com o uso de dinheiro emprestado do banco. Um empréstimo realizado com a promessa de pagamentos que viriam das indulgências.
As novas indulgências prometiam a absolvição completa da culpa, participação perpetua em todos os bens da Igreja, remissão de todos os pecados para as almas do purgatório etc. Cada indulgência tinha o seu próprio valor, algumas estabelecidas de acordo com os bens de quem a comprava. Tudo estava bem esclarecido na Instructio summaria, onde Dom Alberto instruía a aplicação das indulgências.
Martinho Lutero ficou sabendo desses exageros pelo dominicano Tetzel, encarregado de pregar a indulgência. Tetzel prezava mais os negócios do que o arrependimento dos penitentes. Ele dizia que as almas eram libertadas do purgatório tão logo a moeda caísse na caixa de esmolas. As indulgências se tornaram uma clara afronta ao que Lutero havia descoberto sobre a justiça misericordiosa de Deus. Por essa razão, sem perda de tempo, escreveu uma carta para Dom Alberto de Brandemburgo com “95 teses” ligadas à teologia da penitência e contrariando a compra das indulgências. Algumas das quais se encontram logo abaixo para nos ajudar na compreensão do pensamento e da ira de Lutero:
28) O certo é que o tilintar da moeda na caixa pode aumentar apenas o lucro e a avareza, mas o sufrágio da Igreja depende apenas do beneplácito de Deus.
43) Deve-se ensinar aos cristãos que quem dá aos pobres ou faz um empréstimo ao necessitado age melhor do que quem compra indulgencias.
45) Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê um pobre e o despreza, e depois dá o dinheiro para as indulgencias, não adquire as indulgencias do Papa, mas a ira de Deus.
95) Deve-se exortar os fiéis a entrarem no Céu por meio de muitas tribulações, ao invés de descansarem na segurança de uma falsa paz.
As 95 teses foram publicadas nas cidades de Leipzig, na Basiléia e em Nuremberg. Passados 14 dias haviam se espalhado por toda a Alemanha e, em quatro semanas, por quase toda a cristandade. Independentemente do que foi entendido na época, a publicação das teses foi o início de uma “revolução” religiosa, abrindo questionamentos de toda a estrutura eclesial da época.
O agravamento da situação
“O tempo de calar já passou; é chegado o tempo de falar”. Com essas palavras, Martinho Lutero dava a entender que tudo deveria ser posto sobre a mesa, as claras, para uma nova avaliação do religioso e sua presença no mundo. Seus ataques continuaram cada vez mais contundentes e amplos, contemplando agora questões como a autoridade do Papa, a validade dos sacramentos, a pertinência da Tradição da Igreja e outros. Para Lutero, não havia a necessidade de um magistério da Igreja, pois Deus instrui cada fiel e este, pela ação do Espírito Santo, pode chegar a Verdade sem intermediários. Sola Scriptura bastaria.
Depois de muitas tentativas de silenciar Martinho Lutero, com a condição de retratação – todas sem sucesso – a Igreja, sob o Pontificado de Leão X, excomunga o monge agostiniano pela bula Decet romanum pontificem, de 3 de janeiro de 1521. Nessa altura, Lutero já tinha se tornado popular e a excomunhão teve pouco efeito na Alemanha. Por isso, o próprio imperador Carlos V foi convidado a intervir. Naquele mesmo ano, já excomungado, foi concedida uma nova tentativa de retratação na famosa ‘dieta de Worms’. No entanto, aqui também a retratação não aconteceu: Lutero julgava esse ato contrário à sua própria consciência. O imperador Carlos V então assina solenemente, segundo as leis da época, o edito de banimento: prisão e punição como herege. Contudo, quando o imperador assinava a proscrição, Lutero já havia escapado e estava escondido em segurança.
A necessidade de mudança acabou suscitando tumultos, dando origem a guerra dos camponeses em 1525, que misturavam motivações religiosas com outras de cunho social. Entre as reivindicações levantadas estavam coisas do tipo: a) toda comunidade deve ter a faculdade de eleger seu próprio pároco e depô-lo; b) o dízimo deve ser dividido entre o pároco, os mais pobres e, o resto, para as necessidades da comunidade; c) ninguém deve ser servo da gleba, pois Cristo tornou a todos livres.
Mesmo contra a violência, Martinho Lutero apoiava os pedidos por mudança; sendo ele próprio o protagonista de uma em especial, quando contraiu matrimônio em 13 de junho de 1525, com a ex-freira cisterciense Catarina von Bora. Um casamento, talvez, sem amor por parte de Lutero. Ele mesmo afirmara que seu casamento se deu para cumprir a vontade de seu pai, para também confirmar com fatos aquilo que ensinava com palavras (pelo fim do celibato dos padres) e, por último, para irritar o papa e o diabo.
Lutero continuou argumentando contra as práticas devassas da Igreja naquela época e publicando documentos com suas teses. Com isso, abriu-se um grande entrave político, social e religioso, que afetou todas as classes sociais e dificultou qualquer tipo de reconciliação entre elas. A teologia luterana exprime de modo radical a distância imensurável entre Deus, que é sempre bom, e o homem, que facilmente se corrompe. Isso leva àquilo que representa o núcleo do cristianismo da Reforma: sola gratia, sola fides, sola Scriptura.
Martinho Lutero morreu em 18 de dezembro de 1546 com 63 anos de idade, na sua cidade natal de Eisleben. Dono de um gênio forte, Lutero foi por vezes contraditório, distorcendo com rebeldia até mesmo conceitos clarificados da fé católica. De qualquer forma, é a partir dele que a Igreja inaugura uma nova fase de sua história. Existe uma certa unanimidade ao afirmar que Lutero não queria dividir a Igreja. Não queria criar duas igrejas, mas reformar a Igreja Católica. Todavia, o que se seguiu foi uma inevitável divisão.
A reforma anglicana
Paralelo a todo esse movimento desencadeado na Alemanha, a Igreja na Inglaterra não vivia os seus melhores dias. Eram 17 dioceses, com 8.070 paróquias, aglutinadas em 2 províncias eclesiásticas: Canterbury e York. O clero contava com 10 mil membros para um total de 3 milhões de habitantes que, a exemplo do que ocorria no resto da Europa, eram mais administradores de bens do que pastores ligados ao Evangelho.
O anticlericalismo era a principal característica da cristandade da época: havia uma aversão ao fiscalismo da Igreja na efetiva paga das taxas eclesiásticas; algumas taxas pagas pelos ingleses serviam, inclusive, como dinheiro que a Igreja empregava na guerra a favor da França e contra os próprios ingleses; além disso nasce também uma forte hostilidade por conta da imunidade dos membro do clero, à qual se junta a corrupção corrente; também a avocação de muitas causas julgadas pelos tribunais papais, que deixavam a alçada civil local, contrariavam as autoridades inglesas.
O desgaste na relação entre a Igreja e a Inglaterra se deteriorou ao ponto de se tornar irreversível. Faltava apenas uma pequena justificativa para que o cisma, de fato, acontecesse. E aconteceu!
Henrique VIII (1491-1547) se tornou rei da Inglaterra aos 17 anos. Nesse mesmo ano se casa com Catarina de Aragão, uma princesa da Espanha – 6 anos mais velha e ex-mulher de Arthur, irmão já falecido do rei. Catarina lhe concedeu seis filhos, duas mulheres e quatro homens. A única sobrevivente, no entanto, foi Maria Tudor, que mais tarde viria a se tornar rainha da Inglaterra. À medida que transcorriam os anos, a principal preocupação de Henrique VIII passou a ser a falta de descendência masculina. Catarina, já com 40 anos, não mais podia prover filhos.
Para resolver o problema da sucessão ao trono, Henrique VIII desejava anular seu casamento com Catarina, já em vista de um segundo casamento, agora com Ana Bolena, uma dama da corte da rainha. Em 1527, solicitou ao papa Clemente VII, a efetivação do divórcio, alegando que o matrimônio celebrado entre cunhados não era válido pelas leis eclesiásticas. Clemente VII, que em um primeiro momento se mostrou favorável, depois, pressionado, negou seu consentimento.
O imbróglio se estendeu sem um favorecimento ao rei. Ainda assim, em 25 de janeiro de 1533, foi celebrado secretamente o casamento de Henrique e Ana Bolena. Esse foi o ato que marcou o rompimento religioso e político com Roma. Como resposta, Clemente VII excomunga o rei que, por sua vez, instiga e pressiona o parlamento inglês a aprovar o Ato de supremacia, que declara que a Inglaterra é um império governado pelo rei, e que todas as causas espirituais devem ser julgadas e determinadas dentro da jurisdição e da autoridade real. Era o nascimento da Igreja Anglicana e do absolutismo na Inglaterra.
Perto dali, na França e na Suíça o cisma foi conduzido por João Calvino, o qual acreditava que todos os seres humanos já haviam sido predestinados, ou para a Salvação ou para a Perdição. Calvino mexeu com a fé do povo com essa proposição teológica, onde, uns nascem destinados ao inferno (os maus), outros ao céu (os bons). Houve ainda um número sem fim de outros reformadores que ajudaram por dividir a Igreja Católica.
A reforma católica (Concílio de Trento)
O desequilíbrio entre o poder secular e o religioso era sentido por todo o velho continente. A exigência por uma reforma da Igreja é anterior a Lutero, mas foi a partir dele que a situação se tornou insustentável.
Para dar início a reforma (ou contrarreforma como também é conhecida), a Igreja tinha a sua disposição um instrumento ideal – e talvez o único: um novo concílio ecumênico. Depois de superar alguns embaraços políticos e geográficos, a cidade de Trento foi escolhida para sediar o concílio, que teve início no terceiro domingo do Advento (Gaudete) de 1545, sob o pontificado de Paulo III. Os objetivos do concílio são os fixados na bula Laetare Jerusalem: unidade religiosa, reforma da Igreja, cruzada contra os turcos.
O concílio de Trento foi o mais longo da história, durando 18 anos, com longas e numerosas interrupções. Ele pode ser dividido sinteticamente em três períodos:
1° período (1545-1549): Papa Paulo III
As sessões de I a X foram trabalhadas, com os temas: Bíblia, Tradição, pecado original e justificação, número dos sacramentos, definição do batismo e crisma; medidas da reforma: obrigação dos bispos residirem na diocese e se empregarem no ensino da Sagrada Escritura.
2° período (1551-1552): Papa Julio III
As sessões de XI a XVI foram trabalhadas, sobretudo para dar solidez dogmática aos sacramentos da eucaristia, penitência e extrema unção.
Entre o segundo e o terceiro período, é significativa a ação de Paulo IV (1555-1559) que, sem o concílio, realiza uma ampla reforma, especialmente na dataria apostólica, Índice, Inquisição, Breviário e Missal.
3° período (1562-1563): Papa Pio IV
As sessões de XVII a XXV foram trabalhadas, completando o programa dos sacramentos (ordem e matrimônio), além de delinear o perfil da reforma do clero e, obviamente, já na última sessão, sobre o problema da venda das indulgências e seus abusos.
A aplicabilidade do Concílio de Trento
O concílio de Trento encerra-se no dia 4 de dezembro de 1563; em 26 de janeiro de 1564 o papa dá sua confirmação para os novos decretos; e em julho de 1564 uma bula papal esclarece que os decretos conciliares valem para toda a Igreja. Isso não significa que os novos decretos foram colocados em prática imediatamente, sobretudo os que traziam reformas disciplinares ao clero. Obviamente houve resistência. Precisou bastante tempo para que a nova configuração pudesse ser sentida na vida da Igreja. Pôr em prática a reforma tridentina coube aos papas seguintes:
Pio V (1566-1572) unifica a liturgia com o Breviário romano e o Missal romano, impõe visitadores apostólicos, luta contra heresias, faz publicar o catecismo romano para os párocos e, pelo uso cotidiano do seu hábito branco (dominicano), todos demais papas passaram a vestir branco até os dias de hoje.
Gregório XIII (1572-1585) se empenha na instituição e manutenção dos seminários e dá impulso à reforma, melhorando o sistema de nunciaturas.
Sisto V (1585-1590) renova a administração central da Igreja, criando quinze Congregações de cardeais, cada uma com funções próprias na direção da Igreja. Publica uma revisão oficial da Vulgata, declarada como único texto autêntico.
Clemente VIII (1592-1605), mesmo com forte tendência ao nepotismo e à outras causas contrárias à reforma, dá forte impulso à renovação interior da Igreja e à consolidação do papado, levando cerca de 1 milhão de fiéis no jubileu de 1600.
Paulo V (1605-1621) se esforçou para impor o domínio da Igreja também no campo político, mas foi importante especialmente no apoio dado à atividade missionária.
A característica do concílio de Trento foi mesmo a de oferecer uma resposta católica aos anseios do homem do século XVI, esperançosos por mudanças e incitados a isto também pelos duros [e necessários] questionamentos de Lutero. Por essa razão, os decretos conciliares são muito mais o resultado de um esforço na solução dos problemas do que uma doutrina explicitamente construída. Ou seja, os padres conciliares não partiam de um plano eclesiológico, mas, antes, precisavam defender e explicar os vários aspectos da doutrina católica.
Pode-se concluir que o Concílio de Trento conseguiu alcançar grande parte dos seus objetivos, principalmente na ampla reforma das suas estruturas e liturgias. No entanto, não conseguiu reatar a tão almejada unidade religiosa.
A Igreja atravessa o Oceano
Enquanto a Igreja buscava reencontrar a sua identidade, paralelamente ela se expandia, inclusive além-mar.
É comum se ouvir a ideia segundo a qual a ação missionária da Igreja no Novo Mundo se deveu à necessidade de conseguir mais fiéis para o catolicismo, uma vez que o protestantismo gerou muitas baixas as suas fileiras. Porém, importante é compreender que os esforços da missão católica em converter os povos ao Evangelho aconteceriam ainda que Lutero não houvesse existido. Aliás, mesmo antes da Reforma iniciada por Lutero as conquistas das nações católicas na África, na Ásia e no Novo Mundo tentavam se justificar pela Fé.
Terminado o processo de Reconquista da Península Ibérica (processo que contou com as Cruzadas), Portugal e Espanha se lançaram ao Oceano. No primeiro momento, as iniciativas tinham como objetivo encontrar novas rotas para as Índias, mas, com o “descobrimento” da América, logo se configuraram como verdadeiras expansões. As duas nações ibéricas foram as pioneiras nesse processo, pois foram as primeiras a conseguirem a unificação de seus próprios territórios e se livrarem de conflitos bélicos que as impossibilitariam de sair desbravando os mares.
Tanto Portugal quanto Espanha receberam do papa (mais de um para ser preciso) o direito de explorarem as terras conquistadas e o dever de difundir a Fé cristã aos povos subjugados. O sumo pontífice assim agia, pois, se não era o dono do mundo, era o seu administrador por direito divino – era essa a mentalidade da época. Contudo, as outras nações europeias não ficarão muito felizes com o exclusivismo ibérico. Célebre é a frase de Francisco I da França: “Gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que me exclui da partilha do mundo”. Por isso, mais tarde outros países vão rivalizar contra as coroas portuguesa e espanhola pelo domínio de alguns territórios americanos, tal realidade muitas vezes vai colocar em conflito católicos e protestantes, como se observará no Brasil os embates entre católicos portugueses e calvinistas franceses.
A chegada no Novo Mundo
O sentido religioso vai ser observado em todo processo de colonização da América e, para que os esforços sejam bem-sucedidos, é muito comum que as caravelas que desembarcam no novo continente sejam quase sempre ocupadas também por sacerdotes. As principais Ordens Religiosas a enviar missionários são os franciscanos e os dominicanos, mais tarde, com a criação da Companhia de Jesus, a presença de jesuítas também será intensa.
Embora muito difundida, é igualmente equivocada a ideia de que a ação da Igreja no Novo Mundo sempre esteve em perfeita concordância com os interesses dos colonizadores. Todavia, existiram também aqui os mais variados conflitos que se possam imaginar. Um conflito, a título de exemplo, foi em relação ao tratamento que os indígenas deveriam receber, enquanto os colonizadores desejavam reduzi-los à escravidão, e não obstante existirem clérigos que os apoiassem, a posição oficial da Igreja foi a de que eles deveriam ser protegidos.
Muitas das injustiças que se realizaram nas América também receberam uma roupagem religiosa como justificativa. Por exemplo, lendo o diário de Hernàn Cortez sobre a conquista do México e a destruição do Império Asteca, percebe-se que o conquistador espanhol entendia que estava realizando a vontade de Deus mesmo quando promovia massacres. Aliás, entendia que o fato de passar são e salvo por batalhas, desiguais quanto a força, era o sinal claro de que Deus combatia ao seu lado. O revestimento sagrado que as ações dos conquistadores muitas vezes recebiam encontrava disposição em muitos homens da Igreja, contudo isso não era fato unânime. Bartolomeu de las Casas, por exemplo, denuncia aquilo que ele considera a destruição do paraíso americano por parte dos seus compatriotas.
Uma das características marcantes do cristianismo na América é a intensa interação dele com as antigas tradições do continente, oriundas das religiões que os nativos praticavam antes da chegada dos europeus. Quanto a essa característica, pode-se dizer que existem algumas diferenças no tratamento que as ordens religiosas davam a elas: dominicanos e franciscanos pensam que os novos cristãos devem aderir totalmente aos costumes europeus; os jesuítas, por sua vez, procuram adaptar as culturas nativas àquilo que, em seu entendimento, não é conflitante com a essência do Evangelho.
Esse inculturamento será observado na religiosidade popular que ganhará corpo na América e sua existência se estende até a contemporaneidade. Muitas práticas religiosas e devocionais são frutos da relação entre cristianismo e as diversas culturas que tomaram palco na América, entre as quais pode se citar as culturas africanas e indígenas. Posteriormente, muitas dessas manifestações serão reconhecidas e valorizadas pela Igreja. As diferentes devoções marianas, presentes nos mais diversos países latino-americanos, são exemplos dessa religiosidade inculturada.
No Brasil se tem a devoção à Nossa Senhora Aparecida e no México a de Nossa Senhora de Guadalupe, em ambos os casos a Bem-Aventurada Virgem Maria assume características dos povos desses países e se observa uma estreita identificação entre Mãe de Deus e seus devotos oprimidos. Aliás, é marcante como na devoção popular existe uma aproximação entre Deus e os oprimidos; não por acaso, a Paixão de Cristo é um dos temas mais presentes na religiosidade popular.
Há ainda um elemento que merece ser mencionado: a maneira como a Igreja estava estabelecida no Novo Mundo. Por concessão dos Papas, a América vivia a realidade do padroado, isto é, as coroas portuguesa e espanhola possuíam certo controle na administração da Igreja em suas colônias; podiam nomear bispos, criar dioceses, coordenar as missões evangelizadoras (os jesuítas estavam um tanto livres desse controle, uma vez que respondiam diretamente ao papa). Essa aproximação demasiada entre o poder temporal e religioso gerará a já citada subversão dos pregadores aos interesses terrenos. Chegar-se-á ao cúmulo de que o Marquês de Pombal, adversário da Igreja e inimigo incansável dos jesuítas, tornar-se-á chefe da Inquisição em Portugal. Claramente existirão conflito entre o sagrado e o profano, entre os interesses e visões da Igreja e das coroas.
O muro da Igreja: a aversão aos pensamentos modernos
De fato, eram tempos de mudança e uma mudança de tempo, onde algumas instituições não estavam prontas para o que estava por vir. Entre elas, a Igreja.
Uma das características mais marcantes do mundo medieval foi a construção de castelos: fortalezas de pedra rodeados por fortes muros que possuíam por principal função a proteção contra invasores. Uma metáfora possível para a relação da Igreja com o pensamento moderno é justamente a do castelo. Estando, por assim dizer, muito acomodada com o mundo medieval, no qual a Fé cristã e as doutrinas católicas ditavam a organização social, a Igreja se encastelou contra as ideias modernas que promoviam uma ruptura com a mentalidade teocêntrica da Idade Média e representavam um abalo muito grande da ordem estabelecida.
Uma análise apressada, por vezes anticlerical, aponta a atitude da Igreja como uma reação desesperada para manter seu poder e seus privilégios; os clérigos, “inimigos do progresso e da liberdade”, querem a manutenção do status quo, no qual controlam as mentes humanas como se fossem marionetes. Essa foi justamente a visão que os adversários da Igreja procurarão difundir ao longo do tempo. Talvez seja mais interessante ver a reação da Igreja como o fruto de um choque entre duas mentalidades conflitantes. Era ela realmente a favor dos “grilhões da consciência”? Essa reflexão não tem, contudo, a intenção de eximir a nossa Comunidade de Fé de responsabilidades, mas de observar a raiz do conflito para discernir e iluminar algumas questões que se estendem até hoje.
Quem deve ocupar o centro da organização da sociedade, da estruturação do Estado e da reflexão filosófica: Deus ou o ser humano? Eis a questão subjacente ao embate entre a Igreja e a Modernidade que, no entanto, se arrasta desde o início do humanismo, no século XIII. Claro que o Renascimento e a Reforma Protestante muito contribuirão com essa nova visão de mundo, mas é ainda no início da Baixa Idade Média que nascerão as aspirações de “emancipar” as diversas áreas que envolvem a existência humana das “amarras” da religião.
Quanto a contribuição do Renascimento: observa-se a grande valorização do ser humano nas artes, mesmo aquelas que se destinam ao sagrado; basta ver como as figuras humanas são representadas com tamanha fidelidade no que diz respeito à anatomia. Porém, a arte é apenas a manifestação mais eloquente da tentativa de fazer “renascer” vários aspectos do mundo Clássico (aquele que existia na Idade Antiga), no qual a presença do cristianismo não era determinante (nem necessária).
A Reforma, por sua vez, fornecia ao ser humano uma maior autonomia com relação à religião, haja à vista que ela propõe que cabe à consciência humana – e não a um magistério organizado – definir sua relação com o sagrado; tal princípio pode ser observado no livre exame das Escrituras, por exemplo. É o ser humano, guiado pelo Espírito Santo, o crivo da interpretação da Bíblia. Aqui há uma das bases para a liberdade de consciência que será um dos princípios fundamentais da Modernidade.
Esse humanismo vai cada vez mais se fortalecendo e estruturando. Também será basilar para outros movimentos e mentalidades. Pode-se citar o racionalismo, cuja criação pelo católico Descartes, ironicamente, pretendia estar a serviço de Deus. Esse movimento defendia que apenas a razão humana seria instrumento de análise do mundo, aquilo que não pudesse ser racionalizado deveria ser sumariamente descartado. Vários pontos da Fé cristã se enquadram nessa impossibilidade. Também há o liberalismo, cujo princípio de liberdade irrestrita não se estende apenas no plano econômico, mas inclui a moral e a religião; se choca com o entendimento católico em todos eles.
Por fim, o movimento mais emblemático é o Iluminismo, o qual é resultado de todos os movimentos citados e conjuga boa parte dos princípios deles. Sua nomenclatura por si só é sugestiva: vem da ideia de que é fonte de iluminação para um mundo que jaz nas trevas da ignorância e superstições promovidas e sustentadas principalmente pela Igreja católica. Ao menos é assim que os próprios iluministas se veem. Muitas características do mundo atual têm sua fundamentação no Iluminismo. Para exemplificar: o Estado laico, a separação dos Poderes, a liberdade religiosa, a liberdade de consciência são todos frutos do iluminismo.
Tudo isso exposto, é necessário perguntar: por qual razão a Igreja se opôs a esses movimentos e por que foi tão relutante contra a Modernidade? Tal posição da Igreja parece incompreensível e indefensável, ainda mais se considerarmos que em muitos pontos a Modernidade “triunfou”, fazendo com que aparentemente o próprio catolicismo aderisse a alguns de seus princípios.
Algumas outras perguntas podem nos ajudar na reflexão quanto aos motivos da Igreja construir um muro de isolamento ante ao pensamento moderno:
- Tirar Deus do centro da vida humana e colocar em seu lugar o próprio homem não seria uma forma de idolatria, substituindo o Criador pela criatura (Gn 11, 1-9; Rm 1,25)?
- A liberdade do ser humano é liberdade para realizar o mal ou seria a verdadeira liberdade obedecer ao desígnio de Deus (Gl 5,13; I Pd 2,16)?
- Tem o indivíduo a capacidade de examinar livremente as Escrituras ou deve observar aquilo que ensina o Magistério e a Tradição católica (Lc 10,16; II Ts 2,15; 2 Pd 1,20-21 e 3,16)?
- A liberdade religiosa não culmina no indiferentismo religioso, no qual, pela impossibilidade de identificar uma única religião como verdadeira, todas são equalizadas?
- O racionalismo não acaba por negar a Fé, uma vez que as Verdades Reveladas não passam pelo crivo exclusivo da razão?
- O esforço pela separação do Sagrado e do Profano não leva à secularização radical, na qual até mesmo o cristianismo se seculariza?
- Todos esses pensamentos conjugados não levam a um relativismo moral, no qual a moral objetiva pregada pelo cristianismo é desprezada?
O leitor pode imaginar como os teólogos católicos responderam a esses questionamentos. Considerando os pensamentos modernos como perniciosos para a Salvação das almas, a Igreja os rejeitou veementemente. A ação da Inquisição se intensificou na Idade Moderna, perseguindo, ou mesmo levando à fogueira muitas vozes questionadoras e dissidentes. Tal realidade foi observada ainda antes da Reforma (vide o caso de João Huss, no século XV), mas depois dessa os processos inquisitoriais tiveram os protestantes como alvo principal. As obras que de alguma forma se chocavam com seu ensinamento eram colocadas no Índice dos Livros Proibidos e somente pessoas autorizadas podiam se aproximar delas, e com a finalidade de combatê-las. Com o decorrer dos séculos, porém, a ação inquisitorial já não se acarretava execuções, uma vez que o próprio poder temporal da Igreja foi minguando. Todavia, as condenações formais e excomunhões não deixaram de existir.
Talvez o maior símbolo da peleja entre Igreja e Modernidade seja o julgamento de Galileu Galilei. Episódio que sempre vem à tona para demonstrar a defesa que o catolicismo faria do atraso. Mal sabia a Igreja que, junto com Galileu, colocava a si mesma no banco dos réus. Entretanto, se o matemático italiano sairia de lá, a Igreja permaneceria até os dias atuais. O curioso é que Galileu era católico devoto, sua teoria heliocêntrica não visava abalar o cristianismo e uma análise mais cuidadosa demonstra que não o faz. No fundo, a disputa entre o Santo Ofício e o astrônomo foi muito mais sobre egos do que sobre ciência e fé. Outro exemplo célebre é o do dominicano italiano Giordano Bruno, esse sim, queimado vivo por suas discordâncias com a Igreja de Roma.
Não se pense que os católicos também não foram perseguidos e até mesmo mortos pelos seus adversários. As Guerras Religiosas levarão muitos filhos da Igreja à morte. Perseguições serão observadas na Inglaterra protestante de Henrique VIII e de seus sucessores. Quanto aos temores da Igreja em relação ao pensamento Moderno, muitos deles se tornarão realidade e isso poderá ser observado principalmente na Revolução paradigmática que tomará lugar na França de muitos iluministas.
Revolução Francesa: a Igreja sob ataque
O final da Era Moderna é marcado por um acontecimento que vai abalar o mundo e a Igreja de forma quase indelével: a Revolução Francesa, espetáculo no qual os princípios iluministas vão puxar o motor da História. A posição soberana da Igreja, já abalada, será questionada e mesmo o cristianismo entrará em xeque. Basicamente a Revolução na França teve como objetivo romper com a Antiga Ordem na qual prevalecia uma aguda desigualdade entre as classes sociais e estabelecer uma nova organização político-social onde alguns direitos fundamentais estariam garantidos a todos os cidadãos. A composição da Antiga Ordem era definida pela divisão em três “Estados”:
- o 1º era o clero;
- o 2º a nobreza;
- o 3º era formado pelos plebeus (burguesia, profissionais liberais, camponeses).
Por incrível que possa parecer a Revolução começa em favor da devoção católica. Os revolucionários pedem a proteção de Deus e fazem procissões à igrejas importantes. Nas vésperas da reunião dos Estados Gerais (assembleia que decidiu os destinos da França), foi realizada uma cerimônia na igreja de Nossa Senhora de Versalhes. Mesmo grandes nomes da Revolução, como Robespierre, participaram de eventos religiosos. No primeiro momento, não se imaginaria que um processo revolucionário se desenrolaria sem a participação da Igreja, muito menos que se faria contra ela.
Aliás, existiram figuras importantes da Revolução que pertenciam ao clero católico. As reivindicações que se observavam fora da Igreja também se manifestavam em seu interior. A desigualdade reinante no mundo laico foi refletida na estrutura eclesiástica. Havia sacerdotes pertencentes à nobreza (mesmo que não fossem nobres, estavam incardinados em igrejas importantes) que possuíam vidas abastadas com abundâncias de recursos, mas também havia aqueles padres que recebiam menos do que era necessário para sobreviver, pois serviam a igrejas mais humildes. Portanto, a luta por maior igualdade que era própria da Revolução, instalou-se também nas fileiras eclesiásticas.
Como sempre, não se observou no interior da Igreja uma única opinião sobre as mudanças propostas pelo processo revolucionário: existiam aqueles que eram terminantemente contrários e aqueles que as viam com simpatia e até entusiasmo. Se no início da Revolução, o Primeiro Estado (clero) estava muito mais sintonizado com os interesses do Segundo Estado (nobreza), e isso significava a manutenção dos privilégios desses grupos, na sequência o clero se alia às aspirações do Terceiro Estado (povo), isto é, torna-se mais aberto à possibilidade de mudanças.
Porém, com o passar do tempo o clima anticlerical de alguns poucos revolucionários foi ganhando cada vez mais adeptos. Cada vez mais circulavam panfletos de cunho anticatólico, os quais apontavam a Igreja como uma das principais responsáveis pelas mazelas que atingiam a maior parte da população francesa. A Revolução que tinha por objetivo estabelecer uma sociedade igualitária não podia admitir uma organização que possui uma hierarquia, ou seja, uma estruturação desigual. Se no começo somente uma pequena elite intelectual sustentava uma posição de aversão à Igreja, com o passar do tempo essa mentalidade ganhou corpo e tornou-se uma marca da Revolução.
Observaram-se saques a igrejas, expropriações de propriedades eclesiais, violências contra clérigos e religiosos. Mas o maior ataque a religião católica sem dúvida foi aquele que ganhou forma em 12 de julho de 1790: a Assembleia vota a Lei que reorganiza a Igreja na França. Não consulta, porém o papa e tão pouco se limita a questões administrativas. A nova organização, entre outras coisas, propunha a reestruturação das dioceses e paróquias; determinava que bispos e párocos deveriam ser eleitos pelo povo (incluindo judeus e protestantes); estabelecia conselhos sem os quais o bispo não poderia tomar decisões jurisdicionais e fixava a obrigação de Juramento à Constituição por parte do clero.
Essa nova organização influenciada pelos movimentos jansenista e galicano praticamente minava a autoridade do Sumo Pontífice sobre a Igreja francesa e basicamente estabelecia uma Igreja nacional. Não foi de se estranhar que o papa condenasse, portanto, essa interferência indevida da Revolução e que muitos clérigos tenham se negado a aderir a ela. O que se viu a seguir foi uma sequência de abusos e perseguição. Confisco de bens, condenações sumárias, chacinas ocorreram ao longo do processo. Um dos episódios mais emblemáticos foi a execução das dezesseis carmelitas de Compiègne, acusadas de fanatismo por se recusarem a deixar o claustro. As religiosas foram guilhotinadas enquanto cantavam salmos a Deus.
Além dessas violências físicas, também existiram as violências simbólicas: a introdução do ídolo da deusa Razão na catedral de Notre Damme, a permissão do casamento de padres com a punição a bispos que se opusessem, a pretensão de se extinguir a vida contemplativa, o afastamento radical da Igreja dos assuntos civis (como a criação do Registro Civil que tirava dos batismos e casamentos o valor legal).
A situação se agravou com o passar do tempo e só foi parcialmente solucionada com a concordata que Napoleão assinou com a Igreja. Todavia a ruptura entre Igreja e mundo moderno encarnada pela Revolução Francesa gerou uma distância abissal entre os dois. Ainda hoje é possível notar o anticlericalismo difundido na sociedade e a desconfiança que a Igreja possui em relação a traços específicos da Modernidade.
Somente com o Concílio Vaticano II a situação tende a sofrer uma mudança considerável, mas isso é assunto para nosso próximo e último encontro deste tema: a História da Igreja no Período Contemporâneo.
Esse artigo foi gravado em vídeo e está disponível no canal do Areópago. Vide abaixo.
Referências: ZAGHENI, G. A idade moderna: Curso de História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1999. PIERRARD, P. História da Igreja. 3ª. ed. São Paulo: Paulinas, 1982. DANIEL-ROPS, H. A Igreja da Renacença e da Reforma (II). São Paulo: Quadrante, v. V, 1999. (História da Igreja de Cristo). DANIEL-ROPS, H. A Igreja dos tempos Clássicos (II): A era dos Grandes Abalos. São Paulo: Quadrante, v. VII, 2001. DANIEL-ROPS, H. A Igreja das Revoluções (I): diante de novos destinos. São Paulo: Quadrante, v. VIII, 2003.
Veja também:
Uma resposta em “História da Igreja (Pt 3) Período Moderno”
Muito boa explanação sobre a história da igreja no período moderno. Parabéns pelo grupo.