A oração cotidiana sempre foi uma necessidade para o povo de Israel. Duas orações diárias constituíam o núcleo central da piedade e da fé de Israel. Shemá e as Shemoneh Esreh (Dezoito Bênçãos). O Shemá proclama a verdade fundamental da unicidade de Deus e expressa os elementos básicos do credo judaico. As Shemoneh Esreh era a oração por excelência do povo de Israel, rezadas três vezes ao dia: durante Shacharit (prece matinal), Minchá (prece vespertina) e Maariv (prece noturna). É formada por 18 bênçãos de ação de graças e de intercessão.
Na continuidade da história, os cristãos muito herdaram das práticas judaicas e foram, aos poucos, dando suas próprias características no que se refere ao culto e as orações. A Didaquê, no século II, foi o primeiro documento cristão a incentivar a prática de 3 momentos de oração ao dia, sobretudo na recitação do pater (Pai nosso) – talvez uma tentativa de substituição da Shemoneh Esreh.
No entanto, uma vez que o cristianismo deixou de ser perseguido no século IV, e passou a ser considerado a religião oficial do Império Romano, novos adeptos foram recebidos no seio da comunidade; um público diferente, considerado culto. Começa assim uma nova fase na vida da Igreja e, com ela, também a necessidade de organizar melhor a oração coletiva nos templos. Dessa forma, a liturgia das horas (ou ofício divino) – não como a conhecemos hoje – vai ganhando espaço e sendo sistematizada, até porque a celebração eucarística não era diária, mas semanal (dominical), ficando o desejo pelo encontro com o sagrado nos demais dias da semana.
Ofício catedral
Surge, portanto, o ofício catedral, presidido pelo bispo, em horas determinadas, com assistência do povo. Tinha lugar nesses ofícios uma pregação do bispo ou presbítero que presidisse, sempre fundamentada no Evangelho. O ofício divino era, dessa forma, a oração da comunidade local, e também uma espécie de “catequese diária”. Participar do ofício divino não era questão de gosto, mas parte integrante do ser cristão.
O lugar costumeiro dessas assembleias orantes é a igreja central e normalmente a única da cidade: a Catedral. O povo participa “em grande número” desses ofícios matutino e vespertino. O historiador Eusébio de Cesareia († 339) fala de hinos e louvores que se elevam na Igreja inteira e por toda parte, pela manhã e à tarde. São Epifânio († 403) afirma que “na Igreja universal celebram-se assiduamente as laudes, as orações matutinas, e assim também os salmos e as orações lucernárias”. São João Crisóstomo († 407), por sua vez, adverte aos catecúmenos que essas celebrações constituem parte não desprezível da tarefa (ofício) diária na vida do cristão.
Ao que parece, o ofício catedral estava organizado em dois momentos: uma oração da manhã e uma oração da tarde. Esses dois momentos constituíam uma experiência diária do mistério pascal de Cristo, morte e ressurreição. Era a oração da Igreja local. Nela, todos tomavam parte: o bispo, os presbíteros, os diáconos, os ministros, os ascetas e os fiéis.
Ofício monástico
Ao lado do ofício rezado nas catedrais com a participação das diversas categorias de fiéis, desenvolveu-se também o ofício monástico. Esse ofício estava marcado pelo desejo de dedicar o maior tempo possível do dia à oração, seguindo os conselhos evangélicos e buscando o equilíbrio entre a oração e o trabalho”. Trata-se da oração praticada por aqueles ascetas que viviam junto às igrejas e pelos monges que viviam em seus mosteiros. São Bento († 547) teve grande importância na configuração deste ofício que, diferentemente daquele celebrado nas igrejas catedrais, o ofício monástico não computava o tempo de acordo com o modo judeu, mas com o modo romano.
Foram os monges, porém, que organizaram o ritmo de suas orações segundo as vigílias romanas. No modo romano de marcar o tempo, o dia vai de meia-noite a meia-noite. Eles se propõem a cultivar a oração como ‘ofício divino’, procurando cumprir as palavras de Cristo: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação” (Mt 26,41), ou a exortação de Jesus acerca da necessidade de “orar sempre, sem deixar nunca de fazê-lo” (Lc 18,1; cf. Lc 21,36). Surgiu, assim, em certos ambientes monásticos, o hábito de rezar a cada hora do dia.
Enquanto o ofício catedral era formado basicamente por uma oração pela manhã (Laudes) e outra à tarde (Vésperas), com algumas vigílias em dias especiais, o monástico vai acrescentar a essas horas as menores (terça, sexta e nona), prima, completas e ofícios noturnos. Como pode-se perceber, algo muito exigente para aqueles que tinham que se dedicar a atividades comuns e não estavam dedicados totalmente ao louvor divino.
Com o passar do tempo o ofício catedral entrou em decadência e o modo monástico de organização do ofício se espalhou por toda a Igreja. Evidentemente que com a carga que significava o ofício monástico – oito horas canônicas – a Liturgia das Horas foi se tornando cada vez mais a oração de grupos seletos, clérigos e membros de ordens religiosas. Com a impossibilidade de os fiéis tomarem parte na celebração do ofício, os clérigos tornam-se “representantes” do povo nessa ação litúrgica.
A formação do Ofício Divino entre os séculos VI e XV
No período que vai do século VI até o século IX “o ofício era a oração da Igreja e do povo”. A eucaristia ainda não era celebrada diariamente. Desse modo, era o ofício divino a oração voltada à santificação dos dias de semana.
Com o passar dos anos, mais especificamente no final do século VIII, foram sendo acrescentados mais ofícios e orações de cunho devocional, e estes foram se tornando obrigatórios. Dessa forma, o ofício monástico foi ficando sobrecarregado e complicando a sua prática, até precisar de numerosos livros para sua celebração. Com toda essa sobrecarga, chegou a ser necessário utilizar sete volumes, além da Bíblia, para a recitação do ofício divino.
Do século X ao século XV algumas mudanças foram introduzidas na liturgia e também no ofício divino: uma tendência cada vez maior a abreviar o ofício, tendo em vista o peso quase insuportável dos elementos acrescentados com o tempo; muitos clérigos já não compareciam à oração coral, preferindo, assim, a recitação individual do ofício; com padres vivendo nos campos, e com os religiosos que começam a viajar por motivo de pregação, torna-se impossível o uso de vários livros para a oração do ofício e surge, então, o Breviário.
O uso de um único livro para a recitação do ofício foi verdadeiramente uma evolução, mas que também trouxe consigo um inconveniente: a introdução da recitação particular. Essa, tida como exceção, foi tornando-se a prática mais comum. Os padres começaram a ver a celebração da eucaristia e do ofício divino como simples obrigação pessoal. Houve muita discussão acerca de qual ofício deveria ser assumido. Concílios e bispos continuavam insistindo na prática do ofício coral, enquanto teólogos e juristas defendiam a substituição desse pela recitação privada. Fato é que no início do século XV a recitação de modo privado já era prática habitual, com exceção dos ambientes monásticos.
A formação do Ofício Divino do século XVI ao Vaticano II
O ofício divino continuou sendo reformado – às vezes acumulando elementos, outras vezes reduzindo. Nesse período, houve quatro significativas reformas do ofício: a que originou o chamado Breviário de Quiñones e ou da Santa Cruz, em 1535; no mesmo século, a reforma realizada pelo papa São Pio V que resultou no Breviário de Pio V, em 1568; já em 1911 surge o Breviário de São Pio X, que deveria ser o início de uma reforma mais ambiciosa a ser concretizada dali a dois anos, mas que não aconteceu; e, por fim, a reforma mais profunda e tradicional ao mesmo tempo: a Liturgia das horas de Paulo VI.
Finalmente, o Concílio Vaticano II propôs uma reforma global da Liturgia das Horas. Entre seus objetivos figuravam a recuperação da “verdade das horas” no intuito de santificar o curso inteiro do dia e da noite, a adequação da celebração à época atual e a participação dos fiéis no ofício divino.
“Com o Concílio, os fiéis leigos foram novamente convidados a beberem da Liturgia das Horas, fonte abundante de espiritualidade cristã”. Essas palavras do Frei Alberto Beckhäuser se referem ao número 100 da Constituição Sacrosanctum Concilium em que, depois de falar das diversas classes de fiéis obrigadas ao ofício, declara: “Recomenda-se também aos leigos que recitem o ofício divino, quer juntamente com sacerdotes, quer reunidos entre si, e até cada um em particular.
A definição das horas de oração ficou assim:
- Ofício das Leituras: anteriormente de madrugada, agora a qualquer hora.
- Laudes: Oração da Manhã. É recitada no início do dia.
- Hora Média: Oração das Nove (Terça), das Doze (Sexta) e das Quinze horas (Nona).
- Vésperas: Oração do Entardecer. É recitada no fim da tarde.
- Completas: é recitada antes de dormir.
A Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas (IGLH) inicia com uma afirmação que traz em si uma bela definição do que é a Liturgia das Horas: “A oração pública e comum do povo de Deus é considerada com razão entre as principais funções da Igreja”. Trata-se, portanto, de oração pública, ou seja, ação da própria Igreja. É também, conforme o texto, oração comum. A Liturgia das Horas é a oração de todo o povo de Deus. Não é uma atividade a mais, mas uma das “principais funções da Igreja”.
“Se bem usada, a Liturgia das Horas dispensa livros de meditação e pode nutrir substancialmente a vida espiritual e a ação apostólica de quem dela faz uso.”
Dom Clemente Isnard
Ainda nos dias de hoje, a Liturgia das Horas é, para muitos, um tesouro a ser descoberto.
Agradecimento especial ao teólogo Manoel Gomes da Silva Filho, cuja pesquisa [disponível aqui] foi fonte primária deste artigo. Deus o abençoe.
Referências: GOMES, M. “Orai sem cessar”: elementos para uma compreensão da Liturgia das Horas como oração pública e comum do povo de Deus. Trabalho de Conclusão de Curso – Faculdade de São Bento. São Paulo, 2015. SANTOS, Pedro Sérgio dos. Liturgia das horas: instrumento de evangelização e catequese. Goiânia, Ed. da PUC Goiás, 2010. MATOS, Henrique C. J. Liturgia das horas e vida consagrada. Belo Horizonte: Ed. O Lutador, 2004. BECKHÄUSER, A. A celebração do mistério de Cristo nas horas do dia: a Liturgia das Horas em CELAM, Manual de Liturgia, volume IV: a celebração do mistério pascal: outras expressões celebrativas do mistério pascal e a liturgia na vida da Igreja. [tradução: Herman Hebert Watz Watzlawich]. São Paulo: Paulus, 2007. BECKHÄUSER, A., Sacrosanctum Concilium: texto e comentário, São Paulo: Paulinas, 2012. LÓPEZ MARTIN, Julián. A liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral [tradução: Antonio Efro Feltrin]. São Paulo: Paulinas, 2006.