Estava eu a escarafunchar uns documentos cartoriais antiquíssimos visando a obter uma informação acerca de toda a cadeia de sucessões de proprietários, vendedores e compradores de um imóvel. Eram tantas as citações, nomes de pessoas físicas e jurídicas que davam até sono. Paciência, são ossos do ofício.
Lá pelas tantas, deparei um nome um tanto ilegível pelo papel amarelecido, e um borrão em forma de pingo alargado: “Dieg#Neto”. Naquele instante, o gatilho da memória foi acionado e me vieram à lembrança as aulas de História da Igreja Antiga e de Patrística, no Curso de Teologia: A carta (ou epístola) a Diogneto.
Os estudiosos e historiadores consideram-na uma “joia da literatura cristã primitiva”. Manuscrito em grego não se sabe por quem, tinha como destinatário um pagão culto chamado Diogneto, muito interessado em conhecer mais profundamente aquela religião que demonstrava força no Império Romano e uma fé inquebrantável e corajosa no seu Deus, mesmo diante das perseguições e sofrimentos para que renegassem a fé e abandonassem a prática da estranha religião.
Sabe-se que o documento foi encontrado no ano de 1436, em Constantinopla, atual Istambul, antiga capital da Turquia.
A carta a Diogneto testemunha que os primeiros cristãos eram a alma do mundo.
Transcrevo abaixo1 dois dos mais famosos parágrafos do manuscrito dirigido a Diogneto que revelam a grande importância histórica. O texto é bastante atual em face da crise de valores éticos, morais e de intolerância religiosa.
“Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem por sua terra, nem por sua língua, nem por seus costumes. Eles não moram em cidades separadas, nem falam línguas estranhas, nem têm qualquer modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, nem se deve ao talento e à especulação de homens curiosos; eles não professam, como outros, nenhum ensinamento humano. Pelo contrário: mesmo vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes de cada lugar quanto à roupa, ao alimento e a todo o resto, eles testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como se fossem forasteiros; participam de tudo como cristãos, e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é sua pátria, e cada pátria é para eles estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Compartilham a mesa, mas não o leito; vivem na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm a sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas, com a sua vida, superam todas as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, ainda assim, condenados; são assassinados, e, deste modo, recebem a vida; são pobres, mas enriquecem a muitos; carecem de tudo, mas têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, recebem a glória; são amaldiçoados, mas, depois, proclamados justos; são injuriados e, no entanto, bendizem; são maltratados e, apesar disso, prestam tributo; fazem o bem e são punidos como malfeitores; são condenados, mas se alegram como se recebessem a vida. Os judeus os combatem como estrangeiros; os gregos os perseguem; e quem os odeia não sabe dizer o motivo desse ódio.
Assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo; os cristãos, por todas as partes do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não pertencem ao mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são visíveis no mundo, mas a sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, mesmo não tendo recebido dela nenhuma ofensa, porque a alma a impede de gozar dos prazeres mundanos; embora não tenha recebido injustiça por parte dos cristãos, o mundo os odeia, porque eles se opõem aos seus prazeres desordenados. A alma ama a carne e os membros que a odeiam; os cristãos também amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; os cristãos estão no mundo, como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita em uma tenda mortal; os cristãos também habitam, como estrangeiros, em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada no comer e no beber, a alma se aprimora; também os cristãos, maltratados, se multiplicam mais a cada dia. Esta é a posição que Deus lhes determinou; e a eles não é lícito rejeitá-la”. (Sublinhado meu)
Trecho da Carta a Diogneto
Um exercício:
Como seria escrita a Carta a Diogneto nos dias de hoje?
Referência 1) http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/carta-de-diogneto.html
9 respostas em “Os cristãos, ontem e hoje”
Se considerarmos que o protestantismo surgiu oficialmente no ano de 1517, podemos concluir que, nos dias de hoje, referida “Carta a Diogneto” não se aplicaria. O surgimento das igrejas protestantes dividiu o que deveria ser unidade e interesses e questões econômicas se sobrepuseram a fé. Hoje o cristianismo abrangido por inúmeras denominações religiosas disputa entre si, qual denominação é maior ou melhor do que a outra. Qual faz mais “milagres” entre seus seguidores. A fé virou disputa, os milagres foram banalizados e parte dos cristãos enganados. A disputa, infelizmente, não é defender a ressurreição a reencarnação, mas sim menosprezar ou diminuir, sem qualquer razão de ser, Nossa Senhora a Virgem Imaculada! Em resumo: o Autor da Carta ficaria decepcionado com o rumo em que o cristianismo seguiu.
Será que teríamos coragem de reescrever esta carta? Acredito que eu não. Mas, esforcar-me-ei para tentar. Vivo no mundo e, luto para não ser do mundo. Nem sempre venço a batalha. Senhor, venha em meu socorro.
“Parabéns Gilberto pelo desizar tão suave nas palavras irineulisando mais esse lindo texto…” 1° vez ouvido
Obrigado pela pergunta,mas ainda não cosigo responde com clareza. O texto é 10 e “catucante” meu caro Irineu. Se alguém me der uma resposta posso refletir melhor … é 2° dom do advento e Bom Silêncio nos acompanhe
Lembro-me de Santos Santas verdadeiros imitadores do Cristo que foram maltratados e até expulsos da Igreja ex. Santa Paulina… (a ordem ainda faz desordens…) pena.
Muito a ver com muitos de nós. Texto (maravilhoso). Hoje temos grupos e pessoas instruídas a pregar o ódio. Vale salientar que vieram da mesma mesa, mesma casa (judas). Uns são deserdados, porém há outros tantos que se opõem e crucificam o Cristo outra vez. Obg Irineu pelas orações.
Um texto admirável 👏👏👏mais um pra minha coleção.
Vou ler novamente 🙂🙂🙂
Palavras muito atuais para este tempo que nós tocou viver
Já li três vezes… muito bom!!! Um abraço.