O texto abaixo é o Primeiro Capítulo da pesquisa que o autor realizou na conclusão do bacharelado em Teologia, em 2015, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob o tema: O Catolicismo e a Revolução Francesa.
A Igreja Católica, em sua longa história, originária do judaísmo ao qual Jesus e sua família terrena pertenciam, desde os primórdios, iniciando com os padres apostólicos, passando pelos santos padres – Patrística vivenciou em sua história, 21 concílios ecumênicos, sendo 19 deles, anteriores ao advento da Revolução Francesa iniciada em 1789, enfrentou dificuldades de toda ordem, tanto internas, mormente pelas heresias que obrigavam os concílios a adotarem um posicionamento visando à preservação da unidade não só institucional, mas também doutrinária, quanto aos conturbados contextos histórico-político-sociais que, inevitavelmente, a envolveram. A Revolução Francesa foi, seguramente um dos períodos bem difíceis de sua história, diante do Iluminismo cujos ideais compreendiam um posicionamento totalmente contrário à religião e anticlericalista. O problema à Igreja Católica é que todo esse radicalismo contrário não ficou apenas na propagação e discursos, chegando às raias da violência para colocar em prática os seus ideais.
Conceito de Revolução e a situação da França católica
A propósito do conceito de Revolução e para que se considere ao longo do trabalho sobre catolicismo e Revolução Francesa, ou, como alguns a definem Revolução Burguesa, como já citado algumas vezes, pelo mestre em sala de aula, Hannah Arendt afirma que:
Só se pode falar de Revolução, quando a mudança se verifica com vistas a um novo início, quando se faz uso da violência para constituir uma forma de governo absolutamente nova e para tornar real a formação de um novo ordenamento político, e quando a libertação da opressão visa pelo menos à instauração da liberdade.
Como bem destacado nas aulas do ano passado de História da Igreja Medieval, a França teve uma posição destacada no Cristianismo. O episódio da conversão ao catolicismo do povo franco até o período do cativeiro de Avignon, onde se instalara, por força das circunstâncias, o papado, gerando toda aquela confusão de Papa na cidade francesa premido pelas circunstâncias, outro Papa em Roma, que marcara profundamente a trajetória da Igreja Católica analisado em sala de aula, assumiu natureza tragicômica. Na verdade, episódio vergonhoso para todo católico. Alie-se a tudo isso a realidade nada edificante que imperava na Igreja, em que corrupção de costumes, nepotismo, incursões sexuais dos que detinham posições destacadas na hierarquia, inclusive dos sumos pontífices, ignorando por completo o voto de castidade, pobreza e tudo o mais que é exigido quando da ordenação e eleição.
Pode-se afirmar, depois de tudo que se estuda sobre a História da Igreja que, especificamente no que se refere ao papado, houve substancial mudança após o Concílio de Trento, mantendo-se a dignidade própria daquele que ocupa a cátedra de São Pedro. Não é outra Igreja, porém, apresenta-se bem diferente.
A França enfrentou pontos de conflito entre católicos e protestantes, fato que levara à consideração dela como filha predileta da Igreja. Aliás, o título era bastante apropriado. O catolicismo na França vivia momentos gloriosos, considerando que o povo participava vivamente dos ritos religiosos e os párocos, conforme prescrevera o Concílio de Trento, zelava pela vida religiosa dos paroquianos, enfim, da sociedade à qual correspondia sua atuação. A população era majoritariamente católica.
Aliança da Igreja Católica com a Monarquia
Não só vivia o auge a Igreja Católica. Detinha influência política considerando-se que o poder divino é que garantia o poder absoluto do rei. Até mesmo o clero, o Alto Clero, desfrutava de status de Estado. Não de qualquer Estado, mas do Primeiro Estado, seguindo-se o Segundo constituído da Nobreza que “mamava” nas tetas da corte e do palácio, desfrutando de cargos públicos e títulos adquiridos que eram bens transmissíveis por herança, e, por fim, pela imensa maioria, em torno de 98% da população que sofria toda sorte de exploração, sendo obrigada ao pagamento de impostos. Este último compunha-se dos pequenos burgueses, camponeses sem terra e os “sans-cullotes” que tinham esse apelido por causa das toscas calças comparadas com os finos e nobres tecidos das roupas das classes superioras. Eram artesãos, proletários e os trabalhadores mais simples.
Sobre o auge do catolicismo, alguns recortes sobre a celebração católica da Revolução, facilitam à visualização:
Não obstante, a Revolução começara com uma procissão solene do Santíssimo Sacramento onde figurava, com um círio na mão, Robespierre. Longe de proibir a Igreja ou separar-se dela, a Assembleia Constituinte quis transformá-la em peça chave do Estado…
LEFLON, Jean.
Em comemoração à queda da Bastilha, o semanário Révolutions de Paris descreve a cerimônia de 30 de julho assim:
A maioria de jovens se reúne e contribui em cada bairro para poder dar graças à Santa Genoveva, pela feliz revolução, que acaba de acontecer. As jovens […] foram as primeiras a manifestar-se em procissão pelas ruas de Paris. […] Ó bem-aventurada Genoveva, quantas preces atendeste. Nas Igrejas ressoavam cânticos de ação de graças pela tomada da Bastilha. Procissões de moças, quase sempre deleitáveis …
SABORIT, I.
Essas citações, encontramo-las, no livro Religiosidade na Revolução Francesa e mostram, em detalhes, cenas do cotidiano parisiense, lembrando-nos bastante do que ocorriam nas pequenas cidades, por exemplo, do interior de Minas Gerais ou de São Paulo.
Há nesse livro curiosíssimas referências do abade Chaix a discurso que exaltava a aliança da Igreja com a Monarquia durante a tomada da Bastilha e outro que servia à bênção das bandeiras do distrito de São Vítor que demonstram com clareza meridiana a “influência da religião sobre o patriotismo e a liberdade”, inclusive com uso do preceito bíblico: Ama a teu próximo como a ti mesmo, como inspirador da moral patriótica relativa à fraternidade, que ao lado da igualdade e liberdade, constituía o lema da campanha revolucionária.
Dado histórico que ajuda a entender o cenário católico na época:
Às vésperas da Revolução, havia mais cristãos vivendo na França que em qualquer outro país. A vida profissional de um grande número de franceses foi toda dedicada à Igreja Católica, para quem eles trabalhavam como funcionários, sacerdotes, monges, freiras e empregados.
BLAYNEY, G.
O “juramento da sala do jogo da Péla” e os Estados Gerais
Uma investida dos promotores da Revolução Francesa foi contra o que entendiam como estruturas feudais que subsistiam ainda na Igreja Católica. Tanto que a Assembleia Constituinte bem como a Constituição Civil do Clero, continham medidas que atingiam frontalmente o clero católico como a proibição do dízimo, o confisco dos bens do clero para tentar saldar a dívida nacional, colocando em difícil situação o catolicismo. Mesmo assim, apesar do desconforto diante de tais medidas não houve, inicialmente, um conflito direto entre a Igreja e a Revolução. O teor do exposto poderia dar a entender que o religioso consistia num dos motivos da Revolução, não fosse a ilustração feita anteriormente. Na verdade a ideia de que a Revolução era contra a Igreja estava no pensamento de parte do clero. A revolução tinha outros objetivos muito mais amplos do que atacar a Igreja ou a Religião.
Os motivos que levaram à Revolução foram econômicos, sociais e políticos. A situação financeira deficitária da França decorrente do envolvimento em várias guerras aliada à agricultura que pouco produzia por falta de política e excesso de inverno rigoroso, gerando situação de fome e elevado custo de vida, acabaram por levar o rei Luiz XVI a cobrar impostos dos dois Estados privilegiados: Alto clero e nobreza.
Deu no que deu. Insurgiram-se os atingidos contra a tentativa que, inconformados, acabaram por buscar apoio no Estado majoritário em contingência humana. Ora, união impraticável, posto que divergência e conflito entre o Terceiro Estado e os dois outros privilegiados era a regra. Disso tudo, resultou a força dos que eram excluídos das decisões políticas, no episódio conhecido como “juramento da sala do jogo da Péla”, juramento este vitorioso em seu intento que foi o de conseguir uma nova constituição que pusesse fim às injustiças, inclusive de votação das leis em que não era considerada a quantidade de votantes, mas o voto se regulava por Estado, fazendo com que o povo mesmo jamais conseguisse vitória.
A convocação dos Estados Gerais feita pelo rei era para decidir e votar a extensão dos impostos a todos os grupos sociais. Na assembleia havia uma ampla diversidade de interesses entre o Clero, a Nobreza e o Terceiro Estado. O conflito de interesses revelava a notória dificuldade: havia membros do Clero e da Nobreza que não queriam o fim dos privilégios mas, defendiam uma limitação aos poderes do Rei. Por outro lado representantes da burguesia queriam o fim dos privilégios do Clero e da Nobreza mas ao mesmo tempo reivindicavam extinção de alguns impostos que pesavam sobre a economia e impediam o amplo desenvolvimento das atividades comerciais na sociedade francesa. A burguesia representando o terceiro Estado não obstante visava a defender os seus próprios interesses, as necessidades do campo e das cidades que não eram exatamente prioridades nesse momento.
Uma crônica histórica, a respeito do dia da convocação revela a influência católica na Revolução Francesa. Um clima de lua de mel reinava nos primeiros tempos:
Manhã de 4 de maio de 1789, segunda-feira. […] O grande acontecimento, a reunião dos Estados Gerais, inicia-se com uma procissão. Na praça, em frente à Igreja de São Luiz, já estão os deputados cada um com um círio na mão. […] A procissão se movimenta nas ruas bordadas de guardas, entre os quais, em vistoso uniforme, os suíços. Na frente, vinha o clero de Versallhes…
FLAKE, Otto.
O calendário “católico” x calendário revolucionário
Outro aspecto revelador da sanha anticatólica: o calendário gregoriano se impunha com as suas festas, dias santos e feriados ligados ao catolicismo, além do que ao clero cabia presidir as cerimônias civis de casamentos, os registros civis de nascimento e óbito. A Reforma instituiu um novo calendário que não mais observava os preceitos católicos, totalmente diferente. O novo calendário com as instruções foram enviadas a toda a administração, aos tribunais, aos juízes de paz, aos ofícios públicos, às instituições e organizações da sociedade civil. Dá para imaginar os transtornos causados por causa dessa mudança que envolvia documentos, títulos, compromissos, festividades, agendas públicas, privadas e tantos outros expedientes em que a data tem importância fundamental. Até a História encontra dificuldade para fazer referência de datas, acarretando aqueles nomes estranhos de meses que se relacionavam com as estações do ano: vindimário, brumário, frimário, nivose, pluviose, ventose, germinal, floreal, prairial, messidor, termidor e frutidor. Tudo que pudesse lembrar os costumes católicos era definitivamente rejeitado. Se o calendário da Revolução se perpetuasse e valesse para o restante do mundo, poderíamos afirmar que as aulas do primeiro semestre de 2014 se encerrarão em 30 Ventose do ano 325 ou algo semelhante.
Igreja Católica e a descristianização
Minguava a cada dia a influência católica na vida social e política. Fato significativo a renúncia ao poder divino, a qual fora obrigado o rei Luiz XVI, antes de enfrentar a guilhotina, o que o levou a ser considerado um simples cidadão comum. Aquelas atividades civis: casamento, nascimento e óbitos, evidentemente, saíram das mãos da Igreja.
O distanciamento do episódio estudado nos leva à perplexidade, ante alguns fatos narrados pela História. Esse é o caso da secularização dos bens da Igreja. Quem propôs foi um bispo em 10 de outubro de 89. Seu nome: Talleyrand, Bispo de Autun. Ele, da tribuna, desferiu o golpe na Igreja Católica da qual devia ser guarda. Propôs que houvesse a apropriação dos bens da Igreja pelo Estado. Tudo isso, usando uma linguagem suave, moderada, habilmente calculada para que não ficasse assustada “a ovelha que ia ser tosquiada, antes de ser degolada”. Diz a História que ele era um bispo ateu e que carregava uma série de vícios em seu currículo. (Ainda bem que isso não mais existe na Igreja Católica!). Uma definição que mais parece folclore acerca do comentado bispo ateu, feita por Napoleão: “uma meia de seda cheia de esterco”.
Em 2 de novembro de 1789 a lei foi votada e aprovada pela Assembleia, após intensos debates. Pronto. A Igreja espoliada e desnuda. Luiz XVI assinou e sancionou juntamente com o Arcebispo de Bordeaux, Monsenhor Champion de Cicé. Chancelada pelo sucessor dos apóstolos!
É de destacar que
O clero apoiou de maneira larga as reclamações do Terceiro Estado e, nos primeiros tempos da Revolução, inseriu-se na onda patriótica, benzendo as bandeiras da Guarda Nacional. Mesmo o “pôr à disposição da Nação” dos bens eclesiásticos, com a abolição dos direitos feudais a quatro de Agosto de 1789, não foi vivido como um momento de luta anti-religiosa: a Assembleia legislou imediatamente sobre a manutenção do clero. E a primeira festa da Revolução, 14 de Julho de 1790, foi uma missa campal, concelebrada no Campo de Marte, diante dos representantes dos departamentos, por trezentos sacerdotes, entre os quais o pároco de Saint-Sulpice, Monsieur de Paucemont, que será dentro em breve o chefe dos “refratários”. Claro que há divisões no clero – mas são políticas, e assumidas como tal. Um ano depois da tomada da Bastilha, não há nenhuma frente séria de conflito entre a Igreja e a Assembleia.
SEABRA, Pe. João.
Bibliografia (de toda a pesquisa) Livros: BIHMEYER,K.; TUECHLE, H.; MONS. CAMARGO, P. F. da Silveira. HISTÓRIA DA IGREJA. Vol. 3º. São Paulo: Edições Paulinas, 1964.. BLAYNEY, G. Uma breve história do cristianismo. 1. ed. São Paulo: Editora Fundamento Educacional Ltda., 2012. FLAKE, Otto. Revolução Franceza. Tradução de Alcides Rossler. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. KNOWALES, M.D. Nova História da Igreja – IV. 2.ed. Sob direção de L.J. R. Aubert. Petrópolis: Editora Vozes, 1984. MATOS, H. C. José. Hstória do Cristianismo – Estudos e Documentos – vol IV. Belo Horizonte, 1990. RIBARD, André. História do povo francês. Tradução de Elias Chaves Neto. São Paulo: Editora Brasiliense Limitada, 1938. SABORIT, I. Terradas, Religiosidade na Revolução Francesa. Rio de Janeiro: centro edelstein de pesquisas sociais, 2009. VOVELLE, M. A Revolução Francesa, 1789 – 1799; Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Editora Unesp, 2012. Web-sites: FABER, Marcos. História dos Partidos Políticos na Revolução Francesa. Disponível em HTTP://www.historialivre.com/contemporanea/partidos_politicos_franca.pdf.. Acesso em 19.abr.2014.. FIGUEIRAS, André. TOMAZINE, Daniel. CASAZZA,Ingrid. A Revolução Francesa e a Religião Católica.Disponível em www.historia.uff.br. Acesso em 26.abr.2014. JORGENSEN, Diego de Quadros. Os caminhos do sagrado e a construção da modernidade jurídica. Disponível em http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/handle/1884/31053. Acesso em 26.abr.2014. SEABRA, Pe. João. Disponível em http://tubadocabo.wordpress.com/2011/01/11/catolicismo-e-revolucao-francesa Acesso em 01.maio.2014.