Aurélio Agostinho nasceu na Numídia1, África, em Tagaste, no dia 13 de novembro de 354. Seu pai, Patrício, de provável origem romana, não era o exemplo ideal de um pai de família, pois se ausentava de suas responsabilidades de esposo e pai por conta da satisfação de prazeres fora de casa. Permaneceu pagão até pouco tempo antes da morte. Mônica (sim, a futura Santa Mônica), mãe de Agostinho, era o tipo de esposa ideal, conservava os valores cristãos, perdoava constantemente seu esposo e se esforçava por ensinar os mesmos valores ao filho.
Agostinho nasceu na África e morreu na África. Diferente de outros grandes padres da época, Agostinho não empreendeu grandes viagens além dos cinco anos que passou em Roma e Milão, na Itália. Todos os problemas de sua época lhe foram pertinentes, entretanto não abandonou sua pátria.
A África no século IV
A África em que nasce Agostinho é distinta da África conhecida hoje. Constituída antigamente por contingentes das mais diversas nacionalidades e culturas: os aborígenes, conhecidos como líbios; mouros ou berberes; os fenícios, que foram os antigos fundadores de Cartago, tinham inúmeros descendentes; e muitos comerciantes. Judeus também formavam um grande grupo que emigraram para a África, e, embora fora do seu território, mantinham-se como um grupo à parte, com seus ritos, suas sinagogas e conservando a língua hebraica para o culto.
No que se refere à língua, o grego era o idioma mais falado nas principais cidades, até que o latim fora colocado como língua de cultura na África pelo poder romano. Toda essa diversidade foi adubo para que, do século III aos primórdios do século V, a Igreja crescesse com vitalidade, marcada ainda por novos desafios, como o cisma donatista2 ainda no século IV, mas tendo boas ferramentas para suportar a fé com a luz que ali se acendia: Agostinho.
O furto das peras
Mas, antes de ser um dos grandes Padres da Patrística, Agostinho “causou”. Sua sede pelo Eterno o impulsionou a perigosas excursões no que era perecível, experimentando o pecado, os vícios, para ver se ali encontrava a Verdade que gritava em sua alma. Em uma dessas excursões, o futuro santo se passou por ladrão. Deixemos que ele mesmo conte a sua empreitada:
Tua lei, Senhor, condena certamente o furto, como também o faz a lei inscrita no coração humano, e que a própria iniquidade não consegue apagar. Nem mesmo um ladrão tolera ser roubado, ainda que seja rico e o outro cometa o furto obrigado pela miséria. E eu quis roubar, e o fiz, não por necessidade mas por falta de justiça e aversão a ela por excesso de maldade. Roubei de fato coisas que já possuía em abundância e da melhor qualidade; e não para desfrutar do que roubava, mas pelo gosto de roubar, pelo pecado em si.
Havia, perto da nossa vinha, uma pereira carregada de frutos nada atraentes, nem pela beleza nem pelo sabor. Certa noite, depois de prolongados divertimentos pelas praças até altas horas, como de costume, fomos, jovens malvados que éramos, sacudir a árvore para lhe roubarmos os frutos. Colhemos quantidade considerável, não para nos banquetearmos, se bem que provamos algumas, mas para jogá-las aos porcos. Nosso prazer era apenas praticar o que era proibido.
AGOSTINHO S. Confissões. Livro II, p 51.
Busca pela Verdade
Ainda na juventude Agostinho mostrava aptidão para a filosofia. Seu pai, querendo se valer disso, se empenhava para fazer do filho um retórico – um dos caminhos possíveis para conquistar os mais notórios e lucrativos cargos da época – e o mandou aos estudos dos clássicos latinos. Mais tarde, patrocinado agora pelo mecenas Romaniano, vai para Cartago estudar retórica. Tudo fazia crer que havia um futuro especial para Agostinho (e sim, havia), porém, enquanto nutria seu intelecto, também se entregava à paixões da mocidade: conviveu com uma moça que concebera um filho seu, Adeodato; porém sem nunca se casar. Os vícios e os prazeres da carne, embora fúteis, faziam parte do cotidiano de Agostinho.
Em paralelo a toda esta vida agitada havia uma mãe, Mônica, que rezava incansavelmente para que o filho voltasse ao reto caminho. No entanto, contrariando as orações maternas, Agostinho ingressa na seita que dominava pensamentos inquietos como os seus, o maniqueísmo3. Ele considerava uma filosofia mais crível do que a “irracionalidade da Igreja Católica”. Tudo pela busca da verdade.
Quando terminara os estudos, Agostinho começa a trabalhar como professor em Cartago. Permanece ai por quase dez anos quando sente a necessidade de se mudar para Roma, onde escutara que os alunos eram melhores, mais educados e interessados ao ensino. Já em Roma, Agostinho adoece gravemente, quase morre e, então, milagrosamente se recupera. Mais tarde aponta a intercessão de sua mãe como a causa de sua salvação e do restabelecimento da sua saúde.
Agostinho passa a recrutar alunos e em pouco tempo consegue um número suficiente para iniciar seu magistério em Roma. Ele constata que, de fato, os romanos são mais aplicados aos estudos e respeitosos que seus compatriotas de Cartago. No entanto se depara com uma grande desilusão: os alunos eram melhores, mas tinham o péssimo costume de não pagar os professores. Quando chegara o ajuste de contas, desapareciam.
Agostinho repensa sua situação em Roma e, embora fosse bem acolhido por parte dos maniqueus da cidade, preferia a lealdade dos indisciplinados alunos de Cartago. Neste ínterim surge uma nova oportunidade: procura-se um professor de retórica para Milão. Novamente pela ajuda dos maniqueus, Agostinho consegue a vaga e parte para Milão.
O bispo Ambrósio e a conversão de Agostinho
Em Milão o nome de Agostinho ganhou prestígio. Seus discursos tinham beleza e eram artisticamente eloquentes. Foi então que a vaidade passou a encher a alma de Agostinho pelo sucesso que alcançara. Chega aos seus ouvidos notícias sobre outro mestre conhecido, o bispo de Milão, Ambrósio, o qual passou a escutar seus discursos e reflexões assiduamente. Agostinho não buscava novas ideias para si, mas ficava fascinado pela forma que o bispo expunha suas ideias e interpretava as Sagradas Escrituras. Sem perceber, porém, os ensinamentos de Ambrósio passaram a fazer sentido para Agostinho, que já questionava a doutrina maniqueísta, tendo cada vez mais próximo de si a Verdade que desde sua juventude buscava. A novidade perturbadora esta justamente no fato de que tal Verdade estava, desde o início, onde ele menos acreditava: na Igreja Católica.
Depois de um processo de confronto interior, o grande sim foi dado na Páscoa de 387, quando Agostinho, seu filho Adeodato e um grande amigo, Alípio, foram batizados pelo bispo Ambrósio:
Fomos batizados, e desapareceu qualquer preocupação quanto à vida passada. Nesses dias, não me saciava a maravilhosa doçura de considerar a grandeza de teus desígnios para a salvação da humanidade. Quantas lágrimas verti, de profunda comoção, ao mavioso ressoar dos teus hinos e cânticos em tua igreja! Aquelas vozes penetravam nos meus ouvidos e destilavam a verdade em meu coração, inflamando-o de doce piedade, enquanto corria meu pranto e eu sentia um grande bem estar.
AGOSTINHO S. Confissões. Livro IX, p 243.
A morte de Mônica
Agostinho estava retornando à África quando sua mãe Mônica veio a falecer. Um duro golpe para o coração de um filho que atribui à mãe todo o sucesso da sua jornada em busca do sentido último da vida: Jesus, a grande Verdade. Em todas as circunstâncias da vida de Agostinho sua mãe permaneceu perto o máximo que pôde, rezando e aconselhando. Mônica sofreu, mas teve uma morte feliz, pois viu realizar no filho o pedido que tanto fez a Deus: sua conversão.
Aclamado sacerdote… e bispo de Hipona
Algum tempo depois, já em Hipona, Agostinho é aclamado sacerdote pelo povo. Ordenado pelo velho bispo Valério, o antigo professor de retórica chora pela indignidade de assumir tal cargo diante do povo. Mas não parou por ai. Depois de quatro anos o bispo Valério, sob a máxima aprovação popular, ordena o jovem padre Agostinho (42 anos) como bispo. Seu nome transcende os limites de Hipona e corre do Ocidente ao Oriente. Sua atividade principal é a pastoral, fazendo-se tudo a todos, mas é grande o desenvolvimento literário em defesa da fé católica. Passam-se os anos em incansável labor do ministério episcopal e também na publicação de escritos dogmáticos, morais, exegéticos, pastorais e outros.
Entre o terceiro e quarto ano da invasão dos vândalos na África, noite de 28 de agosto de 430, Agostinho vem a falecer, com 76 anos de idade. Desaparece a figura do grande bispo de Hipona. Mas seu nome, obras e pensamento continuariam através dos séculos.
Tarde te amei!…
Agostinho foi e é um dos grandes influenciadores do pensamento teológico-cristão. Seus escritos viraram clássicos da literatura mundial, como a conhecida Confissões. Mas Agostinho desperta interesse igualmente por ter sido um homem, de carne e osso, que perseguiu a intrínseca aspiração do coração do homem pelo Eterno; testemunhando com a própria vida que nem sempre pegamos o caminho certo para isso.
Termino com a celebre constatação que Agostinho faz ao reconhecer que, tudo do que buscou fora, já estava desde o início dentro de si mesmo:
Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz!
AGOSTINHO S. Confissões. Livro X, p 295.
Esse artigo foi gravado em vídeo e está disponível no canal do Areópago. Vide abaixo.
Notas 1) Numídia é o antigo nome de uma região ao norte da África, localizada no território onde hoje estão a Argélia e a Tunísia. 2) O cisma donatista ocorreu no Norte da África, no início do século IV, quando um grupo de bispos da Numídia negou-se a reconhecer a legitimidade da consagração do novo bispo de Cartago, Ceciliano, alegando que tanto ele quanto os que o ordenaram eram traditores. Os dissidentes elegeram seu próprio bispo e afirmaram ser a verdadeira Igreja cristã. Os partidários de Ceciliano os chamaram de "donatistas", em virtude do nome de um dos líderes, o bispo Donato, de Cartago. Condenados como cismáticos, tornaram-se alvo de repressão pelo Império e pelo Papa. 3) Maniqueísmo é considerado uma filosofia religiosa, que afirma existir o dualismo entre dois princípios opostos: o bem e o mal, Deus e o Diabo. Foi muito disseminado no Império Romano.
Referências 1) AGOSTINHO, S. De Civitate Dei: volume 1. Trad. Oscar Paes Leme. São Paulo: Editora das Americas, 1964. 2) AGOSTINHO, S. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus: 1984.