Homens pecadores podem fazer uma Igreja santa?

Se você quer assistir um filme que elogie a Igreja e os católicos, não vá assistir Conclave. Não é uma obra anticlerical ou laicista. Pelo contrário, sabendo que o autor do livro em que se baseia tem origem protestante e que o diretor se autodenomina um “católico relapso”, deve-se reconhecer que houve cuidado em ser fiel àquilo que é realmente um conclave, valorizando a beleza estética de seus ritos e a dignidade dos prelados.

Infelizmente, os próprios católicos frequentemente mostram uma visão distorcida da Igreja – que os não católicos acabam aceitando, alguns com boa, outros com má intenção. Assim, alguns não admitem que possa haver prelados pecadores, outros acreditam que todo prelado é pecador contumaz só pelo fato de ter galgado cargos na instituição.

De qualquer forma, é um filme hollywoodiano, que precisa manter o espectador interessado numa trama que envolve um bando de homens de idade enclausurados em um prédio, sem assassinatos ou roubos espetaculares. Algumas licenças narrativas, deslizes teológicos e situações mirabolantes, pouco prováveis, eram inevitáveis.

A questão determinante

A pergunta que orienta toda a narrativa é bastante pertinente: como uma instituição santa pode ser construída a partir de dirigentes pecadores? No fundo, os autores reconhecem a santidade da Igreja e mesmo os pecados dos prelados frequentemente recebem um olhar compassivo. O problema é que a santidade da Igreja é vista sob a ótica da mentalidade dos autores, que pode nem sempre corresponder à doutrina católica. Assim, o filme nos mostra como as pessoas de boa vontade, mas sem uma fé católica bem-informada, gostariam que a santidade da Igreja se apresentasse – e isso não é pouca coisa!

O perdão, o acolhimento aos pecadores, a possibilidade de algum tipo de recomeço estão sempre presentes no filme. Porém, os “bons” (caracterizados com um estereótipo progressista) erram, mas se redimem em algum momento, enquanto os “maus” (escrachadamente conservadores) se afundam cada vez mais em sua maldade – e são derrotados no final. Muitos católicos se sentirão ofendidos por essa representação até caricatural dos confrontos internos da Igreja, mas – novamente – temos que reconhecer que o filme mostra uma história onde Deus está presente, fazendo com que até mesmo os pecados humanos sirvam, por meio de uma série de eventos imprevistos, para a edificação de uma Igreja santa (e, não se pode negar, os papas são retratados como homens bons).

in pectore

Uma figura central na trama é o cardeal in pectore, nomeado secretamente pelo papa. A prática de nomear cardeais in pectore, no caso de bispos que podem correr risco de vida em função de sua nomeação, é relativamente comum na história da Igreja. Que um deles surja no conclave sem que ninguém soubesse de sua existência já é uma coisa menos provável. Esta pode ser considerada uma das situações mirabolantes da história, ainda que se baseie em casos reais.

Cuidado, spoiler

Por fim, é impossível evitar um grande spoiler (se você pretende ir ver o filme, pare de ler aqui e volte à leitura depois de ter assistido). Existem indivíduos, denominados intersexuados, como um dos cardeais do filme, que apresentam órgãos sexuais tanto masculinos quanto femininos. A intersexualidade, em si, não é homoafetividade. Decorre de mutações gênicas bem conhecidas, ainda que muitíssimo raras, e as pessoas intersexo costumam se comportar segundo sua anatomia externa sugere. Por isso, no passado, muitos passavam desapercebidos, apesar de serem, geralmente, inférteis e terem um equilíbrio hormonal diferente (o que pode ter impacto nas práticas desportivas). A esperteza do autor reside em utilizar essa figura, tão rara e para a qual não existem indicações específicas do magistério, para acrescentar suspense e drama à narrativa. Contudo, deve se observar que o personagem intersexual do filme, que originalmente nem sabia de sua condição, e tinha se mantido casto ao longo da vida, exercia seu sacerdócio como homem, pois assim entendia que Deus o tinha apresentado ao mundo – ou seja, respeita e vivia de “forma ordenada” a sexualidade com a qual tinha nascido.

Filme anticatólico?

Para o povo católico, a maior lição do filme é constatar o grande anseio, que de fato existe, por uma Igreja capaz de amar, perdoar e acolher. Não é um filme anticatólico, mas é um filme que chocará a todos aqueles que assumem um certo identitarismo católico, mais preocupado em condenar um mundo que aparentemente os feriu do que em se assemelhar a Cristo, que amou até aqueles que o crucificaram.

CONCLAVE
Direção: Edward Berger
Roteiro: Peter Straughan (baseado no livro Conclave, de Robert Harris)
Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Sergio Castellitto, Isabella Rossellini
Produção: FilmNation Entertainment, House Productions, Indian Paintbrush (2024)
Duração: 120 min

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