Formação do Povo de Israel (Pt 1)

Reconstruir o período de formação do povo de Israel entre os anos 1200 a.E.C (antes da Era Comum) a 1000 a.E.C não é tarefa fácil. Tudo o que se disser não passa de probabilidade, é hipótese, possibilidade. Cada hipótese se constrói com a ajuda de textos da própria Bíblia, de documentos históricos extra-bíblicos, dos livros Apócrifos e da arqueologia. Assim se pode chegar próximo àquilo que deve ter acontecido naquele tempo.

A organização em forma de tribos em Israel foi uma experiência ímpar e exemplar. Não é por acaso que o êxodo, isto é, a luta por vida em terra livre, motivada pela fé no Deus libertador, seja o eixo fundamental de toda Bíblia. A experiência do êxodo também está na origem da formação das tribos.

Não será também sem razão que, ao ser destruída a experiência tribal pela monarquia, a profecia condene o reinado e anuncie que o sistema tribal está mais de acordo com os desígnios de Deus, por promover a vida e a liberdade.

Também não será sem motivo que as primeiras comunidades cristãs nos apresentem Jesus como aquele que, tal como Moisés, veio trazer um novo êxodo, uma nova Páscoa.

Não terá sido por acaso que Jesus tenha escolhido simbolicamente 12 apóstolos, para, entre outras coisas, nos dizer que sua prática de instaurar o Reino de Deus aponta para uma sociedade como a das 12 tribos, onde não há rei, pois esse título pertence somente a Deus.

São fundamentalmente essas as motivações que nos levam a refletir um pouco mais demoradamente sobre o processo que deu origem à experiência tribal. Desse modo, a espiritualidade presente nos grupos que dele participaram certamente será luz, será fonte para iluminar e irrigar a nossa mística e luta atualmente. É que também nós estamos na mesma caminhada, isto é, queremos concretizar nossa esperança por vida e liberdade em experiências alternativas àquilo que o mundo nos propõe.

A Terra de Israel no Meio de Reinos e Impérios

A história de Israel se desenvolve numa terra determinada, leva as marcas de sua localização geográfica; o local onde se desenrola está história influi no seu desenvolvimento.

A terra de Canaã ou Terra de Israel é o lugar em que se desenvolve a história de Israel. É uma terra bem delimitada pelos desertos e pelo mar. Está mais aberta em direção ao norte, no território denominado Síria.

Na direção norte-sul, Canaã é caracterizada por vales no litoral (Sarom) e pelo profundo vale do rio Jordão. Entre os dois estão as montanhas da Galileia, da Samaria e de Judá. A história do povo de Israel é a história do povo dessas montanhas.

Na direção Leste-Oeste, a terra está marcada por grande quantidade de vales, criados pelas fortes chuvas do inverno. Isso subdivide o território em muitas unidades pequenas. A terra de Israel é pequena e muito subdividida.

Há períodos de chuva e de seca, como em todo o clima do Mar Mediterrâneo, estas chuvas distribuem-se de acordo com as montanhas. As terras mais irrigadas ficam ao ocidente das montanhas, aí está a Sefelá, ou Judá.

Nestes setores das montanhas bem como nas planícies (em especial na de Jezreel) havia bosques; estes foram desaparecendo durante a história de Israel, especialmente na época dos romanos. De todo modo, a história de Israel, nos tempos tribais, começa nestes bosques, nestas matas.

Canaã se localiza entre a Mesopotâmia e o Egito. Duas rotas passam por Canaã, fazendo conexão entre os rios Eufrates e Nilo, uma é o Caminho Real, na Transjordânia. Esta era muito importante quando o poder no Egito estava mais ao sul, a outra era o Caminho dos Filisteus, junto ao litoral, esta era muito importante quando o poder central egípcio estava perto do delta do rio Nilo. Israel situa-se perto destas rotas, entre as duas, mas nenhuma passa pelas montanhas.

A terra de Canaã é parte das terras cultiváveis que, a norte e noroeste, circundam o deserto da Arábia. Costuma-se designar esta área de crescente fértil. Esta faixa litorânea, de Dã a Bersabéia, é longa, pouco menos de 250 Km. Sua largura, ao sul, é de 110 Km e vai se estreitando rumo ao norte até a região do Líbano, onde tem uma largura de aproximados 45 Km. Nesta terra, deviam viver cerca de um milhão de pessoas. O território de Israel, hoje, equivale ao estado de Sergipe.

Mapa do Crescente Fértil

Os nomes da Terra Prometida

Antes da formação do povo de Israel, essa terra era chamada Terra de Canaã, nome que aparece nos textos egípcios e de outros povos. Aí viviam os povos cananeus. A partir da organização das tribos israelitas, passou a ser chamada Terra de Israel, Terra Prometida ou ainda Terra Santa. No entanto, dependendo do contexto, Israel pode indicar a região toda (1Sm 13,19; Ez 40,2;47,18, entre outras citações).

Gregos e romanos deram a esta terra o nome de Palestina = terra dos filisteus – filistim. Inicialmente se referia à área costeira e, depois, foi aplicado, também, ao resto do país.

No ano 931 a.E.C, após a morte do rei Salomão, houve a divisão do reinado. A parte Norte ficou conhecida como Reino de Israel ou Reino do Norte, com capital Samaria; a parte Sul, foi chamada de Reino de Judá ou Reino do Sul com capital Jerusalém.

No tempo de Jesus, os romanos passaram a chamar toda a região de Palestina. As três províncias mais lembradas do Segundo Testamento são: Judéia ao sul, Samaria ao centro e Galileia ao norte.

A Terra de Israel na dependência do clima de impérios

A terra de Israel está delimitada pelo Mar Mediterrâneo a oeste e pelo deserto a leste, é uma pequena faixa de terra prensada entre o mar e o deserto. Sua vegetação depende das chuvas que vêm do lado do mar. Em Canaã o verão é seco e o inverno é chuvoso. Não só a chuva umedece as terras, mas também o orvalho desempenha papel importante no verão seco, viabilizando alguma vegetação em regiões áridas. A maioria dos rios e riachos não existe durante o ano todo, mas somente na época das chuvas.

A terra de Israel situa-se também entre dois grandes sistemas fluviais, isto é, entre o Rio Nilo no Egito e os rios Tigre e Eufrates na Mesopotâmia, onde hoje fica o Iraque. Junto a esses dois rios caudalosos, a vegetação é vigorosa e grandes impérios se desenvolveram ao longo da história. Ela fica em um corredor entre grandes potências, o que lhe traz consequências importantes.

A terra de Canaã serve, na verdade, como corredor comercial entre as potências da época. Em Canaã, o comércio não é realizado por mar ou por rios, mas por terra. A rota mais importante é a que segue pela planície litorânea. É o “Caminho do Mar”; há ainda uma estrada pela serra central, passando por Hebron, Jerusalém e Betel, e outra rota na Transjordânia, ligando o porto de Etsion-Gaber ao sul no Golfo de Ácaba, passando por Edom, Moab e Amon, seguindo até Damasco na Síria; é a “Estrada Real”.

Além de rota para o comércio internacional, a terra de Israel serve também de corredor de passagem para os exércitos nas guerras entre as potências daquele tempo.    

As cidades-estado

Em Canaã, na época anterior à formação de Israel, havia vários pequenos reinos, entre eles: cananeus, hititas, amorreus, fereseus, heveus, jebuseus e tantos outros (Ex 3,8). Eram pequenos reinos constituídos por uma cidade cercada por muralhas, que controlava um conjunto de vilas de camponeses estabelecidos ao seu redor. Esse conjunto formava um pequeno Estado. Por isso, são chamados de “cidades-estado”.

A cidade não é um fenômeno novo na época do surgimento de Israel. Descobertas arqueológicas nos dão conta de que Jericó já estava habitada pelo ano 6.000 a.E.C. e que, na época da formação das tribos, já estava totalmente arrasada.

O tamanho das cidades não era muito expressivo: Hazor (1100m x 654m), Meguido (300m x 250m), Jerusalém (400m X100m).

Como funcionavam as cidades-estado

O rei tinha poder absoluto, era chefe do exército, tinha poder sobre os sacerdotes e o templo, sobre os juízes e as terras.

Inicialmente os guerreiros trocavam seu serviço de proteção por alimentos fornecidos por quem contratava seus serviços, inclusive os camponeses.

Mas as cidades foram se fortalecendo com muros cada vez mais altos, exércitos maiores e mais poderosos. Aos poucos, as relações de troca tornaram-se relação de exploração. Então, os tributos tornaram-se extorsivos, acima do valor justo, para fins de acúmulo de riquezas e de luxo na corte ou para promover guerras de conquista.

A dominação a partir da cidade era efetivamente assegurada por uma casta de guerreiros, os hicsos, povo que dominou a região do Egito de 1780 a.E.C a 1580 a.E.C, deixou como legado, carros de guerra com rodas protegidas por bronze e puxado por cavalos, bem como couraças de bronze para os combatentes.

A dominação citadina era assegurada pelos sacerdotes, os templos, a religião. A ideologia, os ritos e os símbolos religiosos, explicavam o mundo presente como um mundo divino e eterno. Ao rei estava assegurada uma posição destacada no culto, era o sacerdote principal. Mais tarde, também no reinado de Israel, os santuários serão controlados pelos reis, exemplo está em Am7,10-13.

Assim, o templo tinha uma função simbólica e ideológica. Além disso, também tinha função decisiva na arrecadação dos tributos. O Estado arrecadava seus tributos e dízimos nas festas das colheitas, Am 7,1 relata como o tributo devido ao rei era a melhor parte da colheita.

Os camponeses pagavam tributo e serviam como mão-de-obra para a corveia

O campo vivia dependente da cidade, do rei, a quem pagava tributos em troca da promessa de proteção. Com o passar do tempo, a posse e o controle das terras passaram a se concentrar cada vez mais nas mãos de quem morava nas cidades, empobrecendo e diversificando a população camponesa quanto à sua condição social, de pessoas livres, os camponeses passaram a ser meeiros, sem-terra, servos, escravos; qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência. Nesta condição social, os camponeses se tornaram hebreus, que quer dizer pessoa marginalizada, excluída, não é mais livre, está fora do padrão social que lhe conferia dignidade.

Além dos tributos, havia o trabalho forçado e gratuito nas terras do rei e em obras públicas, como aquedutos, estradas, cidades, armazéns, palácios, templos, este trabalho forçado tem o nome de corveia.

A Bíblia relata que Salomão também mantinha muitos camponeses sob trabalhos forçados conforme 1Rs 5,27ss (na tradução Almeida está em 1Rs 5,13-18). O trabalho forçado foi uma das causas da divisão do reino após a morte de Salomão conforme 1Rs 11-12.

Além dos tributos e do trabalho forçado, as aldeias também tinham que fornecer os soldados para a guerra. Mulheres também eram recrutadas para o trabalho forçado conforme 1Sm 8, 11-17, era o “direito do rei”. As mulheres também serviam para exploração sexual pelos reis e pela corte, veja em Gn 12,10ss; 2Sm 11,1-4; 1Rs 11,1-3; Os 4,14.

Os egípcios em Canaã

Israel se forma numa terra de longa história. Em 1580 a.E.C., após a expulsão dos hicsos, começa o Império Novo no Egito, é quando o Egito estende seu domínio sobre cada vez mais terras. O faraó Tutmosés III (1468 a.E.C -1436 a.E.C), em nada menos do que 17 campanhas militares, consegue fazer de Canaã sua colônia, isso durará até 1200 a.E.C. Ao controlar a rota comercial, o Egito domina as cidades-estado que existem em Canaã, e quase anualmente fazem incursões militares para saquear e arrecadar tributos.

Os reis cananeus dessas cidades continuaram, mas dominados e controlados pelo Egito, que, por sua vez, garantia a “segurança” aos reis em troca de tributos; ao mesmo tempo eles passaram a representar os interesses do Egito.

Nessa nova situação, se antes pagavam tributo apenas ao rei local, agora os camponeses passaram a pagar um duplo imposto, um para o rei local e outro para o rei do Egito. Aumentou, portanto, o empobrecimento dos camponeses. Não tendo como pagar os tributos, os camponeses eram obrigados a prestar trabalhos forçados ou até mesmo a se vender como escravos.

A Bíblia descreve características dos estados tributários

A tributação é a base de exploração nas cidades-estado, esse sistema tributário recebe o nome de “modo de produção tributário”, esse modo de tributo se refere àquelas sociedades que organizavam sua política econômica de tal forma que o modo fundamental de acumular riquezas se dava através da cobrança de tributos sobre a produção, especialmente dos camponeses, os mais pobres. Qualquer semelhança não é mera coincidência nos dias atuais.

Nesse sistema, havia dois conflitos principais:

  • A cidade controlava e dominava as aldeias do campo, através da extorsão da produção;
  • As cidades guerreavam umas contra as outras para conquistar o domínio sobre o campo à sua volta. Em Am 1,13-15 há um relato sobre uma cidade conquistando outra.

No texto de Gn 47,13-16 é possível identificar como estava organizada a tributação no Egito, que não era muito diferente em Canaã. Nota-se que o somente o faraó e os templos eram os únicos donos das terras. Segundo esse texto, a tributação representava um quinto da produção agrícola, a classe sacerdotal, aliada do faraó, estava isenta de impostos. Importante percebermos que o trigo acumulado fora produzido pelos camponeses e na época da fome eles tinham que comprá-lo.

Mudança à vista

Ao redor de 1250 a.E.C, chegaram os Povos do Mar a Canaã, são chamados assim porque vieram pelo Mar Mediterrâneo, vieram da região da Macedônia e redondezas. Entre eles estão os filisteus, que se instalam em cidades importantes na planície litorânea, por onde passava a estrada principal na terra de Israel.

Os filisteus expulsaram o exército do faraó e impediram que o Egito continuasse dominando Canaã, sua presença representou uma verdadeira muralha que impediu o avanço dos faraós egípcios sobre Canaã, foi uma espécie de libertação de Canaã das mãos dos faraós.

O fim da colonização egípcia em Canaã influiu decisivamente para a formação das tribos de Israel. A presença egípcia garantia certa paz entre as cidades-estado na região, mas, com o fim da presença do exército do faraó, Canaã ficou entregue à própria sorte. Os reis cananeus rivalizavam entre si, lutando pela liderança regional. A principal consequência dessas guerras foi o aumento do empobrecimento, uma vez que a rivalidade entre os reis não só aumentava a necessidade de tributação, mas dificultava o trabalho no campo, que era, afinal, a fonte onde se abasteciam as cidades e as guerras.

Os “hapirus”

Soma-se a esses conflitos entre as cidades e à presença dos filisteus mais um outro grupo. Era um grupo social importante que não estava sob o controle nem das cidades locais, nem dos egípcios e cuja presença em Canaã já era anterior aos próprios filisteus. Em textos extrabíblicos daquela época, as pessoas dessa categoria são chamadas de “hapirus”, isto é, os “fora-da-lei”, os marginalizados. Eles eram bandos armados que saqueavam os territórios das cidades, ou se faziam contratar por uma cidade para combater outra. Viviam em refúgios no mato ou nas estepes, faixa de vegetação entre a mata e o deserto.

A principal resistência contra a presença dos egípcios em Canaã não vinha tanto das cidades, mas do campo, em especial desses hapirus; na Bíblia, a palavra correspondente a hapirus é hebreu. É nesse contexto de enfraquecimento dos reis em Canaã ao redor de 1200 a.E.C que surge Israel como povo, organizado em tribos.

Referências
Bíblia de Jerusalém: Paulus, 2002.
Bíblia do Peregrino: Paulus, 2006, 2ª ed. 
FRIGERIO, Tea. A formação do povo de Deus – Volume 2, Curso Popular de Bíblia. CEBI – Centro de Estudos Bíblicos. São Leopoldo – RS, 2006. 3ª ed.
GALLAZZI, Sandro. Israel na história – seu povo, sua fé, seu livro. Centro de Estudos Bíblicos. São Leopoldo, 2011.
GASS, Ildo Bohn. Uma introdução à Bíblia - Formação do povo de Israel – Primeiro Testamento – Volume 2. Centro de Estudos Bíblicos. São Leopoldo, 2007. Paulus. São Paulo, 2007. 8ª ed.

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