Introdução à Bíblia (Pt 1)

Para início de conversa, a Bíblia é um patrimônio cultural da humanidade. Trata-se, primeiramente, de textos com uma enorme força poética. Suas narrativas, seus poemas líricos e, também, seus conjuntos de leis foram artisticamente configurados. Quem gosta de ler algo bonito e bem escrito não deixará de ler a Bíblia.

No Segundo momento, a Bíblia convida seus ouvintes-leitores e leitoras a acolher a história. História daquele mundo em que a humanidade se encontra. No caso, Israel se torna paradigma, sabendo-se que, desde a suas origens no Pai Abraão, esse povo, em momento algum, chegou a existir sozinho. Ao contrário, sempre viveu na mais direta vizinhança aos demais povos no Antigo Oriente Próximo (AOP). Com isso, surgem relações bastante decisivas, tanto para Israel como para as outras nações.

Finalmente, a Bíblia é sobretudo, um livro religioso. Promove uma enorme reflexão teológica. A beleza e a força poética de seus textos fazem vislumbrar a grandeza de Deus. Seu olhar para o mundo, com os seres minerais, vegetais, animais e o ser humano, leva a pensar no Criador. E a história vivida pelo povo se torna transparente para a história da salvação.

Mesmo assim, apesar de toda essa sua grandeza, a Bíblia continua a ser um livro exigente. Por isso, além da oração, é preciso para bem entender a Sagrada Escritura. Nesse sentido, sempre de novo, a Igreja Católica fala em “priorizar a formação bíblica. O objetivo é a superação dos subjetivismos irracionais e/ou das leituras ideológicas”.

Ainda como está exposto na Constituição Dogmática Dei Verbum: “…já que Deus na Sagrada Escritura falou através de homens e de modo humano, deve o intérprete das Sagrada Escritura, para bem entender o que Deus nos quis transmitir, investigar atentamente o que os hagiógrafos de fato quiseram atentamente dar a entender e aprouve a Deus manifestar por suas palavras.”

Antes de ler qualquer coisa, vamos refletir nas seguintes questões?

  1. Qual tradução da Bíblia que você mais usa?
  2. Conhece outras traduções? Quais?
  3. O que a Bíblia significa para você?
  4. Você já encontrou gente que critica a Bíblia? O que é que essas pessoas criticam?
  5. Quando você lê a Bíblia, quais as perguntas ou dificuldades principais que tem?
  6. Quais as coisas que as pessoas acham mais difíceis de entender quando leem a Bíblia?

A Bíblia é “Luz” para nosso caminhar

Nossa proposta, nestes quatro artigos, não é adquirir conhecimentos teóricos, mas é entender o que a comunidade israelita sintetizou tão bem no Sl 119/118, 105 (vamos ler). Nossa intenção é colaborar com a força do Espírito Santo o que significa, nos dias de hoje, a Palavra de Deus.

A leitura da Bíblia quer nos ajudar, em nossos dias, a perceber a presença viva de Deus, do Seu sonho de vida e esperança, de paz e solidariedade. Por isso a Palavra de Deus é antes de tudo, como a luz de um farol que indica o caminho por onde andar. Mas não apenas ilumina. É também luz que aquece nossa esperança. Nela encontramos sentido para nossas vidas.

O texto que mais ajuda a descobrir o papel das Escrituras na vida das comunidades é a história narrada em Lc 24,13-35. Vamos ler.

A proposta dos artigos é serem um pouco como a história de Emaús. Pretendemos esquentar nossos corações, isto é, nos dar esperança, alimentar nossa mística, nossa espiritualidade. Mas não basta somente ter esperança. Importa torná-la realidade no dia-a-dia de nossas vidas, reforçando e estabelecendo relações de partilha e de solidariedade. O Reino de Deus já está em nosso meio (Lc 17,21), mas é preciso que vá se ampliando e se traduzindo em um novo jeito de conviver, mais humano e mais fraterno.

Bíblia, vida e comunidade

Para se ler a Bíblia com proveito, é importante ter os pés bem fincados na nossa Vida Pessoal, e também na vida sofrida do Povo. É em função da nossa vida real que vamos ao texto sagrado. Queremos buscar luzes, motivações, força, ânimo, enfim, a vontade de Deus para transformar nossas vidas e a vida da comunidade, do bairro, da cidade, do país, do mundo, a fim de que estas se pareçam um pouco mais com o Reino de Deus.

A leitura bíblica fica mais rica se feita em comunidade, assim trocam-se ideias, amplia-se a compreensão do texto a partir de diferentes contribuições. Em comunidade se partilha o pão, ideias, lazer, sentimentos, alegrias e tristezas, conquistas. Há um crescimento qualificado que só é possível em comunidade. A Bíblia deve ser o centro dessas trocas de experiências múltiplas.

Fica a sugestão de, você que nos lê, incentivar a leitura da Bíblia em comunidade, será uma experiência enriquecedora.

Critério principal para ler a Bíblia: defesa e promoção da vida

Jesus nos diz qual o critério para compreender a Palavra de Deus presente nas palavras humanas, escritas pelo povo de Israel. É a história desse povo, feita junto com seu Deus, que está registrada na Bíblia. O critério central que Jesus nos fornece é a defesa da vida. Defesa da vida em qualquer situação em que ela se encontre diminuída, seja na doença, na exclusão, na pobreza, na própria morte, pois Jesus nos diz: “Eu vim para que (todos) tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Vejamos Mc 3,1-6; Mt 25,31-46; Jo 10,10.

A letra do texto, seu sentido literal, é muito importante, mas importa acima de tudo buscar o seu sentido, o seu “espírito”; vejamos 2Cor 3,6.As Escrituras querem justamente nos mostrar o caminho da justiça conforme o Salmo 1. Na linguagem dos autores do livro do Dt 30,15-20, é optar entre um caminho e outro, é optar entre a vida e a morte. Amor e Fidelidade se encontram, Justiça e Paz se abraçam (Sl 85/84,11)

O Triângulo Hermenêutico:

Triangulo hermenêutico: o texto está no centro, mas ele só nos fala como Palavra de Deus se nós o lermos a partir do contexto da vida donde ele nasceu (a história do povo da Bíblia) e onde ele chega (a história do povo de hoje).

Se estudarmos o texto somente a partir da realidade da Pessoa, da Comunidade e da Sociedade da época que deu origem aos escritos bíblicos, então fazemos apenas uma interpretação do texto em si, isto é uma exegese.

O processo hermenêutico só estará completo quando interpretarmos e atualizarmos a mensagem daquela época para a realidade da Pessoa, da Comunidade e da Sociedade de hoje. A busca da mensagem do texto para a época em que foi escrito é importante. Mas essa mensagem iluminará mais nossa caminhada, na medida em que atualizarmos para nossa realidade hoje.

Bíblia, um volume com muitos livros

A palavra Bíblia é uma palavra grega que está no plural e significa Livros. Embora seja um volume só, a Bíblia contém muitos livros, é uma coleção de livros. É uma verdadeira biblioteca. A Bíblia usada por católicos contém 73 livros, a Bíblia usada por evangélicos tem 66 livros.

A Bíblia é uma coleção de livros escritos em épocas diversas, por autores diferentes e em várias formas ou estilos de linguagem.

A Bíblia é como uma colcha de retalhos

Colchas de retalhos tem diferentes formas e figuras. Olhando de perto, percebemos cada retalho, todos diferentes uns dos outros, mas que compõem a unidade do conjunto.

A Bíblia também é assim. Tem uma unidade que é o Plano de Deus. Mas na composição dessa unidade entram os diferentes livros. Diferentes na extensão, na origem, na forma de escrever ou gênero literário, nos autores, no tempo em que foram escritos, no conteúdo, em tudo. É fácil verificar, geralmente, no começo da Bíblia, está o “índice geral” com os vários títulos das coleções: Pentateuco, Livros Históricos, Livros Sapienciais, Livros Proféticos, etc. A variação é grande. Mesmo no interior de vários livros bíblicos, nós temos colchas com retalhos muito variados.

Mas o que mais impressiona quando se lê a Bíblia é a descoberta de que essa “colcha de retalhos” está em nossa casa. Isso por que a Bíblia é também como um grande espelho de parede em que o nosso rosto está refletido. É ainda como um álbum de família que guarda memória do passado. Lendo-a, muitas vezes reconhecemos que nossa vida está dentro dela ou ela está falando de nós.

Divisão dos Livros e chaves de conteúdo

No Primeiro Testamento são 46 livros assim divididos:

Pentateuco: Significa cinco rolos. São os livros que na Bíblia Hebraica são chamados de Torá, quer dizer instrução, orientação de vida. São eles:

  • Gênesis: a origem do universo, da humanidade, do povo de Israel.
  • Êxodo: a palavra quer dizer saída, narra a experiência de libertação do Egito.
  • Levítico: neste livro predominam as normas legais para o culto.
  • Números: conta como Israel liberto caminha no deserto e vai se organizando.
  • Deuteronômio: a palavra quer dizer Segunda Lei, escrita para viver a aliança com Deus.

Livros Históricos: são 16 livros. Contam a história do povo de Israel desde a saída do Egito até o Império Romano. São eles:

  • Josué: significa Deus Liberta ou Deus Salva, conta a conquista e entrada em Canaã, Terra Prometida.
  • Juízes: conta o período tribal e como Deus liberta o seu povo, suscitando salvadores.
  • Rute: narra a história de duas mulheres que lutam por pão, terra e futuro.
  • 1º e 2º Samuel: falam sobre o período da história que marca a passagem entre a época dos juízes e a monarquia.
  • 1º e 2º Reis: é relato da divisão de Israel e sobre o Reino do Norte (Israel) e o Reino do Sul (Judá)
  • 1º e 2º Crônicas: mesmo período histórico acima citado, mas com enfoque sacerdotal.
  • Esdras e Neemias: narram o primeiro período histórico do Pós-Exílio.
  • 1º e 2º Macabeus: narram a guerrilha judaica contra os reis gregos que queriam dominar o país e impor sua cultura. (estes livros não constam na Bíblia Hebraica, nem nas utilizadas pelos irmãos evangélicos)
  • Tobias: descreve como ser bom judeu na diáspora ou dispersão. (este livro não consta na Bíblia Hebraica, nem nas utilizadas pelos irmãos evangélicos)
  • Ester: é um conto que faz a memória da salvação dos judeus em meio a impérios, valorizando o protagonismo feminino na libertação do povo.
  • Judite: outro conto que denuncia a idolatria e demonstra como viver a verdadeira fé em Deus, com olhar feminino, e libertador. (este livro não consta na Bíblia Hebraica, nem nas utilizadas pelos irmãos evangélicos)

Livros proféticos: são 18 livros. Guardam a palavra dos profetas que se definiriam como “boca de Deus” (Jr 1,9; Is 51,16); iluminaram a realidade à luz da Palavra de Deus. São eles:

  • Quatro profetas maiores: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel.
  • 14 profetas menores: Amós, Oséias, Miquéias, Joel, Abdias ou Obdias, Jonas, Naum, Ageu, Habacuc, Zacarias, Malaquias, Sofonias, Baruc (este livro não consta na Bíblia Hebraica, nem nas utilizadas pelos irmãos evangélicos), Lamentações.

Livros sapienciais ou da Sabedoria, São 7 livros:

  • Jó: é uma profunda reflexão sobre o sofrimento e a fidelidade; resgata o verdadeiro rosto de Deus. Denuncia a teologia da retribuição.
  • Salmos: coleção de cantos, louvores, dores e orações do povo de Israel.
  • Provérbios: através da sabedoria popular, ensina a arte de viver bem.
  • Cântico dos Cânticos: o amor humano é sinal do amor de Deus.
  • Eclesiastes: reflexão sobre a situação através da palavra vaidade: vaidade das vaidades.
  • Eclesiástico: indica o bom comportamento na comunidade e na sociedade. (este livro não consta na Bíblia Hebraica, nem nas utilizadas pelos irmãos evangélicos)
  • Sabedoria: livro mais recente do AT, já influenciado pela mentalidade grega. (este livro não consta na Bíblia Hebraica, nem nas utilizadas pelos irmãos evangélicos)

A Bíblia Hebraica considera os livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis como Profetas Anteriores.

No Segundo Testamento são 27 livros divididos assim:

  • Evangelho Segundo Marcos, Mateus, Lucas e João: guardam a memória da chamada vida pública e do ministério de Jesus.
  • Atos dos Apóstolos: para guardar a memória das primeiras comunidades.
  • Cartas: as cartas são 21, escritas para orientar, clarear, a caminhada das primeiras comunidades, são de: Paulo, Pedro, João, Tiago, Judas, Hebreus.
  • Apocalipse: escrito para fortalecer a resistência na perseguição.

Algumas diferenças entre o Primeiro e o Segundo Testamentos

Antes e depois de Cristo
Uma primeira diferença é o tempo em que foram escritos, antes de Cristo e depois de Cristo.

Duração do tempo de redação: 1000 anos para o Primeiro e 100 para o Segundo
Outra diferença é o tempo que levaram para serem escritos. Enquanto o Primeiro Testamento levou uns mil anos para ser escrito, o Segundo foi escrito no período aproximado de cem anos apenas.

Geralmente, o processo é o seguinte: o fato acontece, é transmitido de boca em boca por tradição oral, espalha-se por vários grupos em lugares diversos, é celebrado e só depois é fixado por escrito.

Esse processo, abreviado no Segundo Testamento, foi muito longo no Primeiro. Por exemplo, a história de Abraão, tal como a lemos na Bíblia, foi escrita vários séculos depois de sua vida e após passar por várias etapas de redação em épocas diferentes. Abraão deve ter vivido em torno de uns 1500 anos a. E. C. (antes da Era Comum), e o livro do Gênesis, onde está narrada a sua memória, teve início de sua redação a redor de 950 a.E.C. e sua redação final por volta de 400 a. E. C.

Outra diferença ainda é que os livros do Primeiro Testamento podem ser considerados, de fato como “livros”, embora alguns sejam curtinhos, como as profecias de Abdias ou Obdias e Ageu. No Segundo Testamento, a maioria são cartas, algumas muito breves, que não passam de bilhetes como Fm, Jd, 2Jo e 3Jo. Entre seus 27 livros, 21 são cartas. Algumas como Rm, Ef, Hb, Tg, e 1Jo, têm exposição doutrinária, mais extensas, não parecendo cartas, são mais longas e estão recheadas de sermões. De todas, a que tem menos o estilo de carta é Hb e 1Jo.

Mais uma diferença: o Segundo Testamento foi todo escrito em grego, enquanto a maioria dos livros do Primeiro Testamento foram escritos em hebraico e algumas partes em aramaico. Os que foram escritos em grego (Tb, Jd, 1Mc, 2 Mc, Sb, Eclo, Br, Dn capítulos 2, 24-90 e 13 a 14, e Est capítulo 10, 4 a 16 não fazem parte da Bíblia Hebraica nem a adotada pelas Igrejas Evangélicas.

Há também diferenças de cultura e de lugar. A maior parte do Primeiro Testamento foi escrito em Israel. Só Ez, e Segundo ou Deutero Isaías (49-55), partes do Pentateuco, bem como alguns Salmos, foram escritos na Babilônia, quando estavam exilados. Já os livros do Segundo Testamento foram escritos em vários lugares com situações diferentes: Síria, Grécia, Ásia Menor e Roma.        

O Segundo é uma interpretação do Primeiro à luz do evento Jesus

Muitas pessoas acham difícil o Primeiro Testamento. Por isso, não querem estuda-lo. Preferem ficar somente no Segundo Testamento. Mas é muito importante também estudar o Primeiro, uma vez que sem ele não podemos compreender bem o Segundo. Este é continuação do Primeiro. O Segundo é como que uma reinterpretação do Primeiro à luz do evento Jesus. Quem escreveu o Segundo supõe que a gente já conheça o Primeiro. A todo momento há citações, referências e alusões. Quem não conhece fica sem aproveitar bem.

“Mais do que aprender a Bíblia, importa aprender dela o jeito de Deus.”

Referências
Compêndio do Vaticano II: Constituições, Decretos, Declarações. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
DIAS, Elizangela Chaves; FERNANDES, Leonardo Agostini. O Cerco de Jericó: análise de Josué 2 e 6. São Paulo: Paulinas, 2022.
DRANE, John (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2009.
GASS, Ildo Bohn. Uma introdução à Bíblia – porta de entrada. Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). São Leopoldo, 2002. Paulus. São Paulo, 2002.
PORTER, J.R. A Bíblia – guia ilustrado das Escrituras Sagradas: história, literatura e religião. São Paulo: Publifolha, 2009.
História da Tradução da Bíblia - Sociedade Bíblica do Brasil (sbb.org.br)
A tradução da Bíblia por João Ferreira de Almeida - InfoEscola

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Uma resposta em “Introdução à Bíblia (Pt 1)”

Este texto me levou até a primeira aula de teologia em 2016 e que durante o período todo do curso não perdi nenhuma aula. A Bíblia é o Caminho, a verdade é a vida para amar, adorar a Deus nosso Criador.

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