‘Talitá cum’: Jesus é o vencedor da morte!

…vós sabeis o que aconteceu em toda a Judeia, a começar pela Galileia…

At 10,37

Depois de apresentar, oficialmente, sua missão na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 18-22), Jesus se dirigiu para Cafarnaum, pequeno povoado de pescadores, situado junto ao lago de Genesaré, na região de Zabulon e Neftali, para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: “Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região além do Jordão, Galileia das nações! O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz; aos que jaziam na região sombria da morte, surgiu uma luz” (Mt 4, 14-16).

Geograficamente, o lago era o centro da Galileia e, em torno dele, surgiram os povoados. Jesus se estabeleceu em Cafarnaum e, acompanhado de seus discípulos, começou a anunciar, nos povoados da redondeza, seu ministério misericordioso, ensinando a Palavra de Deus, curando as enfermidades do povo e expulsando demônios e libertando as pessoas do mal, da indignidade e da exclusão, sempre com autoridade e poder.

“A autoridade de Jesus, que chocava pela originalidade de seus ensinamentos, é a manifestação da qualidade excepcional desse homem […]. Os antigos teólogos, particularmente Santo Tomás (III, 42,1), relacionavam a pregação de Jesus a seu “Poder”. Queriam com isso, dar a entender que Jesus em sua vida cotidiana, nada havia manifestado de seu ministério: esse é revelado aos poucos, através de sua Palavra e milagres […]. A pregação de Jesus, da mesma maneira que seus milagres, é uma epifania da glória do Filho do Homem”.

DUQUOC, 1977, p.68

A recepção de Jesus em Cafarnaum é o oposto da recepção em Nazaré. O povo procura retê-lo em seu meio. Mas, Jesus lhes disse: Devo anunciar também a outras cidades a Boa Nova do Reino de Deus, pois é para isso que fui enviado” (Lc 4,43). O Reino de Deus está no centro da missão e pregação de Jesus. Para ele o Reino aparece, em sua pregação, como a realidade última a ser buscada. Mas, este Reino não é uma realidade apenas futura, ele está também, se realizando, está próximo, está nas palavras e nas ações de Jesus.

“Jesus tem a audácia de pregar não somente a vinda do reino, como também a proximidade e a certeza dessa vinda — ainda que em princípio o reino pareça tão pequeno como um grão de mostarda (Mc 4,30ss). Diferentemente dos apocalípticos, pois Jesus não anuncia a salvação somente para o futuro, mas afirma que já está chegando”.

SOBRINHO, 1994, p.152

Deslocando-se à beira do lago de Genesaré, Jesus vai reunindo multidões ao seu redor. O povo está sedento da Palavra de Deus. “Lucas emprega o termo ‘multidões’ para designar as grandes massas de pessoas em torno de Jesus, que, embora seguissem Jesus, possivelmente de maneira entusiástica, nem sempre se traduzia em compromisso profundo e duradouro” (cf. MEIER, 1996, p.34).
Eram, na maioria das vezes, ouvintes curiosos. Mas, é do meio da multidão, onde se ouve a Palavra de Deus, que Jesus vai chamar os seus discípulos. Estar junto de Jesus, ouvindo sua palavra, é a condição primeira da constituição do discipulado. Lucas enfatiza que o chamamento ao seguimento era iniciativa de Jesus. Seu chamado era decisivo e a adesão a ele, radical.

Jesus Escolhe os Doze!

Na narrativa de Lucas, no relato do episódio da “pesca milagrosa”, Simão é chamado a seguir Jesus. Sua obediência está baseada na fé. “Mestre […] porque mandas, lançarei as redes […] Não tenhas medo! Doravante serás pescador de homens” (Lc 5,5-11). Doravante Simão será chamado Pedro. Ato contínuo Jesus chama os irmãos Tiago e João e, depois, os outros discípulos, formando, assim, o grupo dos doze, “aos quais deu o nome de apóstolos” (Lc 6,13b). Abandonando tudo, eles o seguem.

Os Doze são o núcleo mais importante e estável dentre os discípulos. Movem-se à sombra de Jesus. São testemunhas vivas da esperança que ele traz em seu coração: conseguir a restauração de Israel como germe do reino de Deus.

Durante algum tempo Jesus, acompanhado de seus discípulos, percorre as cercanias do Mar da Galileia apresentando a todos o Reino de Deus: “para entrar no Reino de Deus é importante que todos sintam como sua a preocupação de Deus pelos perdidos e sua alegria ao recuperá-los” (PAGOLA, 2014, p.179).

Os excluídos de Israel, intuindo que Jesus poderia livrá-los daquela situação de marginalização, se aproximam dele, violando a Lei e suplicando-lhe a cura e libertação de seus males (cf. Lc 5,12-6,11). Jesus se compadece do povo e, cheio do Espírito de Deus, vai curando enfermos, expulsando demônios e libertando as pessoas do mal, da indignidade e da exclusão.

Jesus, em suas andanças, vai percebendo, no contato com seu povo sofrido, que a dinâmica da vida poderia ser restaurada, que a ligação com o autor dessa força vital poderia ser restabelecida e reforçada e o sucesso dessa ação deveria ser atribuído à fé no poder de Deus. Jesus torna próximo e até sensível o poder de Deus, único capaz de provocar uma recriação (Vida Nova). Em Jesus, Deus se aproxima para libertar, do mesmo modo que em Ex 3, 7-8 (cf. CORREIA JÚNIOR, 1998, p.60).

“Só a quem é dado crer, é dado reconhecer a glória de Jesus, através dos sinais milagrosos. Isto valeu tanto outrora, como vale hoje. Quem tiver uma visão bíblica profunda dos milagres realizados por Jesus, não se perderá em detalhes insignificantes. Mateus reduziu algumas narrativas de Marcos àquilo que é mais importante. Jesus é mais que um exorcista: Ele é o Messias que age com a autoridade concedida pelo Pai (cf. Mc 1, 22-27). Só a mensagem de Jesus nos permite interpretar corretamente suas obras”.

ZILLES, 1970, p.69

Os milagres de Jesus devem ser compreendidos no contexto do anúncio do Reino de Deus: “Mas se é pelo Espírito de Deus que eu expulso demônios, então o Reino de Deus já chegou a vós” (Mt 12,28). Jesus inaugura o Reino de Deus e, os milagres, são uma chamada a uma adesão pessoal a Deus. Isto é fundamental e característico nos milagres que Jesus realizou. Reino e milagres são realidades inseparáveis. São atuações do próprio Deus, com um significado mais profundo que o próprio feito prodigioso.

Operando milagres, Jesus revela o Deus da vida!

Entre os muitos sinais milagrosos que Jesus realizou na Galileia, destacamos o relato de Marcos (Mc 5,21-43), sobre a cura de duas mulheres. Ambos os casos se relacionam com a vida e a fecundidade. As mulheres padecem, ambas estão afastadas da vida social da comunidade. A cura da mulher não tem antecedentes no Antigo Testamento, a ressurreição da menina remete aos milagres de Elias e Eliseu (1Rs 17 e 2Rs 4).

Vamos ao texto, segundo Marcos

“Jesus atravessou de novo, numa barca,
para a outra margem.
Uma numerosa multidão se reuniu junto dele,
e Jesus ficou na praia.
Aproximou-se, então, um dos chefes da sinagoga,
chamado Jairo.
Quando viu Jesus, caiu a seus pés,
e pediu com insistência:
‘Minha filhinha está nas últimas.
Vem e põe as mãos sobre ela, para que ela sare e viva!’
Jesus então o acompanhou.
Uma numerosa multidão o seguia e o comprimia.
Ora, achava-se ali uma mulher
que, há doze anos, estava com uma hemorragia;
tinha sofrido nas mãos de muitos médicos,
gastou tudo o que possuía,
e, em vez de melhorar, piorava cada vez mais.
Tendo ouvido falar de Jesus,
aproximou-se dele por detrás, no meio da multidão,
e tocou na sua roupa.
Ela pensava:
‘Se eu ao menos tocar na roupa dele, ficarei curada’.
A hemorragia parou imediatamente,
e a mulher sentiu dentro de si
que estava curada da doença.
Jesus logo percebeu que uma força tinha saído dele.
E, voltando-se no meio da multidão, perguntou:
‘Quem tocou na minha roupa?’
Os discípulos disseram:
‘Estás vendo a multidão que te comprime
e ainda perguntas: ‘Quem me tocou’?’
Ele, porém, olhava ao redor
para ver quem havia feito aquilo.
A mulher, cheia de medo e tremendo,
percebendo o que lhe havia acontecido,
veio e caiu aos pés de Jesus,
e contou-lhe toda a verdade.
Ele lhe disse:
‘Filha, a tua fé te curou.
Vai em paz e fica curada dessa doença’.
Ele estava ainda falando,
quando chegaram alguns da casa do chefe da sinagoga,
e disseram a Jairo:
‘Tua filha morreu. Por que ainda incomodar o mestre?’
Jesus ouviu a notícia e disse ao chefe da sinagoga:
‘Não tenhas medo. Basta ter fé!’
E não deixou que ninguém o acompanhasse,
a não ser Pedro, Tiago e seu irmão João.
Quando chegaram à casa do chefe da sinagoga,
Jesus viu a confusão
e como estavam chorando e gritando.
Então, ele entrou e disse:
‘Por que essa confusão e esse choro?
A criança não morreu, mas está dormindo’.
Começaram então a caçoar dele.
Mas, ele mandou que todos saíssem,
menos o pai e a mãe da menina,
e os três discípulos que o acompanhavam.
Depois entraram no quarto onde estava a criança.
Jesus pegou na mão da menina e disse:
‘Talitá cum’ – que quer dizer:
‘Menina, levanta-te!’
Ela levantou-se imediatamente e começou a andar,
pois tinha doze anos.
E todos ficaram admirados.
Ele recomendou com insistência
que ninguém ficasse sabendo daquilo.
E mandou dar de comer à menina”.

Mc 5,21-43

Nesse encontro, nesse contato, fortalece-se a experiência salvífica que brota da interação entre o poder da fé da pessoa necessitada e o poder restaurador da vida, próprio de Deus. O Reino de Deus irrompe na história, no cotidiano das pessoas.

Na narrativa de cura da mulher hemorrágica, um dos destaques é o fato de que muitos esbarravam no corpo de Jesus, no arrocho da multidão, mas não conseguiam tocá-lo com a profundidade com que a mulher o tocou, rompendo a multidão. Outro destaque, que não deve passar despercebido, é o detalhe do fracasso dos médicos, que serve para exaltar por contraste o poder de Jesus, verdadeiro médico, por força divina.

“Jesus, porém, insistiu em saber quem o tocou, ao perceber que, naquele instante, um poder saíra dele; ‘Quem tocou na minha roupa?’ a mulher, curada do seu fluxo de sangue, viu-se obrigada a contar toda a verdade. Isso sugere que a experiência profunda que nasce do contato com o Mistério de Deus na pessoa de Jesus Cristo, por ser intensa e transformadora, não pode ficar guardada na intimidade de quem a viveu. Tem que ser testemunhada […]
Assim, a transformação do corpo daquela mulher hemorrágica implicou uma postura que revela a nova condição da mulher motivada por Jesus: dar testemunho público e ser acreditada no que diz. Isso é uma grande novidade naquela cultura patriarcal”.

CORREIA JÚNIOR, 1998, p.62

Já, a narrativa de cura da filha de Jairo, chama a atenção a iniciativa corajosa de Jairo ao romper a barreira de pertença à sinagoga e suplicar a Jesus pela cura de sua filha. Jairo era o chefe da sinagoga, quem dirigia as cerimônias do culto. Era uma personalidade importante e respeitada na comunidade.

O pai supõe que as mãos de Jesus transmitam força vital de cura, até numa moribunda. Jesus se comove e acompanha Jairo até sua filha. Ao chegarem, recebem a notícia de que a menina tinha morrido. A resposta de Jesus é desconcertante: A criança não morreu, mas está dormindo. Ato contínuo, Jesus, após olhar para a menina com firmeza e muita ternura, determina a ela que se levante, ‘Talitá cum’, e a seus pais que lhe dessem de comer. Jesus devolve-lhe a vida por uma ordem soberana.

Nem todos os presentes percebem o ocorrido. Os discípulos sim, compreendem que Jesus é o Messias, o enviado de Deus que é capaz de restaurar as criaturas humanas relegadas à condição sub-humana, libertando-as da doença que as diminui e exclui do convívio social.

Mas, é a comunidade cristã primitiva que capta seu sentido mais profundo: Jesus é a vida, vencedor da morte. Na versão grega de Paulo: “Onde está, ó morte, tua vitória?” (1Cor 15,55).
Fica, assim, a mensagem para as comunidades cristãs de todos os tempos: o movimento inaugurado por Jesus precisa manter-se solidariamente aberto para todos, sobretudo para os que sofrem qualquer tipo de exclusão social […]

Mas fica, também, um alerta: a pertença a esse movimento não garante a transformação na vida das pessoas; é preciso que elas (a exemplo de Jairo e da mulher hemorrágica) estejam predispostas a acolher o dom de Deus que se faz próximo. É preciso que se disponham a fazer (e façam!) todo um itinerário de amadurecimento da fé (cf. CORREIA JÚNIOR, 1998, p.61).

Referências
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA do Peregrino. São Paulo: Paulus, 3ª edição, 2017.
CORREIA JÚNIOR, João Luiz. O Caminho que leva ao
encontro com o poder Salvífico de Deus: uma análise bíblico teológica de um itinerário de fé em Mc 5, 21-43. Revista Symposium, Vol. 2 • nº 2 • julho-dezembro, 1998.
GUTIÉRREZ, Gustavo. O Deus da Vida. São Paulo: Loyola, 1992.
RABUSKE, Irineu José. A Igreja em suas Origens: Revisitando os Atos dos Apóstolos. In: Teocomunicação – PUCRS – ISSN 0103-314X. Vol. 42, 2012.
ZILLES, Urbano. Sentido e significação dos milagres de Jesus, 1970. Disponível em: Acesso em; 6/07/2020.

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