Entendendo a Escatologia Católica (2)

Escatologia e apocalíptica

É comum certa identificação de “apocalipse” com “escatologia”. A falta de precisão no uso dos termos leva a equívocos. A palavra “apocalipse” vem de dois vocábulos gregos: apo (dentro para fora) e kalypsis (cobertura, véu), portanto, apocalipse significa “descobrir, tirar o véu para que algo possa ser visto”.

A literatura apocalíptica é um gênero literário surgido no Século II a.C. e que se estende até o Século II d.C. A finalidade dos escritos apocalípticos é dar resposta aos tempos de crise, quanto à expectativa de salvação. Também é uma teodiceia, pois procura explicar o triunfo do mal na história, diante de um Deus que é essencialmente bom.

O Apocalipse se destina a consolar e fortalecer o Povo de Deus em tempos de perseguição. Destina-se a recuperar a esperança. Não é um texto orientado para a “segunda vinda de Cristo” ou para o “fim do mundo”, mas centrado na presença poderosa do Cristo Ressuscitado, na comunidade e no mundo. A mensagem do Apocalipse é: se Cristo ressuscitou, o tempo da ressurreição e do Reino de Deus já começou.

Enquanto o Apocalipse é um gênero literário para suscitar a esperança no Senhor em tempos de perseguição, a escatologia é a mensagem sobre as realidades últimas alicerçadas em Jesus Cristo e no Reino de Deus.

A escatologia cristã é uma disciplina da teologia, sustentada por sólidos trabalhos exegéticos e interpretativos construídos a partir de dados bíblicos sobre a morte, o juízo de Deus, o fim da história, o triunfo da esperança e do Reino de Deus.

Observação: O Livro de Daniel, é do gênero apocalipse, e como tal, trata dos tempos difíceis que os judeus enfrentaram no reinado de Antíoco Epifanes, na esperança de tempos melhores e que seriam superados com a ajuda da ação de Deus na história. Os detalhes deste livro não serão explanados neste artigo, pois merece um estudo separado pela sua própria complexidade.

Escatologia Individual

A experiência humana na morte; reflexão teológica sobre a morte, o purgatório, o inferno e o juízo final.

Morte

A ideia de morte, atualmente, por causa da cultura secularista, que se desdobra em racionalismo, materialismo, individualismo e hedonismo, é vista como o fim definitivo, onde tudo acaba. Assim o cuidado vai para o corpo: a saúde, a beleza, a longevidade. A morte aparece como grande inimiga. Para o individualismo, a morte é mais dolorosa, porque representa a derrota do indivíduo.

Assim tende-se a amenizar a situação de morte, ela é vista como resultado de guerras, de calamidades de violências urbanas, de pandemias e suas mazelas. Ela é afastada do quotidiano e entregue a instituições “especializadas” como hospitais, funerárias que “embelezam” o cadáver, e religião, onde são reduzidas a formalidades e ritos, tornando a morte soft. Há ainda as propostas modernas de eutanásia, feita sob a invocação de “morte digna”.

Podemos elencar três aproximações da morte:

  1. A morte como fenômeno natural (ponto de vista biológico);
  2. A morte do ponto de vista puramente humano (psico-filosófico);
  3. A morte do ponto de vista da fé (perspectiva teológica).

A morte como fenômeno natural é a mais superficial, ela é da natureza, o ser humano é mortal, essa é a perspectiva do biólogo e do médico.

A morte do ponto de vista psico-filosófico, é mais profundo que o anterior, pois é racional e ou filosófico. Nesse plano a morte é repugnante, porque é sentida como ruptura e divisão, tanto no nosso interior como em relação ao mundo vital. Podemos chamar essa morte de “morte existencial” ou “morte pessoal”. Diante dela a lógica humana comum é de pouca valia. Como exprimiu Epiteto (filósofo grego) com clareza esse sentimento natural: “Quando morre o filho ou a mulher do próximo, todos dizem: ‘é a lei da humanidade!’ Mas quando morre o próprio filho ou a própria mulher, o que se houve são gemidos, gritos e lágrimas”.

A morte na perspectiva da fé ou teológica é a síntese de uma visão geral da morte. Pela fé, pela esperança e pela caridade, a morte adquire um sentido novo e superior.

A Sagrada Escritura nos revela que “Deus não fez a morte nem tem prazer em destruir os viventes” (Sb 1,13); ao contrário “Deus criou o homem para a incorruptibilidade e o fez imagem de sua própria natureza” (Sb 2,23), mas “foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 2,24), conforme Rm 5,12 a morte entrou no mundo pelo pecado. Portanto a morte não é algo “natural”, como afirma o ponto de vista biológico, ela não estava (e não está) nos planos de Deus, por isso a morte é penosa. Jesus mesmo chora quando da morte de seu amigo Lázaro (Jo 11,35), e sua sangue (Lc 22,44) diante da perspectiva da própria morte.          

O exposto acima trata da morte corporal, mas a mais temível é a morte espiritual, que consiste no afastamento de Deus. A morte da alma é a pior desgraça (sem a graça divina), como ensinou Jesus (Mt 10,28); e foi essa morte que Adão e Eva, nossos primeiros pais, perderam principalmente, desobedecendo a Deus. Foi essa que acarretou a morte do corpo, isso é preciso lembrar, pois, falando da morte, tendemos hoje a nos fixar no seu sentido apenas biológico, porque é nessa direção que a cultura materialista encaminha. Assim a morte da alma fica praticamente esquecida pela morte do corpo. A bios (vida biológica) “engole” a zoé (vida eterna).

Até aqui foi vista apenas uma porção do que a escatologia cristã entende por morte. A outra porção nos é dada por Deus que através de Cristo devolve ao ser humano inteiro, corpo e alma, a vida plena, imortal e eterna. O Ressuscitado venceu a morte em si mesmo, como que em princípio, e a vencerá totalmente e para sempre, como que seu “último inimigo” (1Cor 15,26), quando de sua Parusia no final dos tempos: “A morte e o Hades foram então lançados no lago de fogo” (Ap 20,14).

Purgatório

Com exceção das santas e santos já elevados aos altares, ou não, os seres humanos ainda não estão puros o suficiente para serem dignos de estarem face a face com Deus. O coração permanece, ainda, muito estreito e o “eu interior” com muitas “arestas”. Daí a necessidade de se purificar e “estagiar”, após a morte, no purgatório. O purgatório é a purificação final dos que morreram na graça e na amizade de Deus, mas que, ainda, não alcançaram a santidade necessária para usufruir da alegria celestial. A purificação final nada tem a ver com o castigo dos condenados. 

A fé no purgatório não está na Bíblia, mas surge a partir dela. Três textos bíblicos, entre outros, são a base da doutrina do purgatório:

Mt 12,32: “Se alguém disser uma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á perdoado, mas se disser contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem nesta era, nem na outra”.

Aqui se deduz que alguns pecados poderão ser perdoados nos séculos futuros.

1Cor 3,12-15: “Se alguém sobre esse fundamento (Jesus Cristo) constrói com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, a obra de cada um será posta em evidência, o que vale a obra de cada um. Se a obra construída sobre o fundamento subsistir, o operário receberá a sua recompensa. Aquele, porém, cuja obra for queimada perderá a recompensa. Ele mesmo, entretanto, será salvo, mas como que através do fogo.” 

Neste texto a evidência são para as obras do ser humano e a sua prova através da “prova do fogo”.

2Mc12,45: “Mas se considerava que uma belíssima recompensa está reservada para os que adormeceram na piedade, então era santo e piedoso o seu modo de pensar. Eis por que ele mandou oferecer esse sacrifício expiatório pelos que haviam morrido, a fim de que fossem absolvidos do seu pecado.”

Esse texto do Antigo Testamento fala das orações que Judas Macabeus mandou fazer pelos mortos na guerra.

Os dois princípios que surgem desses textos e que sustentam a teologia do purgatório são:

  1. O princípio da santidade divina. O encontro com Deus exige a santidade do amor. O purgatório é uma exigência do encontro com o próprio Amor; para chegar a Deus, o ser humano precisa passar por uma espécie de “transubstanciação” poderosa. Que santo chegou a Deus sem passar pelo fogo como ouro pela fornalha? Como nos podemos fundir em Deus sem derreter em nós tudo o que não é Ele?
  2. O princípio da responsabilidade humana. o encontro com Deus, por se dar na reciprocidade, pressupõe nossa resposta pessoal de amor.

É preciso eliminar algumas ideias erradas sobre o que é o purgatório, que o aproximam mais do inferno do que do céu, deve-se superar concepções fantasistas, juridistas e mesmo terroristas dessa verdade da fé, que ainda perduram nos dias de hoje, mesmo entre católicos.

Na verdade, o purgatório:

  • É uma situação espiritual (de purificação) e não um lugar de horrores;
  • É uma graça muito particular que Deus nos dá para nos purificar, em vista do encontro com Ele, e não castigo ou, pior ainda, vingança. Portanto, é uma purificação exigida pelo amor e não por uma misteriosa lei penal.

Quanto a ideia do “fogo purgatório”, no sentido de “purificador”, esse constitui um símbolo com duplo sentido. Ele representa:

  1. No plano da memória, a dor da consciência, o arrependimento;
  2. No plano da esperança, as chamas do amor, da saudade e da ânsia de ver a Deus para receber seu abraço eterno.

O purgatório é mistura de dor e felicidade, como no amor: quem ama sofre por estar longe do(a) amado(a), ou por não ser bastante digna do seu amor. 

Santa Catarina de Gênova explica de maneira inspirada e poética o purgatório, diz ela: “Elas (as almas no purgatório) estão num estado que deveria antes ser ansiado do que temido, pois aí as chamas são chamas de indizível saudade e amor…Depois da felicidade do céu, a felicidade maior é a das almas do purgatório”.

A dimensão penitencial faz parte da vida cristã, enquanto busca permanente de purificação e de aperfeiçoamento no amor. Se esta vida é insuficiente para nos deixar “prontos” para o abraço eterno do Pai, então, ainda há a graça da purgação que se segue à morte. O purgatório por ser considerado como um processo pessoal, histórico, em que a pessoa vai superando suas contradições, seus egoísmos, até aquele momento final do encontro com Deus. Aí os últimos resquícios serão apagados. Início da beatitude definitiva, porque isso acontece envolvido pelo amor salvífico de Deus. É o amor que purifica. O sofrimento é o reverso da medalha do amor. É o lado do coração que sofre por não ter correspondido ao amor e apesar disso ter sido continuamente amado. 

O ser humano não se constrói sozinho, mas dentro de um tecido social, numa relação entre todos. Esta relação pode ser de integração ou desintegração, de purificação ou corrupção. Por isso, o purgatório tem necessariamente uma dimensão social. As estruturas de injustiça social que se criam dificultam o processo de purificação do ser humano, antes reforçam-lhe a divisão interna, a desintegração, tornando o processo de purificação mais difícil e doloroso. À medida que as estruturas sociais permitem maior integração, coerência com a orientação fundamental para o amor, para Deus, tanto menos doloroso se faz o processo de purgatório. Mais madura e integrada está a pessoa para o encontro definitivo com Deus.

No próximo artigo trataremos de reencarnação, Céu, Inferno e a Parusia de Jesus.

Referências
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BLANK, Renold J. VILHENA, Maria Angela. Esperança além da esperança: Antropologia e escatologia. Valencia (Espanha): Siquem, 2001. 
BOFF, Clodovis. Escatologia: breve tratado teológico-pastoral. São Paulo: Ave Maria, 2012.
LADARIA, Luis F. Introdução à antropologia teológica. 3ed. São Paulo: Loyola, 2007.
LIBÂNIO, João Batista. BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia cristã: O Novo Céu e a Nova Terra. Petrópolis: Vozes, 1985. 
MANZATTO, Antonio. PASSOS, João Décio. VILLAC, Sylvia. De esperança em esperança: escatologia.  2ed. São Paulo: Paulus, 2011.
MURAD, Afonso. CUNHA, Carlos. GOMES, Paulo Roberto. Da terra ao céu: escatologia cristã em perspectiva dialogal. São Paulo: Paulinas, 2016.

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