Pois tu és pó e ao pó voltará. (Gn 3, 19)
Iniciamos um tempo especial na vida da Igreja, a Quaresma. Um tempo em que intensificamos a prática da oração, do jejum e da caridade; tempo de conversão em vista da celebração do mistério pascal; tempo de voltar ao nosso “primeiro amor”, nosso projeto de vida, assumido diante de Deus e de Jesus Cristo.
A transformação começa com a consciência de que Deus está no centro de toda a vida. “Fica em silêncio, e conhece a Deus.” (Sl 4,4). E assim, por meio do silêncio, o homem se dá conta de que a graça de Deus está muito mais próxima do que ele imagina. A transformação do coração é a profunda consciência de que “o reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17,21).
Esse é o sentido da Quaresma, um tempo marcado por significativas celebrações que nos permite refazer a peregrinação pascal de Jesus. Descortina um caminho espiritual em que retomamos o nosso batismo, rumo à Páscoa, ponto alto do ano litúrgico, mistério fundamental de nossa fé.
Cada celebração, nesse tempo, deve ser uma forte experiência de êxodo, de passagem da escravidão para a liberdade, do individualismo para a solidariedade. As leituras desse tempo ensinam-nos a acreditar na possibilidade da renovação de nossa vida cristã.
A expressão Quaresma é originária do latim, quadragesima, denomina o período de quarenta dias de preparação para a Páscoa do Senhor Jesus Cristo. O Papa Bento XVI, na Audiência Geral de Catequese, no dia 22 de fevereiro de 2012, sobre o significado litúrgico dos “quarenta dias da Quaresma” assim se expressou, “Trata-se de um número que exprime o tempo da expectativa, da purificação, do regresso ao Senhor e da consciência de que Deus é fiel as suas promessas”.
Quaresma: um tempo de combate espiritual, de arrependimento, conversão e reconciliação
Nesse tempo, percorremos um caminho catecumenal, de arrependimento, de conversão e de reconciliação com Deus e com nossos irmãos. É um tempo de combate espiritual, tempo de uma ascese mais cuidadosa, ascese de caráter cristo-pneumatológico, tendo como fim a nossa santificação em Deus. Esse tempo nada mais é que uma intensificação daquilo que é e deve ser toda a vida do cristão. São Bento, por exemplo, dizia a seus monges que a vida deles deveria ser uma contínua Quaresma. A Quaresma é o tempo de voltar para Deus, é o tempo da graça do arrependimento (c.f. ZAVAREZ, 2014).
A Quaresma é originalmente, e por excelência, um tempo batismal. Nos primórdios da Igreja, a Quaresma era preparação para o batismo, administrado na noite pascal. O batismo era visto como participação na reconciliação operada pelo sacrifício de Cristo por nós (cf. Rm 3,21-26; 5,1-11; 6,3). No mesmo espírito, a liturgia renovada do Concílio Vaticano II insiste em que, na noite pascal, sejam batizados alguns novos fiéis e que todos os fiéis façam a renovação de seu compromisso batismal. Essa insistência na renovação da vida batismal se faz necessária pois, enquanto não tivermos passado pela última prova, estamos sujeitos à desistência. Como à humanidade toda, no tempo de Noé, também a cada um, batizado ou não, Deus dá novas chances: eis o tempo da conversão (c.f. KONINGS, 2018).
A Quaresma se inicia na quarta-feira de Cinzas e se encerra na manhã da quinta-feira santa, com a celebração da bênção dos santos óleos. A celebração do domingo de Ramos abre a Semana Santa. A Páscoa da Ceia na quinta-feira santa, à noite, dá início ao solene Tríduo Pascal.
Liturgia da Palavra no tempo Quaresmal – Ano B
A Liturgia da Palavra, da Quaresma, constitui valioso itinerário de fé e de adesão crescente, consciente e livre à proposta de Jesus. Na quarta-feira de Cinzas somos chamados a intensificar a prática da oração, do jejum e da caridade, condição primeira para entrarmos, de modo mais profundo, no mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus. As cinzas, que recebemos, vêm de longa tradição bíblica e significam a fragilidade e finitude da nossa vida. São também sinal de arrependimento diante de Deus.
Nos dois primeiros domingos, a liturgia nos apresenta Jesus como Aquele que toma o caminho do deserto, combate e vence as tentações do “ter”, do “poder” e da “fama” e, sustentado pelas palavras da Escritura, opta, decididamente, por cumprir a vontade do Pai (Mc 1,12-15). Por isso, é glorificado e transfigurado por Deus, no Monte Tabor, antes mesmo de enfrentar a “hora das trevas” (Mc 9,2-10).
No terceiro domingo somos convidados a aprofundar a relação com o Deus da aliança, buscando purificar nossa experiência religiosa, que encontra, no evangelho desse domingo, um parâmetro: Jesus é a expressão maior de obediência e de fidelidade a Deus, maior mesmo que o próprio Templo (Jo 2,13-25).
No quarto domingo Jesus mostra que, o seu erguimento, se dá na cruz e será causa de vida e salvação para todos os que acolhem, pela fé, o imenso amor de Deus. A morte e a ressurreição de Jesus superam o pecado, são anteriores a qualquer boa obra que venhamos a praticar e demonstram o imenso amor de Deus pela humanidade. Na ressurreição de Jesus, somos erguidos por Deus aos céus, repatriados com Ele, para junto do Pai (Jo 3,14-21).
No quinto domingo, a liturgia nos mostra que Deus é glorificado quando a aliança se concretiza na obediência de seu Filho, Jesus. Os batizados, que revisitam sua vocação cristã nesse tempo da Quaresma, são chamados a glorificar a Deus em sua vida. Exercendo a caridade, sinônimo de amor concreto e solidariedade, os cristãos prolongam o mistério de Cristo em sua vida de discípulos e servos (Jo 12,20-33).
No domingo de Ramos, iniciamos, com toda a Igreja, a Semana Santa. Recordamos a entrada de Cristo em Jerusalém para realizar a entrega de Sua vida pela morte de cruz, fiel ao projeto do Reino. Como o povo da primeira aliança, que, durante a festa das Tendas, levava ramos nas mãos, significando a esperança messiânica, nós também, seguindo os passos de Jesus, renovamos nossa adesão ao Seu projeto e, com nossos ramos nas mãos, o aclamamos Senhor da vida e da história (Mc 15.1-39).
Celebrar a Quaresma é, portanto, reconhecer a presença de Deus na caminhada, no trabalho, na luta, no sofrimento e na dor da vida de cada um de nós. Como o povo de Israel, que andou 40 anos no deserto antes de chegar à terra prometida, terra da promessa onde corre leite e mel. Como Jesus, que passou quarenta dias de retiro no deserto antes de anunciar a vinda do Reino. Que subiu a Jerusalém para cumprir a missão que o Pai Lhe confiou: dar a sua vida e ser glorificado. Fazer da Quaresma um tempo favorável de reflexão de nossas opções de vida, para corrigir os erros e mudar radicalmente a direção da caminhada, inverter o percurso, buscar novas referências, voltar à casa, voltar a Deus. “Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4,23-24).
E assim, caminhando, vamos percebendo que o desejo de Deus está inscrito em nossos corações.
“A razão mais sublime, da dignidade humana consiste na sua vocação à comunhão com Deus. Desde o começo da sua existência, o homem é convidado a dialogar com Deus: pois se existe, é só porque, criado por Deus por amor, é por Ele, e por amor, constantemente conservado: nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e não se entregar ao seu Criador”.
GS 19
Referências AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Na escola dos santos doutores. 6. ed. Lorena: Cléofas, 2008. BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 3ª edição, 2017. CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano. São Paulo: Paulus, 1997. AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Na escola dos santos doutores. Lorena: Cléofas, 2008. KONINGS, Johan. 1º Domingo da Quaresma - 2018. Acesso em 4 de dezembro de 2020. ZAVAREZ, Maria de Lourdes. Quaresma: seguindo as pegadas do senhor, caminhemos para a Páscoa, Revista Vida Pastoral - Ano: 55 - Número: 295.