Atualmente há grande anseio, por todos os lados, de se delimitar e clarear aquilo que é identitário de cada indivíduo ou grupo (social, profissional, religioso etc.). Esses grupos, por sua vez, buscam intensamente a própria coesão por meio de discursos quase uníssonos e todo aquele que possui alguma divergência (por menor que seja) é considerado inadequado ao pertencimento do grupo. Daí decorre um acirramento muito grande entre aqueles que pensam diferente, o que, nos últimos anos, vem assolando as nossas relações sociais, familiares e até religiosas.
A sociedade vem se dividindo, com cada setor cavando a própria “trincheira”, a partir da qual poderá defender as próprias convicções e atacar as dos demais. A cizânia atinge tal nível que por vezes chega à negação do outro, pois esse é diferente. Não é difícil ouvir relatos que dão conta de colegas que passaram a se odiar, amizades que se desfizeram, familiares que não mais se suportam. E na raiz de todas essas cismas estão as ideias divergentes.
Essa realidade, como mencionado, atinge até as relações religiosas. Portanto, fere também a Igreja de Cristo. Isso, pois aqueles que formam a sociedade são os mesmos que constituem a Igreja e para dentro dela trazem a própria maneira de ver o mundo. Parafraseando o Senhor: a Igreja não é do mundo, mas nele está e as questões dele a afetam (cf. Jo 17,14 e 15). De fato, percebe-se também entre os cristãos um sentimento de conflito e dissidência no qual cada grupo, movimento ou pastoral se vê como a única manifestação autêntica do cristianismo e aqueles que possuem pensamentos, métodos e condutas diversos são execrados.
Essa mentalidade, contudo, não provém de Cristo. Pelo contrário, Jesus privilegia o encontro, mesmo que seja com aqueles que têm diferenças inconciliáveis com sua proposta. Veja, por exemplo, a passagem do centurião romano (Lc 7,1-10).
No relato, não há qualquer menção a uma possível adesão do centurião ao movimento de Jesus. Como era oficial do Império, é provável que o ele cultuasse os deuses de Roma. Entretanto, o evangelista não se preocupa em dar qualquer sinal de que aquele homem tenha abandonado tais crenças para seguir o Evangelho. Ora, entre Jesus e o centurião há uma divergência grande, afinal, o primeiro é judeu e monoteísta, o segundo é pagão e politeísta. Porém, a enorme diferença que existe entre os dois não impede que o Cristo afirme: “Eu vos digo que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé” (Lc 7,9).
Outra passagem pode ser bastante sugestiva: a famosa parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 29-37). Nessa belíssima passagem, nosso Senhor choca a sensibilidade dos mestres da Lei ao apresentar um samaritano como “próximo” de um judeu. Com efeito, os judeus e os samaritanos possuíam muita desavença e “não se davam” (Jo 4, 9). No entanto, é o samaritano quem se aproxima do judeu para o socorrer quando esse havia sido desprezado pelo sacerdote e o levita, seus compatriotas e irmãos de fé. E Jesus arremata: o samaritano se fez próximo. Perceba-se que não é mencionado que o judeu tenha se tornado samaritano, ou que o samaritano tenha se feito judeu. Os dois permaneceram com suas identidades, com suas diferenças, mas essas não impediram a proximidade.
Nas comunidades cristãs também existem identidades diferentes, modos distintos de se aproximar de Deus e de viver a experiência com Ele. Como escreve o Apóstolo Paulo em I Cor 12: na Igreja, Corpo de Cristo, existem distinções entre os membros, existe diversidade de carismas. Existem aqueles que querem caminhar depressa e aqueles que querem seguir com cautela. Existem os que querem progredir no amor e os que querem conservar a fé. Todos eles são importantes. Cada um, a seu modo, é igualmente convidado a edificar. Portanto, é preciso que se afastem de tudo aquilo que causa a divisão (Cf. Rm 16,17) e comecem a se fazer próximos uns dos outros. Caso contrário, aquele membro que foi constituído para edificar se tornará causa de ruína.
Continuando com a analogia, um corpo é formado pela unidade de muitas células que, não obstante suas diferenças, orientam-se harmonicamente. Quando uma célula passa a agir por si mesma em disfunção em relação às outras, ela é chamada de câncer e sua ação pode levar todo o corpo ao aniquilamento.
Cabe dar ouvidos àquilo que o Papa Francisco, profética e insistentemente, tem proposto: que se construam mais pontes e menos muros1, ou seja, que os cristão possam se esforçar por estabelecer mais diálogo e menos contenda, pois através do diálogo é possível chegar ao entendimento ou, pelo menos, à tolerância e ao respeito. Entenda-se, que permanecer em atitude de escuta e proximidade não significa abrir mão da própria identidade, pelo contrário é um modo de manifestá-la e, ao mesmo tempo, conhecer a do outro.
Que nesses tempos de penumbra, os discípulos de Jesus possam fazer brilhar sua luz, a fim de que ela sirva de guia à humanidade. Que nesse momento de divisão, os cristãos testemunhem a unidade que os caracteriza e possam ser sinal de conciliação para um mundo e sociedade tão fragmentados.
Notas 1) Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2017/documents/papa-francesco_20170208_udienza-generale.html, acesso em 16/05/2020, às 21:03.
Uma resposta em “Ser sinal de unidade”
Concordo plenamente com as colocações feitas pelo autor David Cordeiro.