O contexto político brasileiro tem feito muitos católicos procurarem novamente orientação na doutrina social da Igreja. Isso é muito bom e positivo, mas traz de volta dois velhos problemas que são (1) a pouca formação da comunidade cristã em doutrina social e (2) a contaminação ideológico-partidária na sua interpretação. Se, de um lado, somos chamados a ter uma posição política que nasce da reflexão cristã, por outro, temos que ter claro que nunca encontraremos um partido ou posição política que esgote totalmente e perfeitamente os ideais nascem da fé e da pertença à Igreja (Compêndio de Doutrina Social da Igreja, CDSI 573-574).
O grande problema dos que trabalham com o tema é a ideia, muito difusa, de que a dificuldade reside na falta de conhecimento teórico. De fato, grande parte dos católicos tem uma visão muito superficial dos conceitos do ensinamento social da Igreja, mas esse não é nosso maior desafio. A maioria dos conceitos da doutrina social, como o valor da pessoa e a solidariedade, são naturais para quem tem uma formação cristã. Aliás, referem-se a valores universais, que podem ser reconhecidos por qualquer pessoa que os confronte adequadamente com sua experiência – independentemente da fé. O problema é que reconhecer esses princípios não nos permite automaticamente aplicá-los, ainda mais em uma conjuntura polarizada e ideologizada como a nossa.
O esforço formativo que acabamos fazendo é muito centrado no oferecimento da teoria (que parece isenta de comprometimentos ideológicos) e pouco voltado à aplicação prática dos conceitos (um discernimento que estará obrigatoriamente em diálogo com programas partidários e ideologias). Com isso, fazemos como uma autoescola que desse a habilitação para o aluno apenas depois das aulas teóricas, sem necessidade da prática de direção – e, ao perceber que ele não está apto a guiar o carro, aumentasse o número de aulas teóricas ao invés de dar aulas práticas.
A doutrina social é um conteúdo prático
A comunidade católica, para poder aplicar a doutrina social da Igreja em seu cotidiano, precisa ser ajudada a ter um discernimento cristão sobre as questões práticas. Isso exige o domínio dos conceitos, mas integrando o conteúdo teórico com a reflexão aplicada. Só assim, à medida que os problemas vão se tornando mais complexos e os questionamentos ideológicos mais agudos, o cristão vai percebendo a necessidade de aprofundar a teoria e descobrindo a importância de ideias que lhe pareciam pouco úteis ou óbvias inicialmente. Uma boa aplicação da doutrina social pressupõe um discernimento compartilhado, que obviamente não tem a mesma validade dos princípios fundamentais. Sendo assim, trata-se de um discernimento passível de erros, que não pode ser absolutizado e deve sempre ser confrontado com outros discernimentos, no esforço para se aproximar cada vez mais da verdade e do bem (cf. CDSI 9).
O desafio, se a questão é o discernimento, é como não instrumentalizar a própria doutrina social, usando-a para justificar posições ideológicas preconcebidas. Essa instrumentalização é possível por conta de um aspecto que, na verdade, é um dos pontos mais fortes do pensamento cristão… Quando analisada unicamente em seus aspectos antropológicos e sociológicos, portanto comparável às grandes correntes laicas da filosofia política, a doutrina social da Igreja se caracteriza por sua integralidade – a capacidade de reunir elementos positivos normalmente presentes em diferentes correntes teóricas. Um exemplo clássico é a combinação de opção pelo pobre e reconhecimento do direito da propriedade privada, temas que dividiram esquerda e direita durante boa parte do século XX, que a colocaram entre as precursoras das ideias de responsabilidade social e de políticas de inclusão – hoje amplamente reconhecidas no mundo laico (cf. CDSI 171-184).
Por essa combinação de elementos aparentemente díspares nos debates políticos, a doutrina social raras vezes nos dará uma resposta inequívoca a uma pergunta como “em quem devo votar?”. Na aplicação prática de seus conceitos, sempre haverá espaço para conclusões diferentes – o que não quer dizer que todas as posições sejam aceitáveis. Sempre existirão posições totalmente irreconciliáveis com a dignidade da pessoa e o bem comum. Por outro lado, dificilmente uma posição político-partidária será tão perfeita a ponto de não poder ser questionada e melhorada à luz do pensamento social cristão.
Um método de trabalho
Na prática, ter um “método” de trabalho ajuda bastante nesse esforço de discernimento. Para temas polêmicos, em primeiro lugar, é preciso conhecer bem as análises e propostas das diferentes posições (cf. CDSI 547-548). Podemos falar em um “VER”, desde que tenhamos claro que nosso esforço é conhecer as diferentes visões sobre o problema – pois muitas vezes o que denominamos “ver” é apenas um reforço de nossas posições pré-definidas. Feito isso, precisamos buscar, nos documentos da doutrina social da Igreja, um discernimento não só sobre o problema, na sua forma final, mas também sobre as motivações e os argumentos de cada lado. O “JULGAR” não pode ser pensado como um julgamento superior, onde nós – iluminados por alguma pretensa luz espiritual – adquirimos o dom da infalibilidade. Pelo contrário, trata-se de um esforço sincero para descobrir não só os eventuais erros, mas também aqueles aspectos de verdade e de real desejo de bem que existem em todo coração humano, inclusive naqueles dos nossos adversários.
A síntese final nascida desse trabalho poderá, ainda assim, não ser a mais correta de todas – afinal, somos seres humanos falíveis. Será, contudo, muito mais “integral”, capaz de dialogar com os demais e de construir o bem comum do que nossas posições prévias. Cabe aos líderes eclesiais e formadores buscarem sempre uma posição de equilíbrio, não querendo impingir à comunidade suas próprias preferências partidárias, mas ajudando cada um a aplicar os princípios da doutrina social para um discernimento integral da realidade, que favoreça o diálogo e a descoberta do bem comum.