O Simbólico e o Diabólico

Adélia Prado

De acordo com Adélia Prado, experimentamos uma condição de culpados sem uma plena compreensão do motivo. Sofremos pelo fato de sermos desde sempre divididos, diabolizados, produtos do tempo, vergonhosos por carregar uma culpa que transcende qualquer imposição, uma culpa original, intrínseca a nossa existência. Contudo, através deste sofrimento somos capazes de gerar consciência. Tal consciência nos permite a percepção do bem e do mal além de concluirmos que esta condição (diabólica) se faz necessária para que a luz aconteça.

Adélia continua assumindo a negatividade de existir em um mundo possível de tanta dor, onde a exemplo de Jó – texto bíblico – teremos que nos conformar com esta condição. Não há lógica nem espaço para uma resposta plausível capaz de gerar paz à alma. A essência maior (Deus) não se permite acessar pelos caminhos lógicos, empíricos. O acesso se dá de forma inconsciente, que passa pelo viés artístico e religioso, cuja natureza simbólica revela o “escondido”, ou seja, aquilo que a primeira vista é invisível.

Jó fez esta experiência quando procurou fora de si pelas razões que justificariam seu sofrimento. No entanto percebe que a solução é inerente a sua existência. Ele, por fim, descobre um sentido que transcende toda a sua situação. Não pela via lógica, mas pela profunda contemplação.
A adesão ou o aceite das circunstâncias que nos cercam é determinante para a salvação. É por esta via que se compreende os símbolos e permite à alma descanso. Isto tudo em atitude de contemplação, pois se tentarmos racionalizar o símbolo, perderemos sua essência.

Mais adiante, Adélia Prado coloca o “politicamente correto” como obra diabólica: num esforço descomunal de engajamento entre todas as pessoas, levando em conta suas incontáveis diferenças, começa uma imperceptível divisão e, muitas vezes, a “quebra” de sintonia da contemplação. Não efetivar um tratamento voltado às diferenças de sexo, cor, classe social e etc, não é fator de desrespeito com o próximo, com aquele que é diferente de mim. Mas a falta de amor sim o é. A quebra da sintonia, para sermos politicamente corretos, é frequente e ocorre nos mais diferentes lugares, como nas nossas celebrações litúrgicas. Adélia lembra que introduções aos ritos ou mesmo a ajuda na procura de cânticos podem tirar de nós a solenidade do mistério. Por inúmeras vezes não se chega nem perto de uma compreensão do sagrado, no entanto é possível vivê-lo numa pura contemplação.

De certo, o diabólico é tudo que angústia e divide, quanto ao simbólico, se estamos inseridos numa contemplação, ele tranquiliza e unifica. E para espanto, é muito comum encontrarmos o diabólico onde deveria existir o simbólico, até mesmo dentro do sistema educacional: dividindo e burocratizando uma compreensão do que deveria nos ser dada pelo cotidiano.

Leonardo Boff

Na continuação do mesmo assunto, Leonardo Boff apresenta uma abordagem nova sobre o diabólico e o simbólico. De acordo com Boff, há uma relação simultânea entre o que consideramos diabólico e simbólico. Como exemplo desta tensa harmonia podemos citar uma floresta onde, sob uma ótica leiga e desinteressada, percebe-se somente beleza, sintonia e uma convivência pacífica. No entanto, sob olhares de especialistas, como botânicos e biólogos, é nítida a luta entre os vegetais para conquistar e defender seu lugar. Há uma verdadeira guerra química no subsolo entre raízes. Assim é a natureza, morte e vida a todo o momento.

Essa simultaneidade entre diabólico e simbólico ocorre também no ser humano. Não é necessário apontar as diversas conquistas do homem no tempo que tanto bem fizeram à humanidade. No entanto, este mesmo homem que tantos benefícios trouxe ao mundo, também foi protagonista de monstruosas guerras a fim de eliminar seu “concorrente”. Não obstante se descuidou do cuidado com seu habitat, trazendo sérios problemas a todo o planeta. A natureza e a vida humana se mostram, portanto, demente e sábia.

Leonardo Boff apresenta todo ser vivente como um ser complexo, porque nele há ligações com tudo que o cerca, isto o faz desfrutar de uma estabilidade dinâmica, capaz de criar novas estabilidades a partir de desestabilidades. Em outras palavras, o simbólico se constitui através da perspectiva diabólica. A sapiência passa pelo viés da demência.

A construção do humano na sua condição simbólica e diabólica – homo sapiens e homo demens – traz uma complexidade descomunal nos dias de hoje, onde a tendência irreparadora de se sobressair sobre os outros não vê limites. Foi rompido o “religar-se” entre os seres e despontou um antropocentrismo que eliminou o termo “nós”, dando o lugar para tão somente o meu “eu”. Para Boff, o termo “eu” está inflacionado. Tudo ao redor coopera para o isolamento do homem. Ao mesmo tempo se faz visível a necessidade interna de reunir o homem numa sociedade dos viventes, não mais uma realidade isolada, mas, agora, comunitária. Um chamado que pede a importância à vida humana e a compaixão por todos aqueles que sofrem.

Esta necessidade ou este chamado, ao mesmo tempo que se mostra como desafio, é possível quando se passa por uma reeducação do humano que possa ensinar a verdadeira liberdade, que possa mostrar a verdadeira dependência entre os seres e a natureza, que possa transformar nossa democracia em valor universal de convivência. O diabólico faz-nos cegos e insensíveis para perceber esta necessidade-chamado. Por isso devemos reforçar o simbólico, porque ele une e soma forças. E na medida em que vivemos esta realidade, reconvertemos o diabólico, dando origem a uma energia simbólica que, junto com toda humanidade, faz a grande sinfonia do símbolo maior que é Deus.

Considerações finais

Tanto Adélia Prado quanto Leonardo Boff concluem que o diabólico faz parte da condição humana e que a partir dele o simbólico ganha sentido de existir. A exemplo de Jó, usado por ambos, percebe-se que este evoluiu seu conhecimento de Deus porque compreendeu que as circunstâncias avaliadas a priori podem representar algo muito diferente do seu sentido último, alcançado a posteriori. Boff apontou pontos altos do diabólico atuando na sociedade, como por exemplo o antropocentrismo radical, referenciado também por Adélia, como consequência de um comportamento politicamente correto, que separa o humano em classes distintas de “inclusão”. O material enriquecedor transcorrido pelos autores citados são verdades que até então não estavam visíveis, nem tão pouco eram compreensíveis. Entretanto, pela via da contemplação, é fácil verificar a ligação entre nossa existência diabólica e a ação reparadora simbólica.

Referencia
Seminário "O Simbólico e o Diabólico na História", Adélia Prado e Leonardo Boff, Tuca (Teatro da PUC-SP), 16 de setembro de 1996

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