Obedecer? A quem?

A palavra obediência, muito usada no nosso dia a dia, significa a fidelidade ao cumprimento de ordens ou leis emanadas dos superiores; uma observância cuidadosa, se não escrupulosa, de tudo o que é mandado. Afinal, o Dicionário Houaiss registra obedecer como:

  1. submeter-se à vontade de outrem;
  2. estar sob o comando de;
  3. agir ou estar de acordo com.

Mas, será esse o significado bíblico?

No Novo Testamento, não é esse o significado; ao contrário, obediência, para Paulo, significa opor-se à observância, cumprimento ou prática das obras da lei. Nas cartas incontestavelmente paulinas, a palavra obediência, em latim, obedire, obedecer, vem de audire, ouvir. Isso nos ajuda a entender o significado que Paulo dá ao vocábulo obedecer.

Obedecer é uma atitude da fé em Jesus Cristo. Sabemos que a fé vem da escuta e a escuta vem pela Palavra do Messias. “Assim, ‘obedecer à boa-nova’ é o mesmo que acreditar na escuta. Obediência, fé e escuta, são termos que estão juntos no mesmo contexto” (PRADO, Nº 246, p. 20-23).

A ação de obedecer, conduz da escuta atenta à ação, que pode ser puramente passiva ou exterior ou, pelo contrário, provocar uma profunda atitude interna de resposta. No caso de Jesus, e também o que Deus espera de nós, não é uma obediência de submissão, passiva, de medo, mas de alguém que se coloca diante do Pai como amigo e reconhece a importância de escutar Sua voz e praticar Seus ensinamentos: “Aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática é semelhante a um homem prudente, que edificou sua casa sobre a rocha” (Mt 7,24).

Para nos ajudar a mergulhar nos mistérios contidos nas Sagradas Escrituras sobre ‘a quem obedecer’, recorremos à parábola sobre “O tributo a César”, segundo o Evangelho de Lucas.

Mergulhemos na narrativa de Lucas

“Assim pois, espreitando, enviaram-lhe alguns agentes, fingindo ser gente do bem, para apanhá-lo em suas palavras e poder entregá-lo à autoridade e jurisdição do governador.
Perguntaram-lhe:
Mestre, consta-nos que falas e ensinas retamente, que não és parcial, mas ensinas sinceramente o caminho de Deus. É lícito pagar tributo à Cesar ou não?
Adivinhando sua má intenção, disse-lhes:
Mostrai-me o denário. De quem traz a imagem e a inscrição?
Responderam-lhe:
-De César.
E ele lhes disse:
-Pois dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.
E não conseguiram apanhá-lo em suas palavras diante do povo. Ao contrário, admirados com a resposta, calaram-se”.

Lc 20,20-26


A primeira coisa que precisamos compreender é que Jesus é a chave de leitura da Bíblia. Não podemos nos esquecer que todas as narrativas bíblicas, devem ser entendidas dentro do seu contexto, e conforme seu gênero e intenção. Não devem ser interpretadas literalmente (conforme a letra do texto). A segunda, é que, é de suma importância interpretar as narrativas bíblicas conforme as realidades que estamos vivendo.

Isso é muito importante para não fazermos de qualquer frase das Sagradas Escrituras um dogma definitivo! A parábola do “tributo a César”, por exemplo, deve ser interpretada com esse senso de missão que tem Jesus: A missão de Jesus não é uma libertação política; ele veio libertar o homem restabelecendo sua relação com Deus.

A resposta de Jesus não é neutra. Ele parte de um dado de fato: quem aceita o uso de uma moeda, ou seja, da dependência do poder econômico, deve aceitar suas consequências e pagar o custo. Para Jesus não é lícito que César tome o lugar de Deus. César é diferente de Deus. César é a ambição do dinheiro e do poder. Deus é misericórdia, amor e vida. Libertar-se do dinheiro e comprometer-se com Deus. Esse é o projeto de Jesus. O agir de Deus é diferente da lógica de César. Por isso Jesus diz que aquele que aceitar César como seu deus, deve pagar o tributo.

O juízo de Jesus sobre o dinheiro é fruto, de seu discernimento da realidade vivida pelo povo, que sofria a influência nociva da economia monetária associada ao pesado tributo, duplamente cobrado, pelo Templo e pelo Império. Isso provocava endividamento crescente dos que sobreviviam apenas do trabalho […]

Empobrecimento, miséria, fome e escravidão, aos olhos do Jesus camponês, estavam associados, sem dúvida, ao dinheiro, como símbolo da intervenção monetária na economia livre e de subsistência das pequenas aldeias israelitas, da Galileia. Suas palavras situam o serviço ao dinheiro, em oposição ao serviço a Deus, pois aqueles que possuem o dinheiro, servem a um sistema de opressão e destruição da comunidade campesina, evidenciando a mais brutal contradição com o sistema desejado por Deus (c.f. LARA, Nº 271, p. 11-20).

Jesus está dizendo que: “a atividade política não pode usar a máscara de uma ideologia sacra e absoluta e arrogar-se que pertence a Deus” (FABRIS e MAGGIONI, 1992, p.197).

Atualizando a narrativa

Se parássemos nossa reflexão por aqui, provavelmente, seríamos levados a interpretar, os ditos de Jesus de maneira que condissesse com a realidade em que vivemos? Provavelmente não. Vejamos o que Evangelista João nos diz a respeito: “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo” (Jo 17,14).

João está nos dizendo é que: se fazemos parte da Igreja de Cristo, uma comunidade santificada, isso significa que vivemos no mundo, somos atraídos a Deus e, ao mesmo tempo, devemos viver separados do mundo.

Em outras palavras: para João, Deus é a nossa prioridade, e é a Ele que devemos subordinar toda a nossa existência. Além disso, a narrativa também nos mostra que: ao nos submetermos a Deus, aceitamos um compromisso de colaborar com a construção de um mundo novo.

“Os cristãos vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais nada, pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor”.

LG 31

Mas, como equacionar essa relação entre as realidades de Deus e as realidades do mundo?

Essa questão sempre incomodou os homens. Muitas vezes ficamos inquietos e preocupados diante dos acontecimentos cotidianos. Não percebemos o significado, nem o alcance de certos eventos, e não conseguimos saber para onde é que a história nos conduz. Sentimo-nos perdidos, assustados, à deriva, como barco sem rumo. Nessas horas, Deus parece manter-se em silêncio, assistindo aos dramas que marcam o ritmo da nossa caminhada.

Perguntamo-nos, então: porque é que Deus deixa que os homens destruam o planeta, inventem esquemas sofisticados de destruição e de morte, cultivem a exploração e a injustiça, mantenham tantos homens, mulheres e crianças amarrados à miséria e à escravidão?

A resposta a essa questão passa pela compreensão de que: só Deus tem o direito de reinar sobre o homem. O homem pertence a Deus e deve considerar Deus o seu único Senhor e a sua referência fundamental. (“Se hoje escutardes a sua voz: não endureçais os corações…” (c.f. Sl 94,8).

No entanto, embriagados pelo turbilhão das liberdades e das novas descobertas, os homens consideraram que eram capazes de descobrir, por si próprios, os caminhos da vida e da felicidade e que podiam prescindir de Deus… Instalaram-se no orgulho e na auto suficiência e deixaram Deus de fora das suas vidas. “E porque não aprovaram reconhecer a Deus, Deus os entregou a uma maneira reprovada de viver… (c.f. Rm 1,28).

“É preciso que nos voltemos para Deus para redescobrirmos a sua centralidade na nossa existência. Deus não atenta contra a nossa identidade e a nossa liberdade. Fomos criados para a comunhão com Deus e só nos sentiremos felizes e realizados quando nos entregarmos confiadamente nas suas mãos e fizermos d’Ele o centro da nossa caminhada”.

GARRIDO; BARBOSA; CARVALHO, 2020

O profeta Isaías afirma que: “Deus nunca abandona os homens. Ele sempre encontra uma maneira de intervir na história e de concretizar os seus projetos de vida, de salvação, de libertação” (c.f. Is 45,1.4-6). Talvez, as intervenções de Deus, nem sempre sejam ortodoxas à luz da lógica dos homens; talvez, nem sempre consigamos perceber o verdadeiro alcance dos projetos de Deus; mas Deus está lá, como Senhor da história, conduzindo o mundo de acordo com o projeto de vida que Ele tem para os homens e para o mundo: “…o vosso Pai sabe do que precisais, antes de vós o pedirdes” (Mt 6,8).

Deus é o verdadeiro Senhor da história

É Ele quem conduz a caminhada do seu povo rumo à felicidade e à realização plena. Os homens que atuam e intervêm na história são apenas os instrumentos de que Deus se serve para concretizar o seu projeto de salvação.

Inúmeras narrativas bíblicas ensinam que o homem, sem deixar de cumprir as suas obrigações com a comunidade em que está inserido, pertence a Deus e deve entregar toda a sua existência nas mãos do Deus absoluto e soberano. Todo o resto deve ser relativizado, inclusive, a submissão ao poder político.

“A soberania, o poder e a grandeza de todo o reino que existe debaixo do céu serão entregues ao povo santo do Altíssimo. O seu reino será um reino eterno, e toda autoridade há de venerá-lo e prestar-lhe obediência”.

Dn 7,27

Aqueles que detêm responsabilidades na condução das comunidades (civis ou religiosas), devem procurar, através de um diálogo contínuo e próximo com Deus, perceber se os seus projetos e planos, para o mundo e para os homens, estão em comunhão com Deus. Só assim poderão ser instrumento de Deus na construção de um mundo melhor.

Não podemos nunca nos esquecer que: o Espírito de Deus age onde quer, como quer e através de quem Ele quer. “O vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem e nem para onde vai…” (Jo 3,8). O que interessa não são as “qualidades” do intermediário, mas a força de Deus. Se conseguimos fazer algo para tornar o mundo um pouco melhor, que bom, mas isso não se deve às nossas brilhantes qualidades, e sim a esse Deus que age por nosso intermédio.

Ninguém tem o monopólio de Deus ou da missão. Deus é totalmente livre para chamar quem quiser, quando quiser e como quiser – seja de que raça for, de que extrato social for, ou quais forem os seus antecedentes e suas crenças religiosas.

Deus é a referência fundamental e está sempre em primeiro lugar, mas isso não significa que o cristão possa se omitir das suas responsabilidades na construção do mundo. O cristão deve ser um cidadão exemplar, que cumpre as suas responsabilidades e que colabora, ativamente, na construção da sociedade humana. Ele respeita as leis e cumpre pontualmente as suas obrigações tributárias, com coerência e lealdade. Não foge aos impostos, não aceita esquemas de corrupção, não infringe as regras legalmente definidas. Vive de olhos postos em Deus, mas não se escusa a lutar por um mundo melhor e por uma sociedade mais justa e mais fraterna.

No seguimento a Cristo, a obediência à Palavra de Deus é a luz de nosso caminho. É preciso que assimilemos na fé e na oração, e a ponhamos em prática. “Procurai o que é agradável ao Senhor” (Ef 5,10), nisto consiste nossa verdadeira felicidade (c.f. COELHO, 2020).

Referências:
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA do Peregrino. São Paulo: Paulus, 3ª edição, 2017.
COELHO, Mário Marcelo. Educar para as virtudes humanas. Disponível em https://formacao.cancaonova.com/igreja/catequese/o-que-e-obediencia-para-o-cristao/. Acesso em 22 de setembro de 2020.
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos II. São Paulo: Edições Loyola, 1992.GARRIDO, Joaquim; BARBOSA, Manuel; CARVALHO, José Ornelas. 29º Domingo do Tempo Comum – Ano A. Disponível em https://www.dehonianos.org/portal/29o-domingo-do-tempo-comum-ano-a0/. Acesso em 20 de setembro de 2020.
HAHN, Scott; MITCH, Curtis. O Evangelho de São Lucas: Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas SP: Ecclesiae, 2015.
KONINGS, Johan. Oração, Fé e Escrituras. Revista Vida Pastoral - Ano: 60 - Número: 330 – Nov-Dez/2019.
LARA, Valter Luiz. A quem servir: a Deus ou ao dinheiro? Reflexão à luz de Mateus 6,24. Revista Vida Pastoral - Ano: 51 - Número: 271.
LOPES, Geraldo. Lumen Gentium, LG: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011.
MIRANDA, Mário de França. Org. A pessoa e a mensagem de Jesus. São Paulo: Loyola, 2002.
PRADO, José Luiz Gonzaga. Obediência da fé, Revista Vida Pastoral - Ano: 60 - Número: 246.

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