Entendendo a Escatologia Católica (3)

Reencarnação

A doutrina da reencarnação é muito antiga, anterior mesmo ao cristianismo. Muitos cristãos e cristãs acreditam na reencarnação, no entanto, não é possível crer em Cristo e crer na reencarnação. A doutrina da reencarnação contradiz duas verdades de fé cristã:

  1. A verdade da Redenção, segundo a qual é o amor gratuito de Deus que nos salva e não nossos méritos ou o nosso karma, o que equivaleria a uma autorredenção. Vemos que, para Jesus, o Pai perdoa o “filho pródigo” sem exigir “cobrança” ou reparação alguma (Lc 15,20-24; cf. Ef 1,6-8).
  2. A verdade da Ressurreição. O destino último da pessoa não implica em libertar-se da matéria ou “desencarnar”, mas em assumir a matéria e transfigurá-la. Na antropologia cristã, o corpo está ligado “substancialmente”, ou seja, intimamente, à alma, e não apenas exterior e acidentalmente.

Céu: Plenitude do desejo humano, Promessa de Deus

A tradição cristã sempre identificou o céu como o ponto máximo da aspiração humana, a meta suprema da vida em graça. No entanto, algumas questões se colocam em relação à chave segundo a qual se deve e pode entender essa plenitude, essa forma de ser, essa situação vital que chamamos céu.

O céu é realidade ou ilusão, alienação? Como se chega ao céu? O que é preciso para conquista-lo? Chega-se ao céu por atos individuais ou coletivos?

Seja qual resposta se coloque, o fato é que o céu, a vida eterna, é promessa real entregue ao ser humano por Deus, ratificada em Jesus Cristo, proposta de plenitude de vida e de realização radical para aquele que depositou sua confiança no amor e na abertura aos outros.

O Céu na Escritura Sagrada

No AT, o céu é basicamente intramundo. A promessa de Deus a seu povo funciona como dispositivo de abertura da história que se desdobra paulatinamente, à medida que as esperanças de libertação vão se realizando e suscitando novos e maiores desejos por uma libertação mais plena e completa. A vida plena cumulada pelas bênçãos divinas, é esta vida vivida na amizade e comunhão com Deus, único Bem capaz de dar sentido à existência.

No entanto, o homem do AT, começa a entrever que a plenitude e a imediatez da presença de Deus, pela qual suspira, não é possível durante a existência temporal. Alguns salmos (16; 73), o Livro da Sabedoria, entre outros, como Dn; 2Mc, refletem essa esperança de vida eterna, na qual o Senhor será plenamente conhecido e desfrutado, para além dos limites e do poder da morte. 

A pregação de Jesus vem delinear com traços mais nítidos o conteúdo último da promessa de Deus e da esperança humana. Sendo Ele mesmo a promessa cumprida e o Reino acontecido, vida ao alcance de todo aquele que acolhe a proposta do Reino anfitrião de um banquete ao qual todos são convidados. Essa visão, que é comunhão, colocada por Jesus ao nível de bem-aventurança (Mt 5,8) acontece nesta vida ainda em estado imperfeito, confuso. Como diz São Paulo em 1Cor 13,12: “Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido.” A esperança do cristão seria, então, segundo Paulo, a visão plena de Deus, que inclui vê-lo e por Ele ser visto, numa comunhão plena e perfeita, em fruição do amor que ama e é amado.

Mas essa visão só poderá ser contemplada quando a verdade e a justiça reinarem soberanas, revelando a descoberto a luz, a glória e a majestade do rosto do Senhor. Vivemos num mundo marcado pela injustiça e a opressão, que escondem o rosto de Cristo na história. O ressuscitado ainda está crucificado e sua glória permanece escondida, em tantos homens e mulheres vítimas da exploração e do pecado. Enquanto existirem pobres, explorados e excluídos, não se terá manifestado o que seremos, pois não poderemos ver a Deus tal qual Ele é: vida em abundância para todos. A vida eterna proposta no NT é a plenitude do amor. Onde há amor, ali há vida, presença, conhecimento e visão de Deus, bem-aventurança: “Se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós…” (1Jo 4,12).

A dinâmica da vida é inversamente proporcional à lógica do progresso e do sistema em que vivemos: nela o aumento e o crescimento não se dão por acumulação e ciumenta conservação. Mas o dar e o partilhar, o fazer com que mais e mais pessoas participem dos bens, da alegria, dos dons gera mais e mais vida.

A promessa da vida eterna ou do Céu, tem suas legítimas raízes solidamente plantadas no solo do NT. Não podem, porém, sob pena de sofrerem redução na amplitude e alcance de seu sentido original, ser compreendidas em chave individualista. É no contexto do encontro, da partilha e da festa, da alegria vivida em comunhão, da comunidade, que a plenitude do Céu como vida e visão deve ser entendida. O Céu é, fundamentalmente, a união com Cristo, o ser nele, o viver em comunhão profunda e indissolúvel com Ele.

Pela leitura atenta da Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG) e da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), conclui-se que, para o Concílio Vaticano II, o Céu começa, aqui, na terra, na luta dos seres humanos para que o grande banquete da Criação possa ser, com verdade, a festa de todos.

A plenitude anunciada por Jesus Cristo e ardentemente desejada por todo aquele que crê e espera não é somente aceno de um remoto futuro, mas consumação e realização absoluta de um encontro e de uma comunhão presentes em interação de e ainda não na vida e na história concreta do ser humano. Portanto o Céu da fé cristã não é um “além” extramundano ou metafísico. Não é um lugar ao qual se chega, do lado de lá da história, mas processo histórico que, sendo graça absoluta Daquele que é fonte de toda Graça, é também gestado e tecido na trama concreta das lutas, “angustias e esperanças” daquele que, em sua vida, luta e constrói o Reino de Deus no cotidiano da vida. Assim, o ser humano está no Céu na medida em que se encontra com Cristo e em Cristo. O Céu é, então, participação do ser, da pessoa de Jesus Cristo, Aquele que nos precede e abre caminho. E é, também, em decorrência, participação plena do ser de Deus. O Céu é plenitude daquilo que o cristão, a cristã já recebe no Batismo: a pertença a uma família, uma comunidade, a Igreja. É a comunhão dos santos em estado total de abertura, o ponto máximo de todo coexistir humano, a proximidade insuperável do amor, no rosto do outro, no rosto de Deus. Assim o Céu não é algo estranho à história e a ele não se chega instaurando um corte radical entre o antes e o depois da morte; o Céu começa e é gestado no seio da história, nas experiências e lutas por mais amor e justiça realizadas pelos homens sob a força do Espírito de Deus.

O Inferno: possibilidade e frustração eterna

O ser humano, feito para a vida, pode morrer eternamente? Feito para a convivência e a comunhão, pode ter como destino a eterna e absoluta solidão?

São questões polêmicas e que merecem cuidado nas respostas. A espiritualidade cristã e a Igreja têm apresentado como destino, àquele que se fechou ao amor de Deus e dos outros, conhecer eternamente as penas, os tormentos e o vazio, em suma: o inferno.

É preciso abordar a questão do inferno com a seriedade e o alcance que realmente tem: o de uma questão onde estão em jogo, profundamente vinculados e mutuamente implicados, a liberdade constitutiva da pessoa humana e o respeito de Deus por essa liberdade; a importância da vida e dos atos de cada um; e concretamente, na situação de injustiça e opressão na qual muitos vivem, o potencial “infernal” contido dentro das estruturas e mediações de exploração que certos grupos sociais sofrem por parte dos outros.

Há, ainda, a ideia de que o inferno é “um lugar”, para onde se vai depois da morte. Lugar que se situa “abaixo”, na região inferior de onde a vida acontece; lá existe o castigo eterno, onde se paga para sempre o mal cometido aqui; com fogo, enxofre, trevas, demônios torturadores, sede, gemidos e ranger de dentes.

No entanto, atualmente a ideia de que Deus é Pai Misericordioso, que tudo perdoa, fez com que muitas pessoas perdessem o “sentido do pecado”, assim perde-se a seriedade em relação à vida humana o fato de que, não importa o que se faça e as iniquidades que se cometam, no final da história existe um Deus misericordioso que, magicamente, suspende a sentença e providencia um final feliz. Porém nesse contexto, cabe perguntar: o pecado social, as estruturas opressoras e injustas, que destroem vidas humanas, praticadas por pessoas exploradoras e opressoras, ficarão impunes? O sofrimento em vida dos pobres, oprimidos, espoliados, não será julgado por Deus?

O inferno dentro da mensagem cristã não é categoria de anúncio ou promessa. O único fim, a única meta é a salvação que é o próprio Deus Amor, o objeto da Escatologia Cristã é: aquilo que, ao que crê, é permitido esperar. Assim, o inferno, não sendo anúncio, nem promessa, menos ainda, objeto de esperança, só pode ser categorizado como possibilidade.

O inferno não é criação de Deus. Pelos dados bíblicos, não se pode atribuir de nenhum modo a Deus, a responsabilidade direta na existência de um estado de perdição, assim como na existência do pecado. A origem da existência do inferno deve ser buscada no próprio ser humano. 

Afirmar a possibilidade do inferno provinda do próprio ser humano significa afirmar que Deus leva a sério o ser que criou à sua imagem e semelhança. Deus respeita profundamente a liberdade humana, até mesmo a de o ser humano, recusar a oferta de salvação total oferecida por Deus, no entanto, ao recusá-la, o ser humano cai na perda total.

Recusa voluntária da vida, da abertura, da comunicação; preferindo viver no fechar-se definitivamente à relação, à comunhão, isolar-se num mutismo amargo e solitário, onde se elimina o outro da própria vida; onde o único som presente é o “choro e o ranger de dentes”, assim é o inferno. Portanto o inferno não pode ser compreendido como um lugar, para onde se vai após a morte, mas como situação vital, forma de ser e estado integral daquele que escolheu para si próprio o caminho da condenação.

Assim o inferno não acontece apenas depois da morte, quando tudo já está decidido e os jogos feitos. Nem decorre, tampouco de um ato isolado no decorrer da vida. É aqui e agora, no tempo da história, na trama da vida real e das estruturas sociais injustas, que o inferno se gesta e aparece como possibilidade concreta, que pode ser vista através do sofrimento infligido a tantos pela privação dos mais elementares direitos humanos (tais como saúde, educação, oxigênio, vacinas, etc.), possibilidade de morte externa que pode ser escolhida pelo mesmo ser que foi criado e destinado ao céu, a comunhão, a eterna bem-aventurança da vida.

Parusia ou segunda vinda de Cristo

Parusia significa “presença” ou “chegada”. Era usada para dizer que o rei iria visitar uma cidade. No 1º século da era cristã essa palavra é usada para anunciar a volta de Jesus. Os textos que falam de Parusia tem várias características dependendo do local onde foram escritos. 1) Paulo estava convencido de que aconteceria ainda durante a sua vida (1Ts 4, 15-17); 2) As comunidades judaicas dependiam do judaísmo e esperavam um Messias temporal; 3) As comunidades da Galiléia, Jerusalém e Roma sofriam perseguição, opressão e submissão, chamam e desejam o fim de todo sofrimento.

Nos estudos sobre a Parusia formou-se dois grupos:

Escatológico – que espera a vinda de Jesus a qualquer momento. Criaram o medo escatológico, enxergam o anti-cristo em tudo e pregam o fim do mundo anunciando grandes desgraças e catástrofes. Consideram-se os únicos e exclusivos que serão salvos. Por uma catequese de séculos, fomos acostumados também a compreender a Parusia como última coroação triunfalista do assim chamado “fim do mundo”. Foi-nos dito que no decorrer de uma manifestação de dominação, Jesus, enfim, se manifestaria a todos com poder e glória. Essa “glória” foi compreendida em geral com base em parâmetros do pensamento humano. Assim, fez-se de Jesus um imperador poderoso e de sua volta uma vitória triunfal sobre todos os seus inimigos. (Esperança além da Esperança – Renold J. Blank e M. Ângela Vilhena. p. 125)                 

Apostólico ou missionário – esse grupo entendeu a obra evangelizadora, para eles a Parusia acontece todos os dias, cada vez que Jesus é anunciado, e quem crê passa da morte para a vida e quem não crê já está julgado, conforme Mt 25, 31-46 

A presença real de Jesus Cristo neste mundo se concretiza na medida em que realizamos a identificação com suas palavras proferidas em Mt 25,40 (“…cada vez que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.”). A Parusia plena será alcançada, quando todos reconhecerem a Ele nos seus irmãos e nas suas irmãs. Neste momento, Jesus se tornará visível para todos, e na sua glória, da qual fala o credo da Igreja Católica, será a revelação pública daquela identificação.

A Parusia não seria, consequentemente, um acontecimento momentâneo e triunfalista, num momento final da história. Ela seria muito mais um processo que já está em andamento. Um processo histórico, no decorrer do qual se revela cada vez mais a identificação do Ressuscitado com os mais fracos, os rejeitados, os excluídos e os pobres. O Senhor do cosmos se tornou um deles. Verdade paradoxal e último triunfo de um Deus que também é homem. Vitória final de um Messias, cujo lema era exatamente a superação dos mecanismos de poder e de glória, e sua substituição por valores de fraternidade e de amor preferencial para com os pequenos. 

Se faz urgente redescobrir que a sigla “Juízo Final” quer exprimir uma das grandes e mais profundas esperanças escatológicas: a convicção de que a história cósmica como um todo, apesar das aparências, é uma História de Salvação e não de perdição.

A conversão de toda a história em Cristo chega a seu ponto culminante naquilo que chamamos “Parusia”.

O grande critério de identificação entre Jesus e seus irmãos humanos, está formulada em Mt 25, assim a Parusia vista deste enfoque é um processo histórico que já começou, a sua plenificação, porém, se realiza quando o processo evolutivo do cosmo chega a sua última finalidade. Ela será a grande revelação final sobre Jesus, o Cristo, Senhor do cosmos, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, Messias crucificado, mas ressuscitado por Deus Pai. Confirmado por essa ressurreição como Filho de Deus e segunda pessoa da Trindade.

O Reino de Deus não começará num futuro longínquo ou no além, mas já começou. Ele não se situa exclusivamente numa dimensão transcendente, mas começa já, na história concreta do mundo.

O Reino de Deus não é realidade espiritual e transcendente, mas força transformadora muito concreta da realidade.

Conclusão

“Ele (Deus) é, uma vez alcançado é o céu, uma vez perdido é o inferno; enquanto examinador é o juízo; enquanto purificador é o purgatório…E é tudo isso no modo como Ele se voltou para o mundo, ou seja, em seu Filho Jesus Cristo, que é a possibilidade de revelação de Deus e, portanto, a síntese das coisas últimas” (Hans Urs Von Balthasar in Ladaria, 2007.

Referências:
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BLANK, Renold J. VILHENA, Maria Angela. Esperança além da esperança: Antropologia e escatologia. Valencia (Espanha): Siquem, 2001.
BOFF, Clodovis. Escatologia: breve tratado teológico-pastoral. São Paulo: Ave Maria, 2012.
LADARIA, Luis F. Introdução à antropologia teológica. 3ed. São Paulo: Loyola, 2007.
LIBÂNIO, João Batista. BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia cristã: O Novo Céu e a Nova Terra. Petrópolis: Vozes, 1985.
MANZATTO, Antonio. PASSOS, João Décio. VILLAC, Sylvia. De esperança em esperança: escatologia. 2ed. São Paulo: Paulus, 2011.
MURAD, Afonso. CUNHA, Carlos. GOMES, Paulo Roberto. Da terra ao céu: escatologia cristã em perspectiva dialogal. São Paulo: Paulinas, 2016.

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