A evolução do pensamento e significado do matrimônio ocorreu de forma substancial no Concílio Vaticano II. A herança agostiniana (casamento = prole), fundamental ao sacramento em questão, não foi descartada, mas o Concílio ampliou e reinterpretou a compreensão, inserindo novos pontos de vista, como de Santo Tomás de Aquino, de olho na prática da vida e na aplicabilidade do mundo atual.
A Gaudium et Spes (Constituição Pastoral, fruto do Concílio Vaticano II), no capítulo I da parte II, mostra essa evolução no sacramento do matrimônio. No entanto, é compreensível que os textos conciliares, ao mesmo tempo em que avançam, sutilmente recuam. A novidade de abertura da Igreja, mais próxima com a realidade do povo, não foi benquisto por grande e expressiva parte dos clérigos, o que “travou” alguns pontos. Pode-se dizer que em vista ao matrimônio foi somente avanço, mas nas entrelinhas percebe-se um movimento gangorra, ora em cima, ora embaixo. De qualquer modo não dá para negar que todos os documentos trouxeram novidades interpretativas na vida e na prática da Igreja.
Novas perspectivas
Voltando ao sacramento do matrimônio – com base na Gaudium et Spes –, vemos o passado e o presente dialogando. O texto abaixo mostra um pouco desse diálogo, tecendo o pensamento de Agostinho, Tomás de Aquino e de documentos da Igreja – entre eles a famosa encíclica de Pio XI, Casti Connubii:
“O próprio Deus é o autor do matrimônio, o qual possui diversos bens e fins, todos eles da máxima importância, quer para a propagação do gênero humano, quer para o proveito pessoal e sorte eterna de cada um dos membros da família, quer mesmo, finalmente, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade de toda a família humana.”
Gaudium et Spes 48
A fecundidade era o indicativo último que melhor descrevia o amor conjugal. Porém o Concílio abre uma nova perspectiva que desfaz um paradigma de séculos: o desprezo pelo prazer dos cônjuges, em vista da procriação.
Outros bens e fins
Ainda sobre o amor dos cônjuges, a Gaudium et Spes vai dizer da honestidade e dignidade da união íntima do casal, e que tal união, gerada na entrega de um para o outro, proporciona alegria mútua e gratidão. Opa! Percebe-se uma nova forma de enxergar a vida a dois, onde anteriormente se resumia na prole, na fidelidade e indissolubilidade. Claro, nenhum destes valores se deteriorou, no entanto, vislumbrou-se os outros diversos bens e fins que se dão no sacramento do matrimônio.
Sem surpreender, na sequência do mesmo documento o texto volta a “dogmatizar” a geração e educação da prole como principal via do matrimônio. Normal. Obviamente a Igreja não nega seu passado. Mas agora traz também consigo os dramas morais da vida moderna e, por isso, não ignora a mudança do tempo e a aplicabilidade da doutrina. Em outras palavras, o Concílio sugere que os cônjuges é que deverão compreender as condições gerais que os cercam antecipadamente ao consenso de ter filhos. Mas que, vencido os problemas de impedimento, os tenham de acordo com a lei divina.
Ainda discursando sobre a geração, a Gaudium et Spes (51) mostra o respeito que a Igreja tem perante as dificuldades das famílias na criação dos filhos. Tais dificuldades podem atingir a própria relação conjugal, provendo um distanciamento do casal e, consequentemente, pondo em risco a fidelidade e o bem familiar. Nisto a Igreja consente que a geração deva ser mais bem pensada, para não acabar se tornando um mal ao invés de um bem. Mas condena veementemente a possibilidade da interrupção da vida já concebida.
Então, sim, o sacramento do matrimônio é reestudado pela Igreja sob a luz dos nossos dias. Resgata-se muito do valor que vem da Tradição e abre-se, por vezes timidamente, ao diálogo com o novo mundo e seus novos problemas. A encíclica de Pio XI, Casti Connubii, antiga referência máxima a este sacramento, é revisitada sob prismas diferentes, acrescentando valor positivo à nova concepção que nasce – oficialmente – com o Vaticano II.
Uma resposta em “Qual finalidade do sacramento do matrimônio, enfim?”
Texto riquíssimo que faz uma análise comparando textos do mais importantíssimo Concílio da Igreja inspirado pelo aggiornamento! Parabéns, Diácono Bruno pelo trabalho!