O Livro do Apocalipse (Pt 2)

Esta é a segunda parte [de 9] do estudo do livro do Apocalipse. Para uma melhor compreensão do todo, sugerimos acompanhar as demais partes indicadas e numeradas abaixo. Bom proveito!

Ap 1,1-3

Situando:

Estes poucos versículos iniciais oferecem preciosas informações sobre a natureza, a origem, o conteúdo e a autoridade do Ap. Mostram ainda como o livro deve ser lido e interpretado, qual a exigência de compromisso e qual a recompensa que a sua observância traz consigo. Aqui não aparece nada que possa amedrontar ou ser motivo de condenação. Aparecem, isto sim, motivos de esperança, que ajudam as comunidades a entender melhor os acontecimentos.

Logo no início do livro, já transparece o problema literário. A apresentação fala sobre João. Na saudação (Ap 1,4-8), é o próprio João quem fala. Sinal de que o livro não foi escrito de uma só vez e que a sua redação final não é de João, mas sim, de uma outra pessoa.

Alargando:

O livro vai revelar o que até agora estava escondido, a saber: “as coisas que devem acontecer muito em breve”. Trata-se dos acontecimentos previstos para a chegada do Dia de Adonai [1], o dia da vinda de Jesus da intervenção de Deus contra o Império romano que estava hostilizando as comunidades.

A origem desta Revelação está em Deus. Deus a transmitiu a Jesus. Jesus a entregou ao anjo. O anjo manifestou-a a João. João a transmite agora aos servos, às comunidades. Deus quer que a revelação aconteça diretamente entre Jesus e as comunidades. O anjo e João funcionam como intermediários.

Deus manifestou-a com sinais. O verbo grego semaino, usado para designar a maneira como a mensagem foi comunicada a João, sugere que a Revelação é transmitida não numa linguagem comum, mas, sim, por meio de sinais – visões, símbolos, imagens. Isto significa que a linguagem apocalíptica não pode ser interpretada ao pé da letra.

O conteúdo da Revelação é aquilo que deve acontecer muito em breve. A expressão deve acontecer não significa que as coisas anunciadas vão acontecer independentemente de nós, sem a nossa participação. Isto geraria um sentimento de fatalismo nas pessoas. A expressão deve acontecer não é dita em relação às comunidades que querem participar do projeto de Deus, mas é dita em relação ao Império romano que pensava poder contrariar ou impedir os Planos de Deus. Contra essa pretensão dos poderosos, o Apocalipse afirma que, apesar de toda a ação do Império em contrário, o projeto de Deus deve acontecer. Ninguém neste mundo é capaz de impedir a sua realização. A comunidade que participa da realização deste Projeto, mesmo perseguida e derrotada, será vitoriosa. A sua participação pode até “apressar a chegada do Dia de Adonai! (2Pd 3,11-12).

Esta Revelação é de grande importância, pois ela é, ao mesmo tempo: Palavra de Deus, testemunho de Jesus e profecia. Por isso não basta ler e ouvir o livro. É preciso observar a sua mensagem. Há urgência, pois o tempo está próximo. Não se trata do tempo chronos que pode ser medido no calendário ou pelo relógio. Trata-se do Tempo de Deus: kairos ou Hora de Deus, escondida nos acontecimentos, que a fé atenta e comprometida consegue descobrir com a ajuda do livro de João, que aqui nos é apresentado.

Ap 1,4-8

Comentando:

O número sete indica totalidade, assim o autor ao se dirigir às sete Igrejas, está se dirigindo à todas as Igrejas e comunidades, espalhadas pelo Império romano, assim como as nossas pequenas comunidades espalhadas pelas periferias das grandes cidades do império neoliberal.

João deseja a graça e paz, que não é a Pax romana, que se implanta pela força das armas em vista do domínio romano. Essa Pax concentrava a riqueza do mundo em Roma, à custa da escravidão da grande maioria do povo. A paz que João deseja é a Paz que vem da Santíssima Trindade, fonte de tudo de onde tudo nasce, mar para onde tudo converge.

Os três títulos de Jesus, o autor os tirou do salmo messiânico 89/88, onde o Messias é chamado Testemunha fiel (Sl 89,38). Primogênito e Altíssimo sobre os Reis da terra (Sl 89,28). Os primeiros cristãos se inspiraram nos escritos do AT para formular a doutrina. A partir da sua fé em Jesus ressuscitado, eles reliam o AT e descobriam nele um novo sentido.

Ainda usando frases conhecidas do AT, relata o que Jesus fez por nós: “Ele nos ama” (Is 43,4), “fez de nós uma realeza e sacerdotes para Deus seu Pai” (Ex 19,6; Is 61,6).

No V.7 o autor usa uma frase de Zc 12,10.14 para expressar o que dele espera o futuro. A esperança que anima e sustenta as comunidades na caminhada é esta: um dia, Jesus será conhecido e amado por todos!

Hoje em dia cerca de dois bilhões de pessoas conhecem Jesus ou ouviram falar de Jesus, na época em que o livro foi escrito, 99,9% das pessoas não sabiam quem era, nem nunca tinham ouvido falar dele. Seu nome era proibido de ser falado, pelos poucos que o conheciam e o seguiam, e corriam risco de morrer se fossem descobertos, mesmo assim eram fieis a Ele.

Os nomes da Santíssima Trindade

O nome Alfa e Ômega ocorre três vezes no Ap: duas vezes aplicado a Deus (1,8;21,6) e uma vez a Jesus (Ap 22,13). É como se disséssemos de A a Z ou Primeiro e Último (Is 44,6; Ap 1,17). Deus está no princípio e no fim da história humana. 

Era-É-Vem ocorre cinco vezes. No início, Deus é chamado: “É, Era, Vem” (Ap 1,4.8;4,8). No fim, o nome muda para “É, Era” (11,17;16,5). Já não vem mais, porque já veio. O objetivo do Ap é descrever como acontece esta vinda de Deus ao longo da história. Nosso Deus não é um Deus distante. Ele esteve conosco no passado, está conosco no presente, estará conosco no futuro. A história de Deus é a história de seu povo.

O Todo Poderoso ocorre dez vezes no NT, nove só no Ap, e uma vez em 2Cor 6,18. Em grego se diz Pantocrator, que era o título imperial dos reis depois de Alexandre Magno. Para os cristãos o verdadeiro rei é Deus. O título fundamenta a certeza da vitória e leva a cantar, desde já, a alegria do nascimento do Novo Céu e da Nova Terra. (Ap 21,2).

O nome do Filho

Testemunha Fiel: testemunha e mártir são sinônimos. O Filho foi obediente ao Pai e testemunhou a Boa Nova de Deus e ser mártir de sua fé no Deus da Vida.

Primogênito dos mortos: Jesus é o primeiro a ressuscitar, por isso primogênito, o irmão mais velho. A sua vitória sobre a morte vai acontecer com todos nós, suas irmãs e seus irmãos.

Príncipe dos reis da terra: Quem utilizava este título era o imperador romano. Os primeiros cristãos deram esse título a Jesus. Crer em Jesus era um ato de rebeldia contra o Império romano e sua ideologia.

O nome do Espírito Santo

Sete lâmpadas: São lâmpadas de fogo (4,5), porque simbolizam a ação do Espírito Santo que ilumina, esquenta e purifica (At 2,1). “Estão diante do Trono” porque estão sempre prontos para atender a qualquer pedido de Deus.

Sete olhos: em Ap 5,6 se lê que o Cordeiro “tem sete olhos que são os sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra”. Imagem bonita! Basta o Cordeiro olhar e, para onde ele olhar, é lá que o Espírito age, pois o seu olho é o próprio Espírito. E ele sempre olha para nós.

Sete Espíritos: Os sete espíritos evocam os sete dons do Espírito de que fala o profeta Isaías e que irão repousar sobre o Messias (Is 11,2-3). Esta profecia se realiza em Jesus. Os sete espíritos são, ao mesmo tempo, de Deus e de Jesus. A mesma identificação do Espírito com Jesus transparece no fim das sete cartas. É Jesus quem fala nas cartas, mas no fim de cada carta se diz: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas”. Jesus fala, o Espírito fala, é a mesma coisa.

Ap 1,9-20

Situando:

A visão inaugural de Jesus ressuscitado é o grandioso painel de entrada do Ap. Nele o autor transmite a experiência que ele mesmo teve da ressurreição. É o resumo e o centro da mensagem que ele quer comunicar às comunidades cansadas e perseguidas da Ásia Menor. É para que elas possam ter a mesma experiência da presença viva de Jesus ressuscitado no meio delas. Pois só assim serão capazes de superar o medo da morte e de acreditar na vida.

Temos aqui a primeira grande visão que nos coloca em contato direto com a linguagem dos símbolos, própria do Ap. É uma linguagem cujo valor e mensagem não estão só naquilo que é dito, mas também e sobretudo naquilo que é sugerido e evocado.

Convém ler a visão inaugural de Jesus como se contempla uma pintura, como se assiste a um drama, como se ouve uma música.

Comentando:

1,9: João se apresenta como irmão e companheiro, não usa nenhum título honorífico. Ele é perseguido “por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus”. Sofre a mesma coisa que os outros para os quais escreve. Conhece por dentro o drama dos companheiros e das companheiras. Por isso, tem autoridade e condições de falar e animá-los com sua mensagem.

1,10: A visão de Jesus ressuscitado aconteceu no Dia de Senhor [2]. Era o dia em que as comunidades cristãs se reuniam para celebrar a memória de Jesus e sua ressurreição.

O Dia do Eterno [3] é também o Dia de Adonai, os profetas anunciavam que o Dia do Eterno ou o Dia de Adonai seria um dia de trevas para que os que oprimiam o povo, e um dia de luz para os perseguidos e oprimidos (Am 5,18-20).

Ouvir uma voz forte nos diz que a mensagem não é de João, mas do Espírito, ou seja: do próprio ressuscitado.

1,11: Sabemos que o número sete simboliza a totalidade, portanto, ao elencar as sete igrejas da Ásia Menor (atual Turquia) o ressuscitado quer que a mensagem chegue a todas as comunidades do mundo, inclusive a nossa. Ele quer que todas as comunidades sejam animadas, a condição para captar sua mensagem é imitar o próprio João e ser irmão e companheiro na tribulação, ser solidário com os que sofrem. É assim que sintonizamos na frequência em que João transmite a sua mensagem para as comunidades da Ásia.

1,12-16: A descrição do ressuscitado é mais intelectual do que visual, obtida pela soma de traços heterogêneos, que não compõem uma figura fácil de visualizar. Deve predominar uma impressão geral de poder e majestade. Tem figura humana, como em Dn 7,13. A túnica indica sacerdócio e o cinto realeza e justiça (cf Is 11,5); os cabelos brancos como os de Ancião (Dn 7,9) indica longevidade e sabedoria. Os pés de bronze revelam firmeza e estabilidade. Sua voz como a que Ez ouviu (Ez 1,24) indica poder. Move-se entre candelabros, as igrejas que iluminam o templo de Deus. Traz nas mãos o domínio dos exércitos siderais, na boca a sentença afiada da justiça (cf Is 11,4). O conjunto parece com a figura de Dn 10,5-6: “Como o sol”: cf Jz 5,31 e Eclo 43,2-4.

1,17-18: A primeira reação de João é de medo, de angústia. Era a reação normal diante da manifestação de Deus (Dn 10,9; Is 6,5; Ex 3,6). Mas não é só isto! A atitude de medo de João reflete a situação das comunidades. Ameaçadas por dentro e por fora pelo poder do Império e pelas tensões internas, elas estavam prostradas e com medo. Estavam no escuro. Não sabiam que eram luz. Alguém precisa despertá-las e animá-las.

Exilado na ilha de Patmos, num momento de desânimo e de prostração, João tece uma forte experiência da ressurreição de Jesus que o reanimou e o fez ressuscitar. Ele sentiu Jesus ressuscitado. João descreve a sua experiência para que as comunidades possam ter a mesma experiência de ressurreição. Ele quer que, como ele, elas possam sentir a mão de Jesus no ombro e ouvir a mesma voz que lhes diga: “Não tenham medo!”.  O fundamento para o otimismo é a palavra do Ressuscitado. A palavra Hades significa a morada dos mortos (algumas traduções podem estar como Abismo, ou mesmo como Morada dos Mortos, o que não quer dizer inferno como entendemos hoje). É o poder da ressurreição que aqui se manifesta. Por ela a morte foi vencida, e vencido também o poder do Império que persegue e mata. A frase de Jesus resume a mensagem central do Livro do Apocalipse. Com esta mensagem no coração, na mente e nos olhos, as comunidades serão capazes de entender melhor o sentido verdadeiro dos acontecimentos que os fazem sofrer e terão um critério certo e seguro para entender o que vão ler no Livro do Apocalipse. 

1,19-20: A mensagem deve ser escrita. No começo do livro o editor falava apenas das “coisas que devem acontecer em breve” (1,1). Aqui, o autor alargou o horizonte e incluiu também as coisas que estão acontecendo. Alguns acham que nesta frase João esteja oferecendo o programa de seu livro: as coisas que estão acontecendo nas comunidades serão descritas nos capítulos 2 e 3, e as que vão acontecer depois serão descritas nos capítulos de 4 a 22.

No fim deste capítulo Jesus explica dois símbolos: “as sete estrelas são os anjos das igrejas”, esses anjos são os líderes das comunidades: o pároco, as coordenadoras e os coordenadores de pastorais e dos movimentos, catequistas, ministros extraordinários da sagrada comunhão, entre outros. Os sete candelabros de ouro, são as igrejas, as comunidades. Esta frase final costura a transição e liga a descrição da visão inaugural de Jesus com as cartas para as sete comunidades, que seguem nos capítulos 2 e 3. As cartas são continuação da palavra de Jesus para as comunidades.

Referências
AUTORIA COLETIVA. Evangelho de São João e Apocalipse, roteiros para reflexão IX. São Leopoldo: CEBI – Centro de Estudos Bíblicos. São Paulo: Paulus, 2000.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2010.
BÍBLIA DO PEREGRINO. 2ª Ed. São Paulo: Paulus, 2006.
BORTOLINI, José. Como ler o Apocalipse – Resistir e Denunciar. 8ª Ed.São Paulo: Paulus, 2008.
BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. 2ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2012.
CORSINI, Eugênio. O Apocalipse de São João. São Paulo: Paulinas, 1984.
FITZMEYR, Joseph A.; MURPHY, Roland E; BROWN, Raymond E. (Orgs.) Novo Comentário Bíblico São Jeronimo: Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2011.
MESTERS, Carlos. OROFINO, Francisco. Apocalipse. 2ª Ed. São Paulo: Fonte editorial; Aparecida: Santuário, 2013.
TUÑI, Joseph-Oriol. XAVIER; Alegre. Escritos Joaninos e cartas católicas. 2ª Ed. São Paulo: Ave Maria, 2007.


 

[1] Adonai = Senhor, usado no lugar do nome de Deus, tetragrama, para não ferir o segundo mandamento.

 

 

[2] Domingo, primeiro dia da semana, quando se reuniam para ouvir a Palavra, partir o pão, celebrar a ressurreição de Jesus.

 

 

[3] Eterno = Senhor, usado no lugar do nome de Deus, o tetragrama, para não ferir o segundo mandamento.

 

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