Fé e Política na Bíblia (Pt-1)

É sabido que a Sagrada Escritura nos remete a fé. Mas será que é possível que, esta mesma Sagrada Escritura, nos remete à Política?

A Bíblia pode conferir ao ser humano de hoje uma Política reta que atenda às suas ansiedades morais, éticas, promovendo a democracia participativa?

O presente artigo pretende responder, de forma limitada, como a Sagrada Escritura, além do ponto de vista da fé, tem fundo Político. Longe de esgotar o tema, apresentamos as definições de cada um dos termos (Fé – Política), e selecionamos alguns trechos da Bíblia para embasar a nossa leitura.

É uma palavra formada por duas letras e um acento gráfico, no entanto, esta pequeníssima palavra, é determinante, tanto nas relações entre pessoas, como no universo religioso onde o ser humano faz a experiência do sagrado.

No mundo clássico antigo, a fé era considerada um valor de primeira importância para a vida. A confiança na palavra do outro se personificou e foi um divindade, tanto em Atenas como em Roma, com templos e cultos próprios. Consideravam-se a fé como o fundamento das relações comerciais, sociais e políticas. A fé, como confiança nos outros e a capacidade para merecê-la deles, era tida como condição fundamental para uma vida verdadeiramente humana.

Porém nossa exposição, aqui, vai se direcionar para a relação entre o ser humano e o divino; assim a religião aparece como mediação que manifesta a presença do transcendente, do sagrado, do enigmático, do extraordinário. É o nível da experiência religiosa concebida como fenômeno religioso propriamente dito. Aqui a fé é a mediação da manifestação do sagrado na perspectiva de uma tomada de consciência, por parte do ser humano, da presença do sagrado.

A fé, também, está relacionada com a experiência com, ou, melhor, do sagrado, assim, o sentido da fé é uma experiência personalizada, existencial e histórica de Deus. Deste modo a experiência religiosa de Deus na tradição bíblica, em cuja implicação está a passagem de uma experiência coletiva do sagrado a uma experiência pessoal e salvífico-libertadora que se manifesta na dinâmica da história.

É através da fé que o ser humano, no seu tempo histórico, vai tomando consciência da autocomunicação reveladora de Deus, o qual é o sujeito que toma a iniciativa de revelar-se. O próprio Deus que se revela é também conteúdo da revelação, já que não é outro que se revela, mas ele mesmo. Por isso podemos falar em auto revelação de Deus.

No entanto, a fé deve nos remeter a ações e atitudes, que determinam a forma pela qual entendemos como a fé se faz presente em cada um de nós e no nosso cotidiano.

Para uma manifestação verdadeira da fé, é preciso um olhar horizontal do fiel, ou seja, é preciso direcionar seu olhar para o irmão, para a irmã, especialmente os descartados socialmente, os excluídos, os marginalizados, os que sofrem preconceitos, enfim, os pobres. A fé, precisa ter uma dimensão social. Uma fé, sem essa resposta do ser humano a Deus, é uma fé morta, conforme já nos alertava Tiago em sua carta (Tg 1,14-17).

A fé tem uma dimensão vertical e uma dimensão horizontal. A fé é, também, um diálogo entre Deus e o ser humano que se abre a esse diálogo, assim como Abraão e Moisés, conversavam com Deus, como se conversa com um amigo (Ex 33,11). No entanto é preciso compreender que essa abertura do ser humano a Deus dá-se tanto no sentido vertical como em sentido horizontal, ou seja: em duas dimensões que estão necessariamente conjugadas. A dimensão vertical é a entrega que a pessoa faz de si a Deus, num incondicional abandono de amizade e intimidade (cfe. Gn 18,16-33), de tal forma que Deus, é experimentado como princípio e fim da existência humana. A outra dimensão, a horizontal, é a abertura da pessoa para com as relações de vida com as outras pessoas. A dimensão horizontal da pessoa humana, analisada do ponto de vista da vida cristã, enriquece-se e enraíza-se no interior da dimensão vertical da fé. Aqui está a importância dessa unidade horizontal-vertical, a dimensão vertical da fé tem sua origem no Deus-Amor (cfe. 1Jo 4,8b.16), neste sentido a dimensão horizontal da fé, porque está relacionada na dimensão vertical dessa mesma fé, traduz-se em gestos e atitudes de amor. “O nome da fé, na sua dimensão horizontal é, justamente, amor”.

Portanto esse amor, deve ser realizável, visível, concreto. Esse amor/fé, se materializa no cuidado para com o outro, na atenção das necessidades dos semelhantes, qualquer que seja essa necessidade. Muitas vezes, quando pensamos em pobres, logo, lembramos de cestas básicas, roupas para doação, entre outros itens materiais; no entanto, há pessoas que não precisam desses itens, elas, podem precisar de um ombro amigo, de quem lhes de ouvidos atentos, palavras que não julgam, mas, que, os animem; muitas vezes, um caloroso abraço, pode curar feridas e abrir ao perdão e reconciliação, que podem ser consigo mesmo.

Assim, quando dizemos que amamos a Jesus, deveríamos ter no coração, que só podemos amar a Jesus, através dos outros. Como nos alerta São João em sua Primeira Carta quando diz: “Se alguém diz: ‘‘Eu amo a Deus’’, e, no entanto, odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê. E este é justamente o mandamento que dele recebemos: quem ama a Deus, ame também o seu irmão.” (1Jo 4,20-21).

Santo Tomaz de Aquino considera a fé o primeiro bem necessário a todo cristão, porque pela fé o cristão é conduzido à união com Deus, assim como diz o profeta Oséias: “Desposar-te-ei na fé” (Os 2,22).

No batismo somos perguntados primeiramente: “Crês em Deus?”, isso porque o batismo é o primeiro sacramento da fé. Pela fé a vida eterna já tem início em nós, e que é o conhecimento de Deus (Jo 17,3), que atingirá a sua perfeição na vida futura quando conheceremos a Deus como ele é (Hb 11,1). Pela fé recebemos reta orientação para a nossa vida presente, porque para que alguém viva uma boa vida é preciso que saiba tudo o que é necessário para viver retamente. Pela fé superamos os perigos das tentações de romper a aliança com Deus (Hb 11,33. 1Pd 5,80, e pela fé somos fortalecidos para perseverar no caminho do compromisso com Deus e com os irmãos (1Jo 5,4).

A Fé na Sagrada Escritura

O termo ‘fé’ aparece cerca de 308 vezes na Bíblia, interessante notar que no Primeiro Testamento é citada apenas 14 vezes, o restante está no Segundo Testamento.

Quando se fala em fé na Bíblia, ou qual o modelo de pessoa de fé, é inevitável não lembrar de Abraão. Abraão é nosso pai na fé. Ele está na raiz da fé judaica, cristã e islâmica. Todos professam que há um só Deus que falou primeiro a Abraão e aos seus filhos e netos, que denominamos Patriarcas e Matriarcas. Isaac teve dois filhos: Esaú e Jacó, que teve seu nome mudado para Israel e gerou doze filhos: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Isaacar, Zabulon, José, Benjamim, Dã, Neftali, Gad e Asser, e uma filha Diná. Estes formaram as tribos de Israel.

Quando Israel queria recordar o início da sua fé, falavam do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, que prometeu fidelidade. A primeira aliança (pacto) foi feita com esse povo. A nova aliança, o pacto de amor que vale até hoje, Deus fez com a vinda de Jesus, que era judeu, mas que estendeu a promessa de amor a todos os povos, tribos, etnias e nações.

Vejamos o texto de Gn 12,1-9: 1YHWH disse a Abrão: “Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. 2Eu farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de modo que se torne uma bênção. 3Abençoarei os que abençoarem você e amaldiçoarei aqueles que o amaldiçoarem. Em você, todas as famílias da terra serão abençoadas”. 4Abrão partiu conforme lhe dissera YHWH. E Ló partiu com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã. 5Abrão levou consigo sua mulher Sarai, seu sobrinho Ló, todos os bens que possuíam e os escravos que haviam adquirido em Harã. Partiram para a terra de Canaã e aí chegaram. 6Abrão atravessou a terra até o lugar santo de Siquém, no Carvalho de Moré. Nesse tempo, os cananeus habitavam essa terra. 7YHWH apareceu a Abrão e lhe disse: “Eu darei esta terra à sua descendência”. Abrão construiu aí um altar a YHWH, que lhe havia aparecido. 8Daí, passou para a montanha, a oriente de Betel, e armou sua tenda, com Betel a oeste e Hai a leste. E aí construiu um altar a YHWH e invocou o nome de YHWH. 9Depois, de acampamento em acampamento, Abrão foi para o Neguev.

A história de Abraão está diretamente ligada à história de toda a humanidade: com ele começa a surgir o embrião de um povo que terá a missão de trazer a bênção de Deus para todas as nações da terra. Esse povo será portador do projeto de Deus: toda nação que se orientar por esse projeto refará no homem a imagem e semelhança de Deus, desfigurada pelo pecado (Gn 4,1-16). O caminho começa pela fé: Abrão atende o chamado divino e aceita o risco sem restrições. Ele percorre rapidamente a futura terra prometida: isso mostra que o projeto do qual ele é portador é um projeto histórico, encarna­do dentro da ambiguidade e conflituosidade huma­na. O que Deus promete a Abrão? Simplesmente aquilo que qual­quer nômade desejava: terra pa­ra os rebanhos e filhos para cuidar deles. Em outras palavras, o que Deus promete é exatamente aquilo a que o homem aspira para responder às suas necessidades vitais. E hoje, quais são as supremas necessidades do homem? Por trás das necessidades estão as aspirações e, dentro destas, a pro­messa de Deus. 

Outra personagem se suma importância para a nossa fé, certamente, é Maria de Nazaré. Ela é, com certeza, o modelo de uma vida de fé, pois ela e a primeira que professou a fé cristã, pois antes da fé dos apóstolos houve a fé de Maria, que é o protótipo e paradigma para a nossa fé (que deve ser a nosso modo de fé: DE Maria, e não em Maria).

Desde o Primeiro Testamento a fé está no início da salvação do povo, como vimos a fé de Abraão comentado acima. O povo crê e isso se torna o início de sua Salvação (Ex 4,31). E na origem do Povo de Deus do Novo Israel, temos o ato de fé de Maria, que creu nas palavras do anjo, que era a Palavra de Deus, e a salvação fez entrada no mundo. São Bernardo de Claraval descreveu o momento da Anunciação como um momento dramático, momento no qual estávamos como que pendurados nos lábios de Maria.

Para nossa felicidade, a resposta de Maria foi o Sim, o fiat (Lc 1,38). O fiat, o ato de fé de Maria, foi subscrito pelo Espírito Santo, pois graça e fé são os dois pilares da salvação. Maria foi plenamente consciente desse dom de Deus, da gratuidade da graça e da fé, pois foi isso que a fez dizer: “Eu sou a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra” (L1,38).

Mesmo que não tenhamos visto toda a profundidade da fé de Maria, podemos dizer que a fé de Maria é paradigmática para a Igreja. Em si o ato de fé de Maria é muito pessoal, único, e não se pode repetir, no caso, a fé subjetiva, que consiste em confiar em Deus e entregar-se totalmente a ele. Isso é o aspecto subjetivo da fé. Contudo a fé de Maria não é somente subjetiva, mas também objetiva. Ela não acreditou num Deus puramente subjetivo, separado da história ou da realidade do seu povo. Ao contrário, ela acreditou no Deus dos pais, no Deus do seu povo, reconhecendo, no Deus que se lhe revelou, o Deus das promessas, o Deus de Abraão e da sua descendência, colocando-se, humildemente, na fileira dos crentes, tornando-se a primeira crente da Segunda Aliança, como Abraão, que tinha sido o primeiro crente da Primeira Aliança.

Esse exemplo de objetividade da fé de Maria é importante para a Igreja, para cristãs e cristãos, principalmente para as muitas pessoas que se perdem, hoje, na sedução de uma fé puramente subjetiva, desviando-se da verdadeira fé, de raízes genuinamente bíblicas, assim como Maria testemunhou e viveu, e assim como a Igreja procura viver, como a fiel depositária da verdadeira fé.

Vejamos o que o Papa Francisco nos diz sobre a fé, através da Carta Encíclica Lumen Fidei:

“A fé desvenda-nos o caminho e acompanha os nossos passos na história. Por isso, se quisermos compreender o que é a fé, temos de explanar o seu percurso, o caminho dos homens crentes, com os primeiros testemunhos já no Antigo Testamento. Um posto singular ocupa Abraão, nosso pai na fé. Na sua vida, acontece um fato impressionante: Deus dirige-lhe a Palavra, revela-Se como um Deus que fala e o chama pelo nome. A fé está ligada à escuta. Abraão não vê Deus, mas ouve a sua voz. Deste modo, a fé assume um caráter pessoal: o Senhor não é o Deus de um lugar, nem mesmo o Deus vinculado a um tempo sagrado específico, mas o Deus de uma pessoa, concretamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, capaz de entrar em contato com o homem e estabelecer com ele uma aliança. A fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama pelo nome”.

Lumen Fidei 8
Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2010.
BÍBLIA DO PEREGRINO. 2ª Ed. São Paulo: Paulus, 2006.
COMPÊNDIO DO VATICANO II – CONSTITUIÇÕES, DECRETOS, DECLAÇÕES. Petrópolis: Vozes, 2000. 29ª Ed.
DORES, Maria das. Bíblia e Política – Análise e pontos concretos para a vivência política à luz dos ensinamentos da Bíblia. São Leopoldo: CEBI, 2017.
IWASHITA, Pedro. Feliz aquela que acreditou (Lc 1,45), a fé de Maria como Paradigma, in Pensar a fé teologicamente. SILVA, Maria Freire da; XAVIER, Donizete José; Orgs. São Paulo: Paulinas, 2007.
XAVIER, Donizete José. A dimensão social da fé in Pensar a fé teologicamente. SILVA, Maria Freire da; XAVIER, Donizete José; Orgs. São Paulo: Paulinas, 2007.

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