Uma breve história do Islã

O texto abaixo é o Primeiro Capítulo da pesquisa que o autor realizou na conclusão do bacharelado em Teologia, em 2017, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob o tema: Conhecer para ConviverO desenvolvimento histórico do Islã e as pontes para o diálogo entre católicos e muçulmanos.


Para compreender a atual presença islâmica no mundo, é necessário fazer uma viagem no tempo e rever o seu processo histórico. Esse primeiro capítulo quer justamente apontar alguns dos mais relevantes episódios na construção desta que, hoje, é a segunda maior religião do planeta e em constante expansão.

Contexto geográfico e histórico

No processo histórico, os judeus surgiram de uma experiência religiosa de séculos, gerando uma grande tradição no tempo. Os cristãos herdaram essa tradição e estenderam uma nova história, própria e natural. Por sua vez, os muçulmanos também herdaram essa mesma tradição judaico-cristã. Com isso fazem parte da tradição abraâmica-monoteista, compartilham a história, crenças e valores, tanto do judaísmo quanto do cristianismo, e têm os judeus e cristãos como “irmãos do livro”. No entanto, também os muçulmanos estenderam uma nova história, dando um novo e particular rumo na experiência com o sagrado.

Mesmo tendo surgido no século VII da era cristã, o Islã não se posiciona como uma nova religião. Apresenta-se como uma continuação da tradição religiosa instaurada por Abraão que, na verdade, remonta a Adão. Este não foi apenas o primeiro homem da criação, mas é considerado igualmente o primeiro profeta, portanto, todos os seguidores dos primeiros profetas – judeus, cristãos e outros – são vistos, pela concepção islâmica, como verdadeiros crentes em Deus.

Como já foi dito anteriormente, o início da religião islâmica data o século VII no Oriente Médio, especificamente na Arábia Saudita. Uma vez situado o tempo e o espaço, é necessário a compreensão histórica que envolvia essa região determinada nesse tempo determinado. É bem verdade que o lugar já foi palco, há séculos, da revolução monoteísta, ou seja, da fé em um único Deus, tendo como protagonistas os judeus e cristãos – o que provavelmente serviu como meio facilitador na recepção da nova crença. Contudo, é impossível compreender a incrível expansão do Islã sem a compreensão das condições históricas em que Maomé e seus seguidores atuaram.

A Arábia do século VII estava à margem das duas superpotências do Oriente Médio: a Pérsia e o Império Bizantino. Este último surgiu com a divisão do Império Romano em dois, Ocidente e Oriente, em 330 d.C.. Embora a estrutura bizantina não tenha mantido a organização social e econômica dos romanos, esse império se mostrou incrivelmente duradouro, sobrevivendo por mais de mil anos, até a conquista turca, em 1453. O Império Bizantino nunca conheceu a separação entre religião e estado. As duas dimensões, espiritual e temporal, foram amalgamadas no chamado “cesaropapismo”[1], que inclusive iria servir de modelo para a sobreposição entre religião e política no Islã. Com efeito, disputas religiosas se transformavam em conflitos políticos. O Império Persa, herdeiro da civilização do zoroastrismo – antigo sistema religioso-filosófico do século VI a.C. – constituiu o único Estado à altura do Império Romano e Bizantino.

As intermináveis guerras da época acabaram por inviabilizar a Rota da Seda, eixo comercial das caravanas que levavam seda e outros produtos da China, através da Pérsia, para todo o mundo mediterrâneo controlado por Constantinopla, capital do Império Bizantino (atual Istambul, na Turquia). Os comerciantes se viram obrigados a explorar novos caminhos alternativos para o trânsito das mercadorias. E isso beneficiou regiões inóspitas, em particular a cidade de Meca, tradicional centro de peregrinação de várias religiões por conta da presença de uma estranha pedra negra – um meteorito de 30 centímetros de diâmetro que é reverenciado como sagrado, junto ao qual mais tarde se ergueria uma construção em forma de cubo, cujo ângulos se alinham com os pontos cardeais, a Kaaba (palavra árabe que significa “cubo”), considerada pelos muçulmanos a Casa de Deus.

Existem diversas versões quanto ao surgimento da pedra negra naquele local. Uma primeira diz que ela desceu do céu, branca como a neve, mas que os pecados dos filhos de Adão a fizeram progressivamente escurecer. Outra versão acredita que ela foi trazida por Abraão e colocada ali. Outra ainda atribui à Gabriel – o anjo que anunciou à Maria de que ela seria a mãe de Jesus – a origem da pedra. Em ambas as versões se compartilha a crença de que, no dia do juízo final, a pedra voltará a ser branca.

Os árabes eram predominantemente politeístas. Minorias judaicas e cristãs conviviam com uma população que cultuava os espíritos da natureza e centenas de deuses e deusas. Para estes, o santuário de Kaaba era por excelência o centro espiritual. Lá foram colocados 360 ídolos, um para cada dia do ano lunar. Peregrinos vinham a Meca uma vez por ano e reverenciavam todos os ídolos, um após o outro. Allah era uma das divindades cultuadas no santuário. Al-Ilah é a forma árabe de El, o Deus de Abraão. No entanto, Allah dispunha da mesma devoção que os outros ídolos recebiam. E o panteão árabe não se limitou aos 360 deuses do santuário. Praticamente cada casa tinha seu deus particular. O número destas divindades aumentava graças ao contato comercial e às relações matrimoniais com outros povos.

O profeta Maomé

Considerado pelos muçulmanos como o último dos profetas enviados por Deus, Maomé – uma corruptela aportuguesada do nome original: Muhammad – nasceu por volta do ano 570 na tribo dos coraixitas, em Meca. Segundo a tradição islâmica, sua mãe recebeu a visita de um anjo que proclamou a chegada do profeta e instruiu a lhe pôr o nome de Muhammad (“o mais louvado”). Seu pai, Abdullah, morreu antes do seu nascimento.

Tal como era o costume na época, as grandes famílias das cidades árabes mandavam seus filhos, logo após o nascimento, para o deserto, a fim de passarem parte da infância entre os beduínos. Acreditava-se que seus valores morais eram mais fortes do que os que existiam no ambiente urbano de Meca, além da vida no deserto ser considerada mais saudável.

Aos seis anos, Maomé ficou órfão de mãe e passou a ser cuidado pelo avô, chefe da tribo coraixita e guardião do santuário de Kaaba. Dois anos mais tarde morre também seu avô. O menino foi então confiado ao tio, Abu Talib, um dos comerciantes da cidade. Durante o tempo em que viveu com o tio, Maomé participava nas viagens de negócios. Numa dessas viagens aconteceu um fato marcante em sua história: a caravana havia parado próximo a casa de um monge cristão que, ao avistar Maomé, reconheceu nele o dom da profecia.

Foi aos poucos aprendendo o oficio do tio, tanto que, aos 25 anos, foi abordado por uma rica viúva, Khadija, que lhe pediu que fosse à Síria em seu favor, a fim de fechar um negócio. Ele aceitou e a viagem foi considerada um sucesso: Maomé, com grande honestidade escrupulosa, havia obtido um lucro maior do que Khadija esperava. Foi então que ela, intrigada e fascinada pelo jovem, lhe propôs casamento: Khadija com 40 anos e Maomé com 25. A idade não foi empecilho para que o casamento pudesse acontecer, como assim aconteceu.

Já com aproximadamente 40 anos, Maomé era contrário às práticas que comumente se via na sociedade daquela época: conflitos diversos, ilegalidades, crueldade e degradação moral. Começou a se retirar para a caverna de Hirá, no Monte Nur (da luz), a alguns quilômetros de Meca. Costumava ir só, ás vezes Khadija lhe acompanhava. Lá passava toda a noite, pensando e meditando. Foi justamente numa dessas vezes, na caverna, no ano 610, que Maomé recebeu sua primeira revelação. Estava sozinho, cansado, quase adormecido… Quando, de acordo com a tradição islâmica, recebeu a visita do anjo Gabriel que lhe pediu para ler. Quando Maomé respondeu que não sabia ler o anjo o apertou a ponto de lhe desfalecer as forças. Novamente o anjo lhe pede para ler. E então Maomé lhe pergunta: “o que vou ler?” Foi então que o anjo transmitiu:

“Lê em nome do teu Senhor, Que criou – Criou o ser humano a partir de um coagulo que se adere (a parede do útero). Lê, que o teu Senhor é o mais generoso, Quem ensinou (o ser humano) através da pena – Ensinou ao ser humano o que este não sabia.”

Antes de desaparecer, Gabriel alertou Maomé de que eles se veriam com frequência, a fim de continuar a revelação que, mais tarde, constituiria o livro sagrado islâmico: o Corão[2]. Trêmulo de medo, Maomé desceu a montanha e correu todo o caminho até Meca, indo direto para Khadija. Com muito frio implorou para que sua esposa o agasalhasse, enquanto lhe contava tudo o que havia acontecido na caverna. Após essa primeira revelação, afirmam biógrafos e comentaristas, Maomé sofreu muito com a angústia mental. Contudo, continuou seus retiros na caverna de Hira e passou a experimentar novas revelações por parte do anjo. Maomé passou a aceitar então seu papel de profeta e começou a exortar o povo de Meca para que abandonassem a idolatria aos deuses e aceitassem ao Deus onipotente (Allah) como criador. Khadija foi a primeira a seguir seus ensinamentos e, aos poucos, também seus familiares.

Os coraixitas estavam descontentes com as atividades deste movimento que nascia. A priori, a mensagem que se difundia tinha natureza religiosa, mas implicitamente seguia também uma critica político-social à vida dos habitantes de Meca. Começaram as ameaças pelos ataques que o movimento fazia contra os ídolos e pela reivindicação de ajuda aos pobres, até que, finalmente, a pregação do Islã evocou uma furiosa perseguição contra Maomé e seus seguidores. Os habitantes de Meca não admitiram ter suas vidas contrastadas pelo zelo de um jovem que pregava uma novidade, até então, insustentável. Segundo Maomé, se tratava de um retorno à pura religião de Abraão, o ancestral dos árabes, na medida em que a Torah dos judeus e o Evangelho dos cristãos haviam alterado as revelações primitivas.

A despeito das perseguições, Maomé continuou a advertir as pessoas das terríveis consequências de ignorar a vontade de Deus. Sua mensagem era popular e atraia mais seguidores. A reputação do líder muçulmano como homem sábio e justo mediador começava a transcender a cidade de Meca, mas, de igual forma, aumentava o número de opositores, que se colocavam contra o Islã. Em 622 – três anos após a morte de sua esposa, Khadija[3] – a primeira comunidade muçulmana se viu obrigada a fugir contra a repressão para a cidade de Iatreb (aproximadamente 300 quilômetros ao norte de Meca), cuja população se colocava favorável a novidade do Islã. Tanto que, em pouco tempo, a cidade de Iatreb mudara seu nome para Medina-tun Nabi – a cidade do Profeta. Essa fuga para Medina recebeu o nome de Hégira (migração) e marca o início do calendário muçulmano.

Em Medina, Maomé ainda teve que enfrentar forte resistência, o que resultou em algumas lutas sangrentas. Com efeito, os coraixitas de Meca viriam a atacar Medina por três vezes, com o propósito de eliminar Maomé: em 624 (batalha de Badr), em 625 (batalha de Uhud) e em 627 (batalha de Fosse).

Em 630 Maomé iniciou o combate à Meca contando com um surpreendente exercito de 10 mil homens. Esgotada, Meca se rendeu sem combater. O patriarca da cidade, Abu Sufian, um dos principais inimigos do profeta dos muçulmanos, se converteu antes de haver a batalha. Com isso, Maomé retorna à cidade que anteriormente havia sido expulso e impõe aos habitantes de Meca o Islã como única religião.

Vitorioso, o profeta ordena a destruição dos 360 ídolos existentes no santuário de Kaaba, mantendo, porém, a pedra negra como dádiva de Deus. Os muçulmanos iam, aos poucos, impondo sua superioridade militar, possibilitando ao profeta a reorganização da sociedade, sobretudo em Medina, transformando-a no primeiro, mesmo que pequeno, Estado muçulmano. Os derrotados foram expulsos, exterminados ou convertidos, enquanto que os novos fiéis se comprometiam a realizar guerras de expansão do Islã. Desse modo, as tribos conquistadas eram aglutinadas à comunidade muçulmana. Foi assim que Maomé se transformou de pregador desprezado, em líder político e militar.

Em menos de dez anos após a hégira, Maomé unificou toda a península Arábica sob a bandeira do Islã. E em março de 632 o profeta realizaria seu último discurso em sua última peregrinação à Meca, delineando os pilares do Islã. Em junho do mesmo ano e de volta a Medina, Maomé adoece e morre[4]. A obra do profeta do Islã não ficou inconclusa com sua morte. Ele fundara um império com uma capital religiosa e política, construíra uma nação a partir de um aglomerado de tribos desgarradas e dera a elas um ponto de união, a religião, descobrindo nela um vínculo mais permanente que o de uma dinastia.

A expansão do Islã após a morte de Maomé

Com a morte de Maomé não se produziu uma dissolução do sentido religioso islâmico, pelo contrário, a continuação do projeto foi dada com extrema força. Além disso, os califas que sucederam Maomé não deixaram esmorecer o trabalho do profeta. A saber, a palavra califa (do árabe klalifa) significa “representante” ou “delegado” e era designada ao líder da comunidade muçulmana. Era do califa a responsabilidade pela criação da infraestrutura sob as quais os muçulmanos iriam viver os princípios islâmicos, mas, especialmente, ele é quem deve prosseguir com a conversão de novos fiéis para a fé islâmica. Os quatro califas que vieram em seguida a Maomé, considerados rashidun, expressão que significa “bem guiados”, foram escolhidos de entre os companheiros mais próximos do profeta. Foi pelas mãos destes quatro homens que o Islã expandiu além-fronteiras.

Abu Bakr (632-634)

Era sogro do profeta, pai de Aisha. Permaneceu perto de Maomé durante toda a sua vida. Após ser eleito de forma unânime, Abu Bakr fez o seguinte discurso: “Fui escolhido por vós para ser vosso líder, embora não seja melhor que nenhum de vocês. Se eu fizer o bem, deem-me seu apoio. Se eu fizer qualquer mal, endireitem-me…”. Embora rico, viveu de forma simples, gastando seu dinheiro na caridade e nas causas do islã. Durante seu califado o Islã assegurou o domínio da Arábia e multiplicou as incursões na Síria e Iraque. Além de ficar conhecido pelo bom desempenho militar, Abu também sustentou a fama de ser homem integro, sábio e benevolente. Antes de sua morte designou Omar como seu sucessor.

Omar ibn Khattab (634-644)

Era mercador, atividade que o levou a conhecer diferentes povos e diferentes realidades no mundo oriental. Tal experiência lhe deu mais expertise nos problemas e assuntos em seu califado. Considerado violento, moderou seus ímpetos ao se tornar líder da comunidade muçulmana. Entre seus maiores feitos está a vasta expansão islâmica. Em 638 tomou Jerusalém, entretanto, em respeito as outras religiões do livro – judaísmo e cristianismo – impediu que seus seguidores rezassem no Santo Sepulcro e o transformassem em mesquita. Na mesma época, Síria, Egito, Líbia e Iraque foram conquistados, enfrentando os persas e saindo vitorioso. Esse período é visto por muitos como a Idade de Ouro do Império Muçulmano. Omar criou o primeiro arquétipo do Estado Árabe e fixou o calendário islâmico. Foi assassinado por um escravo cristão persa. Em seu leito de morte teve tempo para escolher o próximo califa: Othman.

Othman ibn Affan (644-656)

Foi genro de Maomé e um prestigiado mercador. Apesar de sua riqueza e posição, seus parentes o submeteram à tortura por ele ter aderido à causa do Islã, o obrigando a fugir. Mais tarde regressa a Meca, rapidamente se muda para Medina na companhia de outros muçulmanos. Com Othman como califa, o Islã alcançou o norte da África (Marrocos) e, no Oriente, Afeganistão, Armênia e Azerbaijão. Os seis primeiros anos de seu califado foram marcados pela paz e tranquilidade, os últimos seis teve que enfrentar sérias revoltas internas que puseram em cheque seu poder de governo. Sua maior realização foi, sem dúvida, a compilação do Corão[5] a partir das memórias e testemunhos escritos existentes. Othman foi assassinado enquanto lia o Corão em Medina.

Ali Ibn Talib (656-661)

Com a morte de Othman o povo implorou que Ali assumisse o califado. Primo de Maomé, Ali se casou com uma de suas filhas, Fatima. Seu reinado durou cinco anos e foi marcado por grandes desavenças internas. A ascensão de Ali foi contestada por Muawija, poderoso governador da Síria e parente do ex-califa Othman, levando a situação à batalha de Siffin; mas os dois lados decidiram solucionar a disputa por arbitragem. Os árbitros sugeriram que ambos deveriam abdicar de suas reivindicações e uma terceira pessoa deveria ser eleita califa. Tal situação aumentou a inimizade entre ambos os lados e levou a outro problema: um grupo dos seguidores de Ali sentiu o descrédito do califa e formaram um partido próprio, os caridjitas[6], a primeira dissidência do islamismo. Ali foi assassinado em 661 ao entrar na mesquita de Kufa para as orações matutinas, provavelmente por membros dos caridjitas.


A história da construção do islamismo não ocorreu sem deixar cicatrizes, mas nos conta como viveram o profeta e seus companheiros mais próximos, representando fonte constante de inspiração para os muçulmanos. Ao contrário de Jesus, que mandou os discípulos oferecerem a outra face a quem lhes dava um tapa, Maomé propagou sua fé com conquistas militares e tratados diplomáticos. Uma generalização equivocada dessa contingência histórica levou – e ainda hoje leva – alguns de seus seguidores a uma perspectiva religiosa exclusivista e propensa à guerra. Entretanto, o Islã sempre se apresentou como uma religião simples, com dogmas claros, obrigações e proibições, com um culto sem complicações, sem clero, sem liturgia. Grande parte das pessoas havia sido atingida de forma superficial pelo cristianismo bizantino, talvez por isso a islã tenha surgido como uma resposta mais próxima do povo daquela época. Os deveres dos fiéis se resumem nos cinco[7] pilares do islã:

Profissão de fé (Shahada)

“Certamente, sou Deus, não há divindade além de mim. Então, me adora, e estabelece a Oração em conformidade com as suas condições em lembrança a Mim.” (Al Corão, Sura 20:14)

É a confissão que efetua a conversão. O crente afirma a unidade do Deus onipotente e aceita Maomé, numa formula que doravante repetira inúmeras vezes: “Não há outro Deus e Maomé é seu profeta”. De forma mais incisiva do que no Judaísmo e no Cristianismo, o Islã enfatiza a unicidade de Deus, abominando o politeísmo e considerando-o como maior pecado. Daí a severidade contra a veneração de espíritos, santos e imagens, além de uma total incompreensão diante da realidade cristã de um Deus uno-trino.

Oração (Salat)

“Recita e transmite-lhes o que te foi revelado do Livro, e estabelece a oração de acordo com suas condições. Certamente a oração restringe de tudo o que é mau. Certamente a lembrança de Deus é o maior. Deus sabe tudo o que fazeis” (Al Corão, Sura 29:45)

É a oração que se faz cinco vezes ao dia (Alvorada, Meio dia, Meio da tarde, Pôr do Sol, Noite). Uma veneração a Deus, dispensando pedidos por benefícios. A submissão (representada literalmente pela prostração) é incondicional. Todas as orações são feitas em direção a Meca e, na sexta-feira, a comunidade se reúne na mesquita para a oração comunal.

Esmola (Zakat)

O exemplo daqueles que gastam suas riquezas na causa de Deus é como o de um grão que brota sete espigas, e em cada espiga, cem grãos. Deus multiplica a quem Ele quer muito mais. (Al Corão, Sura 2:261)

Corresponde à tzedaka judaica ou ao dízimo cristão. Todos entregam uma parcela da renda para fins sociais: assistência aos pobres, refeições comunais, etc. Não se caracterizando como ato de caridade, mas como um dever religioso.

Jejum (Ramadan)

O mês do Ramadã no qual o Corão foi revelado como orientação para as pessoas, e como verdades claras de orientação e critério. Portanto, quem de vós presenciar este mês deverá jejuar…” (Al Corão, Sura 2,185)

É o mês do jejum que, ao contrário do que acontece no cristianismo, não tem caráter de penitência, mas sim de purificação e ascese para Deus. Durante o mês inteiro em que se comemora o recebimento do Corão, os fiéis se abstêm, do nascer do sol ao por do sol, de relações sexuais, comida e bebida (inclusive água). Neste mês os crentes devem se dedicar à meditações e leituras do Corão. Contudo, o Ramadan é também período de alegria e de visitas familiares.

Peregrinação (Hajj)

“As colinas de As-Safa e Al-Marwa estão entre os rituais que Deus designou… Portanto, todo aquele que faz o hajj não comete pecado… Os que voluntariamente o fazem, receberão recompensa: Deus é agradecido, sapientíssimo.” (Al Corão, Sura 2,158)

É a peregrinação a Meca e seus santuários. Uma obrigação que deve ser cumprida ao menos uma vez na vida por todo muçulmano saudável e que disponha de meios para tal empreendimento.

Os livros sagrados: Bíblia e Corão

Assim como os cristãos herdaram toda a experiência religiosa dos judeus e, com Jesus, partiram para a sua própria experiência, os muçulmanos, por sua vez, herdaram boa parte da tradição religiosa judaico-cristã para depois formarem seu caminho próprio de encontro com o divino. Essas heranças se tornam visíveis na Bíblia e no Corão. A um muçulmano pode parecer presunção o fato de cristãos estudarem o vosso livro sagrado. É unânime o consentimento de que a compreensão adequada do Corão só é possível a quem vive na comunidade de fé dos muçulmanos. Assim, também ao contrário, a compreensão adequada da Bíblia só pode ser feita por aqueles que vivem e são motivados por ela. Na Bíblia e no Corão há elementos que unem cristãos e muçulmanos e outros que os separam. O professor emérito de exegese do Novo Testamento e Hermenêutica Bíblica da Universidade de Munique, Joachim Gnilka, renomado pesquisador na área de ciências bíblicas e autor de numerosas publicações, elencou os principais pontos de convergência e divergência entre cristãos e muçulmanos, entre a Bíblia e o Corão . Primeiramente, portanto, os pontos de unidade:

  • Bíblia e Corão representam uma religião de revelação. Isso significa que o conhecimento de Deus somente se tornou possível pelo fato de Deus se revelar e se manifestar ao homem.
  • Bíblia e Corão representam religiões monoteístas. Isso significa que Deus é único, rejeitando a ideia politeísta. O Corão está visivelmente empenhado em aliar-se ao Deus da Bíblia. O Deus do Corão é o Deus da Bíblia.
  • Em continuidade com a Bíblia, o Corão vê o mundo como criação de Deus. Deus criou o céu e a terra. É possível identificar seus vestígios na criação. Deus é adorado por causa da sua criação.
  • Bíblia e Corão representam religiões abraâmicas – ambas se referem a Abraão. No Corão esse aspecto aparece mais intensamente, uma vez que o islamismo é denominado religião de Abraão.
  • No Corão sempre se fala de Jesus com palavras respeitosas, jamais em termos pejorativos. Dele se diz que era fortalecido pelo Espírito Santo e que Deus o instruiu na escritura, na sabedoria e no Evangelho. Também a respeito de Maria, a mãe de Jesus, repetida vezes se fala com veneração. Ela gerou Jesus virginalmente. Afirma-se a virgindade de Maria.
  • Em concordância com a Bíblia, o Corão ensina que toda a humanidade tem sua origem em Adão, o primeiro homem. Feito da terra e à terra retornou. Dotado de capacidades, está no topo da criação. Pela sedução, tornou-se desobediente a Deus. Não está livre da tentação.
  • Em concordância com a Bíblia, no Novo Testamento, o Corão espera pelo “dia” do juízo universal, com a ressurreição dos mortos. O dia está próximo. Essa expectativa determina os inícios tanto do cristianismo como do islamismo. Nesse dia, os livros serão abertos. Só Deus tem conhecimento da hora. O último tempo, antes do fim, é uma época de escalada do mal.
  • O Corão conhece o decálogo, interpretando-o, contudo, em diversos pontos, a seu modo. Isso se aplica especialmente à concepção de matrimônio e família. Continua viva a ideia veterotestamentária da guerra em nome de Deus. Deve-se ressaltar a dedicação ética do Corão aos pobres, pedintes e necessitados. A prática da esmola é o mais importante mandamento.

Observando a lista dos elementos que unem Bíblia e Corão, torna-se claro que o aspecto comum tem raiz no Antigo Testamento. Jesus é um capítulo à parte. Deve-se dar atenção a essa relação com o Antigo Testamento, que vale tanto para o Novo Testamento como para o Corão, e que então é interpretado em direções diversas. Ponto central para a nova interpretação cristã do mundo e da história é a revelação de Deus ocorrida em Jesus Cristo. Com isso iniciam-se os pontos que separam: Bíblia e Corão, cristãos e muçulmanos:

  • Jesus Cristo – encarnado, morto e ressuscitado – é o ponto culminante da revelação de Deus aos cristãos. É Deus que se revela na história. Já a revelação máxima para os muçulmanos está completamente no Livro. Deus se revela no Livro. Não sai de sua transcendência. Acrescenta-se ainda a ideia errônea que o Corão tem da fé trinitária cristã: Deus (Pai), Jesus e Maria seriam as três divindades coexistentes. Isso de fato seria politeísmo. O Espírito Santo provavelmente foi assimilado como um anjo.
  • Conforme a fé cristã, Jesus é mais do que um profeta, na linha dos antigos profetas. Ele é o Filho, o “Primogênito”… O Corão ataca essa crença com palavras fortes, julgando-a inclusive como pecado imperdoável. O Corão, neste ponto, não ataca Jesus – Jesus não teria tido essa pretensão, inclusive a teria rejeitado, mas foram as pessoas que viram nele o Filho de Deus. Esse pode ser considerado o ponto fundamental de separação.
  • O Corão também não tem nenhuma compreensão para a ideia cristã de redenção. A pessoa redime-se de algum modo por si mesma, observando os mandamentos de Deus. Neste caso o Islã se caracteriza como religião da lei, onde somente os predestinados alcançarão o destino eterno.
  • A referência comum a Abraão sofre diversas interpretações. Mas talvez o principal dado seja o que procede a partir daqui: os caminhos se separam. Para judeus e cristãos, a linha da promessa segue a linha do filho de Sara, Isaac, para os muçulmanos será o filho da escrava Agar, Ismael.
  • Na escatologia, cristãos e muçulmanos são influenciados pela apocalíptica. Cristãos esperam a volta de Cristo, a comunhão com ele e a participação na vida divina. Os muçulmanos almejam o paraíso.

A confissão de Jesus Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro homem – concepção que marca a Igreja cristã-católica[8] – é o ponto máximo de divergência entre cristãos e muçulmanos. Mas há, sobretudo, dois pontos apropriados para nos aproximar: a referência da experiência inicial com Abraão e a fé no mesmo Deus, criador de tudo e de toda a humanidade. Aqui e em outros âmbitos surge a possibilidade e a necessidade da ação conjunta no serviço à humanidade em prol da justiça e da paz. Esse serviço requer como único pressuposto o conhecimento e o respeito mútuo.

Notas
[1] Papa se dotando de um poder político e os soberanos laicos se encarregando de assuntos religiosos.
[2] A tradição islâmica afirma que O Corão foi revelado pelo anjo Gabriel a Maomé durante um período de vinte e três anos, tornando-se o livro sagrado para os muçulmanos.
[3] Até a morte de Khadija (619), Maomé permaneceu monogâmico. Após, o profeta se enveredou pela poligamia, não existindo consenso ao número de esposas, contudo, parece certo que foram nove. O corão aconselha até quatro esposas. Mas estudiosos indicam que algumas uniões tiveram caráter politico e não simplesmente voluntário.
[4] O último suspiro do profeta foi dado nos braços de sua atual esposa, Aisha, no quarto onde acabou sendo sepultado e que hoje faz parte de moderno complexo da Mesquita da Cidade Santa de Medina.
[5] A revelação feita ao profeta, em árabe, durante um período de 23 anos, começou a ser compilada já na vida de Maomé, mas é fixada definitivamente durante o governo do califa Othman ibn Affan (644-656). O texto do Corão em vigor atualmente é o mesmo dessa compilação, considerada autêntica.
[6] A causa do cisma caridjita foi a decisão de Ali em se submeter à arbitragem dos homens, “negando” Deus como único juiz e árbitro. Causa esta considerada por muitos como o primeiro indício do fundamentalismo no mundo islâmico.
[7] Uma minoria de crentes radicais acredita que exista um sexto pilar no Islã – a Jihad, ou seja a luta armada contra os infiéis e inimigos do Islã
[8] Jesus possui duas naturezas que não se transformam nem se misturam: a divina e a humana. Este é um dogma de fé promulgado no ano de 451, no Concílio de Calcedônia.

Veja também:


Bibliografia (de toda a pesquisa)

Livros:
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Entrevistas:
BIZON, Côn. José. Entrevista concedida a Bruno Redígolo Cardoso. São Paulo, 4 jul. 2017.
KUŞ, Atilla. Entrevista concedida a Bruno Redígolo Cardoso. São Paulo, 17 jul. 2017.

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3 respostas em “Uma breve história do Islã”

Li também com muito interesse, super didático e compreensível, um grande aprendizado nesses tempos difíceis ideológicos. Parabéns…

Nota 10 neste trabalho, excelente pesquisa, muito oportuno a divulgação desse texto especialmente após a visita do papa Francisco ao Iraque. Parabéns.

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