“A vocação é um dom e a boa vontade inicial, sem ajuda divina, não é suficiente para perseverar.” Esta afirmação é de Vicente Artuso, Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, autor do artigo de mesmo nome e que achei oportuno resenhar aqui no Areópago.
Não é difícil constatar, sobretudo nos Evangelhos, de que há muitas vocações correspondidas e não correspondidas. Não foram poucos os discípulos que seguiram Jesus, mas acabaram voltando atrás por falta de compreensão do seguimento. Entre tantos casos, há um bem conhecido: o jovem rico.
A estrutura do relato em Mt 19,16-22 segue assim:
- Iniciativa: alguém (jovem) se aproxima de Jesus (Mt 19,16a).
Pergunta: “Mestre que farei de bom para obter a vida eterna?” (Mt 19,16b). - Resposta de Jesus: apresenta as condições para obter a vida: “Se queres entrar para a Vida observa os mandamentos” (Mt 19,17).
- Pergunta do jovem: “Quais?” (Mt 19,18a).
- Resposta de Jesus: apresenta os mandamentos (Mt 19,18b-19).
- Insistência do jovem: “Tudo isso tenho guardado. Que me falta ainda?” (Mt 19,20).
- Resposta de Jesus: apresenta as condições para o seguimento: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que te pertence e dá aos pobres e terás um tesouro nos céus e depois segue-me” (Mt 19,21).
- Reação negativa do jovem: saiu sem dar uma resposta: “O Jovem ouvindo a palavra, partiu entristecido. Era de fato possuidor de muitas propriedades” (Mt 19,22).
A figura do jovem
A narrativa mostra uma figura possivelmente influente, com uma popularidade positiva. O jovem era bem visto na sua sociedade pela sua boa conduta e observância dos preceitos religiosos. Pode-se pensar que este, já tão cheio de méritos, tenha procurado Jesus buscando o estrelato, exibindo a si mesmo e buscando se tornar um bom exemplo. Em Mc 10,21 o evangelho diz que Jesus o fitou e o amou. De certo Jesus sabia que o jovem falava a verdade sobre sua reputação e seu zelo por seguir os mandamentos. Mas uma coisa faltava. Bastava mais uma coisa para ser “perfeito”. Algo possível, mas que exigiria bastante daquele jovem: “vai, vende o que te pertence e dá aos pobres e terás um tesouro nos céus e depois segue-me”.
Além de obedecer a lei, era preciso seguir Jesus. E não se pode seguir a dois senhores ao mesmo tempo – a Deus e ao dinheiro – pois odiará mais um e amará mais outro (Mt 6,24). O jovem possuía muitos bens, tinha uma boa vida, e sabia como vivia os pobres e excluídos de seu tempo. Em seu pensamento, muito preso no material, não percebeu que haveria prêmio maior no por vir. Mesmo na pobreza, nada faltaria, pois “quem troca pai e mãe, casas e bens, por causa do Evangelho, recebe muito mais ainda nesta vida” (Mc 10,29-30).
Ter ou não ter bens?
Claro que se pode vender tudo o que possui e, depois, seguir o Mestre, mas é importante entender que esse não é o único caminho. Não há problema algum em ter bens, fruto do trabalho de cada operário. Problema é quando os bens passam a ter importância maior que pessoas, por exemplo. Esses bens foram um grande empecilho para aquele jovem, a ponto de o fazer não corresponder ao chamado de Deus, recusando a vocação que o próprio Senhor o confiou. Em outras palavras, sua salvação estava em risco. O remédio último para o seguimento era este, se desfazer dos bens. Um remédio amargo, que o podia curar, mas que foi negado.
Mesmo vivendo as virtudes colhidas na observância das leis, sem a perspectiva do amor nada se constrói. Os mandamentos possuem implicações que passam pelo social, sob a ótica do amor ao próximo. Talvez tenha sido bem aqui a queda de um jovem tão virtuoso, mas igualmente ganancioso pela matéria. Ele não compreendeu que, para não matar, era necessário defender e promover a vida. Não entendeu que, para não cometer adultério, era necessário viver uma única aliança. Ele não entendeu que, para não roubar, era necessário defender o direito do outro… para não levantar falso testemunho, necessário proclamar a verdade…
A lei, sem o amor, não serve
Nas palavras do Papa Francisco, a lei sem o amor não vem da fé1. Uma lei que não gera vida, aprisiona e limita o bem. A comodidade em que o jovem rico vivia o deixava neutro diante das dificuldades alheias. Era um contato quase que superficial com Deus, que não passava pelo irmão, imagem e semelhança do mesmo Deus. Quando Jesus, por fim, o alerta, o silêncio e a tristeza tomaram conta do íntimo daquele jovem, pois onde está o seu tesouro, ai está também seu coração (Mt 6,21).
Dessa forma, o fracasso do jovem rico não está na falta da observância da lei, mas está na falta de amor.
O desejo pelo dinheiro, pelo poder e todos outros bens perecíveis podem ser o início da tragédia humana. Um risco à salvação no ontem, no hoje e possivelmente sempre. Por isso mesmo uma vocação não tem forças em si mesma, precisará sempre da graça para se desenvolver e não voltar atrás.
A bolsa de valores do Céu
De novo o Papa Francisco nos coloca em atenção e reflexão de como temos sido bons administradores do bem comum:
Com frequência – observou o Papa – ouvimos “tantas desculpas” das pessoas que passam a vida acumulando riquezas. Da nossa parte, disse Francisco, “todos os dias” devemos nos questionar: ‘Onde é o teu tesouro? Nas riquezas ou nesta administração, neste serviço pelo bem comum?”
“É difícil, é como brincar com o fogo! Muitos tranquilizam a própria consciência com a esmola e dão o que sobra. Isso não é ser administrador: o administrador pega para si o que sobra e dá tudo aos outros. Administrar a riqueza é um despojar-se continuamente do próprio interesse e não pensar que essas riquezas nos darão a salvação. Acumular sim, tudo bem; tesouros sim, tudo bem, mas os que têm preço – digamos assim – na “bolsa do Céu’. Ali, acumular ali!”2
Papa Francisco
Notas 1) Visto em <http://www.radiovaticana.va/proxy/portuguese/noticiario/2015_06_19.html#Art_1152604, acessado em 23 de agosto de 2020. 2) Visto em <http://www.gaudiumpress.org/content/68297-A-lei-sem-amor--nao-vem-da-Fe--nao-traz-alegria--diz-Papa-Francisco--em-homilia> acessado em 23 de agosto de 2020.
Referência Visto em <https://periodicos.pucpr.br/index.php/pistispraxis/article/viewFile/12911/12239>acessado em 23 de agosto de 2020.
3 respostas em “A vocação que não obteve sucesso”
Muito bom.
Bruno, esse texto me lembra um dos itens do EE de S. Inácio, quando ele diz: “O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus… E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, para que o ajudem a atingir o seu fim (louvar, reverencias e servir a Deus), donde se segue que há de usar delas tanto quanto o ajudem a atingir seu fim, e há de provar-se delas tanto quanto dele o afastem. Ou seja, devemos deixar de lado o que nos afasta de Deus, e usar de tudo o que nos aproxima Dele. Obrigado pela partilha.
Muito feliz o comentário sob a perspectiva do amor, das obras e da graça!!
Tenho comigo q o jovem voltou … para seguir a Cristo, quem conhece a Cristo não O deixa