Esse artigo é o primeiro de uma série que tratará das mulheres na bíblia, e tem a intenção de colaborar para que leitores e leitoras da Sagrada Escritura, olhem com maior atenção para as Mulheres da Bíblia, sem as quais a história humana não seria a mesma, e descubram o que está, muitas vezes, por trás da Palavra de Deus.
Através dos livros do Pentateuco podemos conhecer antigos costumes sobre a vida e as lutas do Povo de Deus.
Ao ler as histórias, dessas mulheres, é importante perceber o fio condutor que, no mundo patriarcal, machista, hierárquico, em que viveram, elas subvertem e rejeitam toda espécie de dominação. Com uma leitura atenta percebe-se nessas narrativas, sobre e das mulheres, como os relacionamentos são recíprocos e interdependentes como a base para a vida e o futuro do Povo de Deus.
No livro do Gênesis, fica evidenciado a igualdade do homem e da mulher criados à imagem de Deus.
Rebeca é apresentada como um novo Abraão, pronta para deixar sua terra e sua família a fim de continuar a formação do Povo de Deus. É a ela que Deus revelará os planos que tem para seu filho Jacó.
É no livro do Êxodo que surgirão as grandes heroínas do Povo de Deus. O faraó era o grande imperador da época, sua vontade representa a lei, mas foram as mulheres, das mais pobres até a própria filha do faraó, que salvaram o menino Moisés e colaboraram em todo o necessário para libertar o povo da escravidão.
Gênesis
Gn 1,26-27: A história da humanidade começou com a revelação mais importante para nossa vida. Nós, mulheres e homens, somos a imagem de Deus e procuramos ser semelhantes a Ele.
Cada um de nós, mulher ou homem, pobre ou rico, de grande saber ou iletrado, é a própria representação de Deus.
Gn 1,27-28.31: a imagem de Deus encontra-se no homem e na mulher juntos, porque Deus é amor e desde o começo da história do mundo Ele quis que ambos fossem o sacramento do amor neste mundo. Juntos somos um reflexo da glória de Deus. Cada gesto de bondade de um pai e de uma mãe é revelação do próprio ser de Deus. O irmão e a irmã que cuidam dos pais idosos tornam evidente a compaixão de Deus neste mundo.
É por isso que a Igreja precisa teólogas e teólogos, agentes de pastoral, homens e mulheres, para revelar, em cada comunidade cristã, o que significa o grande amor de Deus para com seu povo.
Gn 2,23: É uma afirmação de fé. O homem está dizendo: aceito que Deus criou todos os seres humanos à sua imagem. Ao mesmo tempo, o grito do homem representa, também, uma declaração de amor: a mulher é um dom de Deus.
Gn 3: Origem do mal no mundo. Vamos pensar, historicamente, como viviam as primeiras pessoas que entraram na terra de Canaã: Terra difícil de ser cultivada, não haviam rios nem terra fértil. As mulheres que saiam para buscar os víveres. Pela dificuldade de encontrarem os alimentos elas podem ter pensado o seguinte: “Alguma fruta não agradou a Deus”, e daí a origem da narrativa da queda do ser humano.
Pensemos teologicamente: A mulher comeu o fruto do conhecimento, ela queria experimentar a vida em tudo o que ela podia oferecer. Em consequência ela viveu a alegria e a dor. Ela vivenciou a si mesma e ganhou, no decorrer disso, conhecimento e maturidade.
Gn 4,1: Eva, é apenas no capitulo 4 que a mulher recebe um nome, significa fonte de vida. Eva, a mulher, é a mãe dos viventes.
Gn 6,17-18: A mulher de Noé é apresentada como fonte de vida para a terra e para toda a humanidade, ameaçada de destruição pelo grande dilúvio. Ela é a nova Eva. É foco de resistência e de união para o povo ameaçado de morte. A mulher e o esposo Noé são a imagem de Deus criador; a sua união é a base da família, da conservação da vida numa aliança de paz para toda a humanidade. A mulher é fonte de vida e da paz necessária para a conservação da terra e da vida humana neste mundo ameaçado. Nesta ação de “nova criação”, lembremos também da contribuição das noras de Noé.
Gn 8,15 e 9,8-11: A responsabilidade de toda a família de Noé para com a humanidade renovada. As mulheres têm por tarefa preservar e sustentar a vida de todo o planeta. Ela é o fundamento vivo da aliança de paz que Deus estabelece com toda a terra e com todos os seres vivos neste mundo. O cuidado feminino em favor do planeta e da vida entra nas cores do arco-íris da paz que Deus quer para toda a humanidade.
Gn 12: Início do ciclo de Abraão.
Gn 17,15-17: A promessa de Deus a Abrão se dará através de Saraí (princesa), que tem seu nome mudado para Sara (mãe de reis).
Gn 18,9-16: Sara recebe a notícia de sua maternidade, e ri. Ela diz no seu íntimo: “agora que estou velha e velho também está, o meu senhor, terei ainda prazer?” (Gn 18,12b).
Gn 16,1-15: Agar, embora rejeitada, sem direito de decidir sua própria vida, Deus a escolhe para ser a matriarca do povo do deserto e mãe de Ismael, o patriarca do povo do deserto.
Gn 21,14: Agar é a mãe do povo que é também herdeiro das promessas de Deus ao patriarca Abraão. Ela fugiu para o deserto com Ismael. Aí tem a revelação sobre o futuro do menino, ele recebe a benção de Deus e seria o patriarca do povo do deserto.
Agar foi expulsa e abandonada duas vezes: primeiro por uma mulher ciumenta, que, embora a seu pedido, foi mãe do filho de seu marido, (16,6). Ela retorna à casa pela promessa do anjo que lhe garante uma “descendência, de tal modo que não se poderá contá-la” (Gn 16,10).
Na segunda vez, Sara obriga Abraão a expulsar Agar e Ismael, para que ele não fosse herdeiro com Isaac, ou seja, para não ameaçar a primogenitura de Isaac, Agar é expulsa e sozinha no deserto, sem água e pão, põem se a chorar, Deus, mais uma vez intervêm a favor de Agar e de Ismael, e renova a promessa de fazê-lo pai de uma grande nação (Gn 21,18).
Com essa atitude divina, Agar se reconhece como possuidora de uma força acima das suas, uma força que vem de Deus, e segue, então, sua vida e missão que Deus lhe incumbiu e prometeu. Assim, podemos concluir que Deus jamais deixa de ouvir e atender suas filhas que foram abandonadas. Desse modo, nós, cristãs e cristãos, devemos ir ao encontro das mulheres abandonadas e sofridas e levar, a cada uma, o amor de Deus, e mostrar-lhes a força que Deus disponibiliza a cada uma para que superem as situações difíceis.
Gn 19,1-11: A mulher e as filhas de Ló; A honra das mulheres estava valendo bem menos do que a hospitalidade, no entanto, o Senhor restabelece a dignidade das mulheres.
Gn 19, 24-26: Havia na região, ao sul do mar Morto, uma formação salina que, vista de determinado ponto, se assemelhava a uma mulher. O povo a chamava de “mulher de Ló” contava sua história tenebrosa. Olhou para trás com nostalgia ou curiosidade: sua figura petrifica passou à nossa cultura como símbolo de nostalgia covarde do passado, uma nostalgia que paralisa.
Gn 19, 30-38: Não se escandalize com esse trecho da história. Tudo na Bíblia tem um sentido, por isso, não se pode estacionar no texto em si, é preciso conhecer, além do texto, claro, conhecer o contexto, senão o texto elaborado com muito cuidado, pode se transformar em pretexto, assim não se pode ter uma leitura fundamentalista.
O sentido deste texto, é de uma quase nova criação. Na época em que foi escrito, era para explicar a formação dos povos Moabita e Amonita (Gn 19,36-38). Mesmo que a história pareça bizarra, por causa do incesto, vamos lembrar que a esposa de Ló e os noivos das filhas morreram. Para as filhas de Ló, não bastam terem sobrevivido, não se contentam com uma vida mutilada. O instinto de maternidade as incita a inventar um remédio para sua solidão e para superar o horror, instintivo e cultural, do incesto. Orígenes de Alexandria (185-253) comentado esse texto diz: “As filhas pensam que que ficaram vivas só elas com o pai. por isso ardem em desejos de restaurar a raça humana e se consideram chamadas a recomeçar a história. Embora lhes parecesse grave furtar os abraços de seu pai, mais grave lhes parecia a impiedade de permitir que se extinguisse a esperança de posteridade à custa de salvar a virgindade.” (Bíblia de Jerusalém, pgs. 42/43 comentários)
É o grito do sangue, a ânsia de uma vida que deve continuar irmã das futuras matriarcas de dois povos. Embriagando, enganando, violentando de algum modo o pai, estas duas mulheres ostentam uma grandeza ambivalente, sombria e luminosa. Por elas triunfou a vida. O povo de Sodoma e Gomorra não buscam o viver, mas consumir a vida no prazer, na luxuria; ao contrário, as filhas de Ló atendem o grito da continuidade da Vida.
Gn 24,58ss: Rebeca é a mulher perfeita para Isaac. Seu pai e seu irmão a questionam sobre seu desejo de ir para uma terra estrangeira e casar-se com Isaac, a quem ela não conhecia.
Rebeca é um novo Abraão, mais uma matriarca. Cheia de fé, assim como Abraão (Gn12,1), ela abandonou a família, na terra de Ur e a vida que conhecia, se encaminha para uma terra desconhecida e não se questiona sobre o que poderá advir na terra estrangeira. Rebeca foi um instrumento ativo na realização do desígnio de Deus para a geração seguinte.
Gn 25,21-23: Rebeca é estéril, Isaac intercede a Deus por sua mulher. É atendido. Mais uma vez se apresenta uma matriarca estéril, a próxima geração não pode ser simplesmente fruto da vontade humana. O Povo de Deus vive e cresce pela graça do Senhor. Rebeca concebe gêmeos; Esaú e Jacó, no entanto, o mais novo é que recebeu a benção de Deus e realizou o plano divino para o seu povo.
Gn 29-31: História das duas mulheres de Jacó, Lia e Raquel, mães dos doze filhos que formaram as doze tribos de Israel.
Lia mesmo não amada por Jacó, embora fosse mãe de muitos filhos, tem sua importância como matriarca na história do Povo de Deus.
Gn 29-35: Raquel, esposa de Jacó e mãe das tribos de Israel.
Raquel também é estéril, seus filhos nascem com a ajuda direta de Deus, Ele a tornou fecunda. Ela deu à luz José, o patriarca da grande tribo que recebeu as bênçãos de Deus e destacou-se das doze tribos.
Gn 34: Embora a história aqui relatada, segundo muitos escritores, trata-se da relação entre Israel e Siquém. No entanto deixa transparecer a pouca importância dada à mulher na história de Israel. Uma vez que Jacó é o patriarca das tribos de Israel, e todas elas levam os nomes dos filhos. Dina, apesar de ser filha de Jacó, portanto, com direito a se matriarca de uma tribo, não lhe foi concedido. Não se diga que foi por causa da violência que ela sofre, pois além de o violentador, a querer como esposa, os irmãos a vingaram.
Gn 38: História de Tamar, nora de Judá, filho de Jacó. Tamar tem sua importância na história do Povo de Deus. Ela é mencionada no evangelho segundo Mateus na genealogia de Jesus de Nazaré.
Embora estrangeira, quis obedecer às leis do Povo de Israel e oferecer um filho à memória de seu marido (lei do levirato, Dt 25,5). Ela concebe gêmeos para aumentar a importância da tribo.
Tamar, como Raab e Rute, é uma mulher subversiva dos costumes da época. Israel tinha leis, quando não eram obedecidas pelos homens, as mulheres estrangeiras leais a Israel superaram, com astúcia, a desobediência dos homens.
Êxodo
Ex 1,15: As parteiras Séfora e Fua, embora o texto diz que são hebreias, é mais provável que fossem egípcias, pois a tradução mais adequada é “as parteiras que faziam o parto das hebreias”. Séfora e Fua, ou Sefra e Puá seus nomes, são as primeiras heroínas do livro. Sem medo do faraó, elas desobedeceram a sua ordem e protegeram os meninos hebreus. Na bíblia, com frequência os homens representam a morte, e as mulheres a vida. Em Ex. todas as mulheres são apresentadas como aquelas que dão a vida e a defendem.
Ex 2: Jocabed, mãe de Moisés (seu nome aparece apenas em Ex 6,20), e de Miriam (seu nome aparece em Ex 15) é como as outras mulheres, está na base da libertação do Povo de Deus. Sua determinação, coragem, fé em Deus salvaram o seu filho Moisés, que tiraria o povo da escravidão no Egito.
A filha do faraó que não era judia, nem conhecia o Deus de Abraão, movida por compaixão, e desobedecendo as ordens de seu pai, o faraó, tirou Moisés das águas e garantiu seu futuro e do Povo de Deus.
Ex 4,24-26: Deus procura fazer Moisés morrer, mas sua mulher, Séfora, pratica a circuncisão no filho Gerson, ela que conserva o sentido do ritual da circuncisão. Esta ação de Séfora indica que ela era uma sacerdotisa. Mais uma vez Moisés, bem como o Povo de Deus, é salvo por uma mulher.
Ex 15: Cântico de Miriam demonstra o grande amor de Deus. Miriam vivenciou a libertação da escravidão ao lado de Moisés e Aarão, sua ação mostrou que esse Povo era formado por pessoas iguais: homens e mulheres que se uniam para comprovar a libertação de todo o povo oprimido e escravizado. Miriam foi a mulher que testemunhou e celebrou a libertação como fundamento da vida do Povo de Deus. O fato narrado de que ela tocar o pandeiro em Ex 15,20, mostra que ela é uma sacerdotisa e profetisa.
Ex 20,17: Descreve o mandamento em que não se deve cobiçar as propriedades ou posses do homem, entre elas, a mulher. Aqui fica evidente o preconceito às mulheres, sendo tratadas como posses do homem, equiparando-as aos escravos e animais. No entanto em Ex 20,12 e em Lv 19,3 determinam que se deve honrar e respeitar pai e mãe, mesmo, numa sociedade patriarcal, os filhos devem respeitar a mãe.
Ex 35,25: As mulheres habilidosas colaboraram para a construção do santuário. Elas já haviam trazido suas joias. (Ex 35,22ss).
Números
Nm 12: Narra a murmuração de Aarão e Miriam contra Moisés por causa de uma mulher estrangeira, com quem ele se une. Deus fica irado com essa murmuração contra seu servo Moisés e castiga somente Miriam. Esse castigo se dá para diminuir a autoridade de Miriam, que, por ser profetisa e sacerdotisa, era quem liderava as celebrações litúrgica. Dessa forma Deus é apresentado como aquele que defende a hierarquia masculina; obviamente essa é a forma que os redatores (homens) redigiram, certamente de forma preconceituosa, mas sabemos que para Deus não há diferença, somos todos criados a sua imagem.
Nm 27,1-11: A herança das filhas: As filhas de Salfaad, Maala, Noa, Heyla, Melca e Tersa, desobedeceram a Lei e reivindicaram uma mudança na lei para que tivessem direito à herança do pai. A nova lei se enraíza no princípio de que a terra é dom do Senhor a Israel e que os terrenos devem permanecer dentro da tribo, clã e família. O direito e a obrigação de resgate asseguram essa estabilidade. Pode-se considerar paralela e complementar da lei do levirato (Dt 25,5-10).
Referências ARNS, Paulo Evaristo. GORGULHO, Gilberto. ANDERSON, Ana Flora. Mulheres da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2004. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2010. BÍBLIA DO PEREGRINO. São Paulo: Paulus, 2ª ed. 2006. GALLAZZI, Sandro. RIZANTTE, Anna Maria. Teologia das mulheres: a quem Deus revelou seus mistérios. São Paulo: Fonte Editorial, 2012. GRÜN, Anselm. JAROSCH, Linda. Mulheres da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 2013. Bibliografia Complementar: ABRAHAM, Susan. PROCARIO-FOLEY, Elena. (Orgs.) Nas fronteiras da teologia feminista católica. Aparecida: Santuário, 2013. BRENNER, Athalya. A mulher israelita: papel social e modelo literário na narrativa bíblica. São Paulo: Paulinas, 2001. Revista Theologando: Revista teológica – Ano I – Número 1.
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8 respostas em “As mulheres da Bíblia (Pt 1)”
Gostei muito de ler estes textos enviados por vc Jairo!!
Ficou bem claro e didático a importância das mulheres.
Que bela reflexão! Muito bom.
Ah que delícia de sequência cronológica! Obrigada por nos presentear com tantos detalhes!
Apenas a título de debate, único ponto que ainda levanto é o que, inclusive, vc descreve em sua narrativa sobre o livro de Números: “(…) apresentado como aquele que defende a hierarquia masculina; obviamente essa é a forma que os redatores (homens) redigiram”. Isto é, toda a Bíblia tem como personagem principal os homens/ o Homem. Mesmo quando as mulheres ganham importância (como muito bem levantado no artigo) ainda são como coadjuvantes.
Infelizmente a história é narrada pelos vencedores, e nessa sociedade misógina e patriarcal, ainda os homens são os grandes vencedores. Lamentável.
Ainda bem que temos reflexões como a sua, que nos garantem a esperança para um debate mais igualitário. Parabéns pelo artigo!
Olá Gabi, muito obrigado pelo prestígio de ler o artigo. Virão outros como continuidade, a proposta é mostrar as ações das mulheres até o livro do Apocalipse.
Bom o tema…reflita 👏👏👏👏
Como bem disse Gabriela, era tudo o eu queria dizer. Se passaram 2020 anos, ainda nós mulheres não temos vez por mais que façamos. Seu texto professor Jairo Fedel é magnífico, esclarecedor e ensina muito quem ainda é uma simples sementinha de mostarda na Teologia pastoral. Tomara eu tenha tempo ainda de me tornar uma grande árvore de mostarda para que os pássaros venham descansar em meus galhos. Um abraço querido amigo.
Olá Rosa, Obrigado por ler o artigo, fico honrado com sua leitura. Você é bem maior do que pensa. Forte Abraço.
Muito importante o tema que nos leva à reflexão! Obrigado, Jairo Fedel !