Doutoras da Igreja (Pt 2)

Introdução

Dando continuidade à história das santas mulheres que são Doutoras da Igreja, nesta segunda parte vamos conhecer um pouco de Santa Teresa D’Ávila, ou Santa Teresa de Jesus. Mulher de fibra, de personalidade forte, transformou, ou melhor reformou, a vida nos conventos Carmelitas. Foi a primeira santa a ser declarada Doutora da Igreja, por São Paulo VI, em 27 de Setembro de 1970.

Vocação para a Santidade

Santa Teresa D’Ávila (ou Teresa de Jesus) nasceu em 28 de Março de 1515 com o nome de Teresa de Cepeda y de Ahumada, em Ávila, na Espanha Renascentista; sua vida, neste período conhecido como o século de ouro, ou de ferro (leia-se: grilhões) espanhol, foi de extraordinária aventura. Fora da Igreja, a euforia das descobertas de novos mundos suscitadas pelas navegações. Dentro, o medo da influência protestante e a consequente desconfiança com relação à liberdade de pensamento. A palavra de ordem era obediência incondicional à hierarquia.

Mística, visionária, conhecida como “andarilha de Deus”, Teresa recebeu os favores divinos mais raros, a transverberação e o matrimônio espiritual com seu amado Esposo, Jesus, sem jamais deixar de conhecer as provações do sofrimento. Mulher de ação e de paixão, transbordava vigor e afetividade. Levou a bom termo a reforma da Ordem do Carmelo e despertou o entusiasmo de seus adeptos, dos quais o grande místico e autor espiritual São João da Cruz, foi um dos primeiros.

Santa Teresa d’Ávila não foi somente uma privilegiada da oração; tornou-se também a audaciosa fundadora que levou ao monaquismo um estilo e um clima novos. Seus escritos, contados entre obras-primas da literatura espiritual, fizeram-na uma mestra da vida interior cuja influência, mesmo após cinco séculos não cessa de crescer.

Em sua autobiografia – “Livro da Vida”, menciona alguns pormenores da sua infância: nascida de “pais virtuosos e tementes a Deus”, numa família numerosa, com nove irmãos e três irmãs. Aos nove anos já lê a vida dos santos e mártires, essas leituras a inspiram a fugir de casa junto com seu irmão Rodrigo, para morrer como mártir e subir ao céu, resgatados por um tio que passava pelo mesmo caminho, devolve-os a casa paterna, sem não antes levar um belo sermão: “Quero ver a Deus”1 diz a menina aos pais.

Em 1531 entra para o convento das agostinianas de Santa Maria das Graças; permanece ali por cerca de um ano, precisa retornar à sua família, pois é acometida de grave doença. Neste curto período aprende o recolhimento e a oração. Parcialmente restabelecida, em 2 de Novembro de 1535, entra no convento carmelita da Encarnação, em Ávila mesmo.

Experiência mística decisiva

Na Quaresma de 1554, com 39 anos, ocorre o que seus biógrafos nomeiam como “segunda conversão de Teresa”; isso se dá numa descoberta casual da imagem de “um Cristo muito chagado”2 marca profundamente sua vida. A santa, que nesse período encontra profunda identificação com Santo Agostinho das Confissões, assim descreve o dia decisivo de sua experiência mística:

“Aconteceu…que, de repente, tive a sensação da presença de Deus, que de nenhum modo eu podia duvidar que estava dentro de mim, e que estava totalmente absorvida por Ele.”

Vida 10,1

Os Carmelos

Em 24 de Agosto de 1562, funda em Ávila, o primeiro carmelo reformado. Nos anos seguintes, continua as fundações de novos carmelos, dezessete no total. É fundamental o encontro, no ano de 1567, com São João da Cruz, com quem, em 1568, funda em Duruelo, perto de Ávila, o primeiro convento de Carmelitas Descalças. Em 1580, obtém de Roma a ereção em província autônoma para os seus carmelos reformados, ponto de partida da Ordem Religiosa da Carmelitas Descalças.

De onde lhe vem toda essa sabedoria?

Teresa de Jesus (passa a assim se chamar quando entra para o Carmelo), não possuía uma formação acadêmica, mas sempre valorizou os ensinamentos dos teólogos, letrados e mestres espirituais. Como escritora sempre se ateve àquilo que pessoalmente vivera, isto é, a partir da própria experiência, e não a de outros. Entre suas principais obras temos sua autobiografia, intitulada Livro da Vida, que ela chama de Livro da Misericórdia do Senhor. A finalidade é evidenciar a presença e a ação de Deus misericordioso em sua vida, por isso, a obra cita com frequência o diálogo de oração com o Senhor.

Em 1566 escreve Caminho de Perfeição, por ela chamado Exortações e Conselhos de Teresa de Jesus às Suas Monjas, destinado às doze noviças do Carmelo de São José, em Ávila. Teresa propõe um intenso programa de vida contemplativa a serviço da Igreja, em cuja base estão as virtudes evangélicas e a oração. O trecho mais importante está o comentário ao Pai-Nosso, modelo de oração.

Os livros

Porém a obra mística mais importante e conhecida de Santa Teresa é o Castelo Interior, ou As Moradas do Castelo Interior, escrito em seis meses, de junho a novembro de 1577, em plena maturidade espiritual. Este livro faz parte do tríptico doutrinal da Teresa escritora: Livro da Vida, Caminho da Perfeição e, Castelo Interior. Os três livros nos revelam a psicologia, a espiritualidade, a humanidade e a teologia de Teresa. Ela não é uma escritora de “mesa e livros”, mas uma comunicadora nata. Por que guardar dentro de nós o que o Senhor nos comunica quando essas experiências podem fazer bem aos outros? Depois de mais de quinhentos anos de seu nascimento, os escritos de Teresa mantêm seu valor e atualidade, e são cada vez mais lidos pelos “buscadores da verdade”. Teresa dá uma das mais belas definições de Deus, quando diz: “…compreendi que Deus é a suma verdade porque Ele é a suma humildade”.

Castelo místico

As Moradas do Castelo Interior é um livro em que Teresa põe em evidência a força da imaginação para fazer compreender quem é o ser humano e quem é Deus. A imagem do castelo não é estática, mas é dinâmica. É uma viagem ao interior, na qual superamos os obstáculos exteriores que nos impedem de entrar no castelo e cujo caminho prosseguimos sem parar, ate chegar à “morada central onde habita o Rei, sua Majestade”, que na linguagem de Teresa é Deus.

Mas quem é este Castelo, “feito de uma pedra preciosíssima, luminosa”? É o ser humano. É a mesma Teresa que assim o descreve no início do livro:

“…considerar nossa alma como um castelo feito de um único diamante ou de um cristal muito límpido, onde há muitos aposentos, assim como no céu há muitas moradas. Se pensarmos bem, irmãs, a alma do justo não é outra coisa senão um paraíso, onde Ele diz encontrar seus deleites. Pois então, como achais que deva ser o aposento onde se deleita um Rei tão poderoso, tão sábio, tão puro e tão pleno de todos os bens? Não encontro nada que comparar a grande beleza de uma alma e sua grande capacidade.”

Livro das Moradas, P32

Esta imagem sugestiva, antropológica e psicológica é genial em Teresa, mas o que importa é saber como podemos entrar neste castelo, dentro de nós, para um autoconhecimento que somente será pleno quando nos espelharmos em Deus, que nos criou a sua imagem. Para Teresa, a porta para entrar no Castelo é a oração. Não uma oração feita de fórmulas ou devoções, mas uma oração que é “um diálogo de amor, estando muitas vezes a sós com aquele que sabemos que nos ama”3. O diálogo só é possível na lógica do amor e da atração da reciprocidade.

Espiritualidade

Não é fácil resumir em poucas palavras a profunda e minuciosa espiritualidade teresiana; mas vamos tentar passar alguns conceitos. Em primeiro lugar, Santa Teresa propõe as virtudes evangélicas como base de toda a vida cristã e humana, em especial, o desapego dos bens, ou pobreza evangélica, e isso diz respeito a todos nós; o amor de uns pelos outros como elemento básico da vida comunitária e social; a humildade como amor à verdade; a determinação como fruto da audácia cristã: a esperança teologal, que descreve como sede de água viva. Sem esquecer as virtudes humanas: afabilidade, veracidade, modéstia, cortesia, alegria e cultura.
Em segundo lugar, Santa Teresa propõe uma profunda sintonia com as grandes figuras bíblicas e a escuta viva da Palavra de Deus. Sente identificação, sobretudo, com a esposa do Cântico dos Cânticos e com o apóstolo Paulo, além, claro, do Cristo da Paixão e do Jesus Eucarístico.

Oração: princípio de amizade com Deus

A santa sublinha a essencialidade da oração, orar, diz ela: “significa frequentar com amizade, visto que frequentamos a intimidade daquele que sabemos que nos ama”4. A oração é vida, e se desenvolve gradualmente com o crescimento da vida cristã, começa com a prece oral, passa pela interiorização mediante a meditação e o recolhimento, até chegar à união de amor com Cristo e a Santíssima Trindade.

Outro tema apreciado pela santa é a centralidade da humanidade de Cristo. Para Teresa, com efeito, a vida cristã é relação pessoal com Jesus, que culmina na união com ele pela graça, amor e imitação. Em certa ocasião em que sofre um acidente com sua carruagem que tombou, por pouco não cai no penhasco, ela diz: “Senhor, se tratas assim teus amigos, não admira que os tenha tão poucos!”, A frase revela-nos a natureza de sua amizade com Jesus: uma amizade que é sofrida e paciente, mas que revela uma confiança suprema, da qual não está excluído sequer o humor irônico. Em sua amizade com Jesus, Teresa sofreu muitas humilhações e incompreensões, e teve de aceitar muitas renúncias e sacrifícios.

Incompreendida

Muitos de seus contemporâneos não a compreenderam, mesmo seu pai que procurou obstinadamente impedir ou desviar sua vocação religiosa; não a compreenderam todos quantos colocaram obstáculos à sua reforma. Sua imaginação cintilante de graça, sua naturalidade desconcertante, suas intuições cheias de uma profunda sabedoria escandalizaram muitos homens de seu tempo, que a tomaram por uma visionária ou uma irrealista. Na verdade, toda essa incompreensão se dava, unicamente, por ser uma mulher, em plena Idade Média. Acontecia naquele tempo, acontece agora, e infelizmente, acontecerá.

Transverberação

Em uma de suas visões mais significativas para sua vida, tão importante, que foi retrata por vários artistas, é a que ilustra esse artigo, nomeada de Extasse de Santa Teresa; ela mesma relata:

Via-lhe nas mãos (do anjo) um comprido dardo de ouro. Na ponta de ferro julguei haver um pouco de fogo. Parecia algumas vezes metê-lo pelo meu coração a dentro, de modo que chegava às entranhas. Ao tirá-lo tinha eu a impressão de que as levava consigo, deixando-me toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar os gemidos de que falei. Essa dor imensa produz tão excessiva suavidade, que não se deseja o seu fim, nem a alma se contenta com menos do que Deus. Não é dor corporal senão espiritual, ainda que o corpo não deixe de ter sua parte, e até bem grande. é um trato de amor tão suave entre a alma e Deus, que suplico à sua Bondade o dê a provar a quem pensar que minto.

Vida 9,13

A oração que ela nos deixou

Nada te perturbe, Nada te espante,
Tudo passa, Deus não muda,
A paciência tudo alcança;
Quem a Deus tem, Nada lhe falta:
Só Deus basta.

Eleva o pensamento, Ao céu sobe,
Por nada te angusties, Nada te perturbe.
A Jesus Cristo segue, Com grande entrega,
E, venha o que vier, Nada te espante.
Vês a glória do mundo? É glória vã;
Nada tem de estável, Tudo passa.

Deseja as coisas celestes, Que sempre duram;
Fiel e rico em promessas, Deus não muda.
Ama-o como merece, Bondade Imensa;
Quem a Deus tem, Mesmo que passe por momentos difíceis;
Sendo Deus o seu tesouro, Nada lhe falta.
SÓ DEUS BASTA!

Enfim, o encontro com o amado

Esgotada, doente, Teresa deseja terminar seus dias em São José de Ávila. Uma obediência ditada pelos caprichos da duquesa de Alba, que, prestes a dar à luz, deseja a presença de uma “santa” junto de si, se leva a fundadora a morrer em Alba em 15 de Outubro de 1582. Nos últimos momentos, Teresa dá graças ao Senhor por tê-la feito filha da Igreja, feliz por morrer na Igreja, e ouviu-se este maravilhoso “canto do cisne”: “Meu Senhor e meu esposo! É chegada a hora que tanto desejei! É tempo de nos vermos, meu Bem-amado e meu Senhor!”.5

Santa Teresa de Jesus é verdadeiramente mestra da vida cristã para os fieis de todos os tempos. Em nossa sociedade, muitas vezes carente de valores espirituais, Santa Teresa nos ensina a ser testemunhas incansáveis de Deus, de usa presença e ação, nos ensina a sentir realmente essa sede de Deus que existe nas profundezas de nosso coração, esse desejo de ver a Deus, de procurá-lo, de dialogar com ele e de ser seu amigo.

Notas
1) Vida 1,4
2) Vida 9
3) Vida 8,5
4) idem
5) Goedt, p 18
Referências
BENTO XVI, Doutores da Igreja. São Paulo: Paulus, 2012.
GOEDT, MICHEL DE, O Cristo de Teresa de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2000.
PRADA, JUAN MANUEL DE, Teresa de Ávila. In VVAA, Mulheres à frente de seu tempo, Histórias de santas. São Paulo: Paulus, 2017.
SESÉ, BERNARD, Teresa de Ávila: mística e andarilha de Deus. São Paulo: Paulinas, 2008.
TERESA DE ÁVILA, As moradas do castelo interior. São Paulo: É Realizações, 214.
TERESA DE JESUS, Caminho de Perfeição. São Paulo: Paulus, 1979.
TERESA DE JESUS, O livro da vida. São Paulo: Paulus, 12ed, 2011.
TERESA DE JESUS, Livro das Moradas; leitura orante e pastoral. São Paulo: Loyola, 2013.

Acesse as outras partes deste artigo nos links abaixo

Separamos outros artigos que talvez possa interessar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *