O Livro do Apocalipse (Pt 6)

Esta é a sexta parte [de 9] do estudo do livro do Apocalipse. Para uma melhor compreensão do todo, sugerimos acompanhar as demais partes indicadas e numeradas abaixo. Bom proveito!

Ap 8-9 Começa a desabar o poder do Império, mas o coração continua endurecido

Deus ouve as orações, e vai agir

A abertura do sétimo selo será a manifestação e o advento do mundo novo. É a vinda do Reino de Deus e do Messias (Ap 8,1;10,7). Por isso o “silêncio”, conforme o ensinamento dos profetas (Zc 2,17), caracteriza a atitude de expectativa deste grande evento.

As trombetas são o símbolo do anúncio da intervenção decisiva de Deus na história (Sf 1,16). Os mensageiros de Deus se preparam, então, para essa revelação derradeira (vv2.6). O sentido dos acontecimentos só pode ser compreendido se Deus indicar.

Na origem destes fatos está sempre Deus, que dirige a vida dos povos. Agora, ele ouve a oração dos santos. É o pedido dos primeiros mártires que já deram o seu testemunho (Ap 9,10ss) e é a súplica de todos os fiéis que sofrem a perseguição.

Cristãs e cristãos devem, portanto, ter confiança. A sua oração purificada pelo “incenso” (Sl 141/140,2), sobe até Deus. E este há de responder.

De fato, Ele vai agir. O fogo sai do altar e cai na terra. Este fogo é o símbolo da justiça divina que vai agir no mundo, para purificar o seu povo (Mt 3,11). Pois como outrora enviara um fogo para julgar a Cidade Santa de Jerusalém (Ez 10,2), agora também vai enviar o fogo da justiça contra os perversos e iníquos, em resposta às orações dos santos (V.5).

Os sinais do fim de um mundo

As quatro primeiras trombetas apresentam os sinais precursores do julgamento de Deus sobre a Cidade Santa. Há sinais na terra, no mar, nas fontes das águas e nas estrelas, exatamente como Lucas também anunciava este mesmo fato (Lc 21,24-26). São os sinais da intervenção divina na vida do seu povo. Mas também levam consigo o último apelo de conversão. Pois a ruína de Jerusalém deverá ser um sinal daquilo que Deus quer do povo que ele educara e preparara para os novos tempos.

O primeiro sinal relembra a praga do Egito (Ex 9,24), prevenindo contra o endurecimento do coração igual ao do Faraó obstinado (Vv. 6-7).

O segundo evoca o castigo de Babilônia, tal qual o descreveu Jeremias (Jr 51,25), indicando a gravidade dos acontecimentos para o destino da Cidade Santa.

O terceiro mostra a queda dos reis orgulhosos (Is 14,12). Adverte que a rebeldia torna a vida amarga – a “Amargura” ou “Absinto” – para os que se afastam do Deus da Aliança (Jr 9,14); o que, aliás já acontecera na primeira queda de Jerusalém, cuja vida tornou-se extremamente amarga (Lm 3,15.19).

Finalmente o último sinal (V.12) relembra a penúltima praga do Egito (Ex 10,21-23), para dizer que Deus vai agir e realizará o Grande Dia, dia de trevas, conforme o anúncio dos profetas (Am 8,9; Jl 4,15).

A realização do julgamento

A Águia do V.13 é o quarto Ser-Vivo que realiza o julgamento de Deus sobre a história. Deus vai fazer a intervenção definitiva na vida do povo e na vida do Império Romano.

Os três “Ais” ou “Azar” que a Águia anuncia indicam o dinamismo deste julgamento:

  • será a manifestação da justiça divina sobre o povo da antiga aliança que não aderiu ao projeto de Deus anunciado por Jesus (Ap 9,12);
  • trará o advento do Reino de Deus e do Messias (Ap 11,14ss);
  • trará também a destruição do mundo idólatra e perseguidor, representado por Babilônia, símbolo do autoritarismo opressor de Roma (Ap 14,6ss).

Assim, o Dia de Adonai será a revelação e a vinda do Reino de Deus, e neste momento o novo Povo de Deus será enviado para dar testemunho no meio do mundo.

Os instrumentos de Deus

A quinta trombeta (Ap 9,1-11) começa a mostrar a realização desse julgamento através de um exército de gafanhotos. Estes, em sua ação poderosa, são os instrumentos de Deus que realiza o Grande Dia, conforme o profeta Joel anunciara em Jl 2,3-5.

A ação de Deus penetra na raiz da história e atinge o mal na sua fonte, Assim, do seio do Abismo surge uma fumaça, que faz lembrar a destruição de Sodoma a cidade pecadora (Vv.1-2). E do meio dessa fumaça surgem os instrumentos de Deus – o exército de gafanhotos – que irão atormentar quem não se converter ao chamado de Deus;

Os vv. 4-5 sugerem mesmo que este símbolo traduz um acontecimento concreto. É o início da Guerra Judaica, que haveria de culminar com a ruína de Jerusalém no ano 70 d.C. De fato, pode-se ver nessa descrição os ataques comandados pelo governador Festus, que duraram cinco meses (v.5).

Essa primeira invasão tem um significado: Manifesta um poder destruidor. Pois, os gafanhotos são um exército de cavaleiros (Jl 2,4). As suas características demonstram grande poder: coroas de ouro, rosto de homem, longos cabelos, dentes de leão. É uma legião vitoriosa, inteligente e poderosa. E empregam este poder para destruir. As couraças, as asas, a cauda poderosa e o seu rei, tudo indica que chegou a hora da destruição de um mundo de injustiças, iniquidade e perversidade.

Destruição e apelo à conversão

A sexta trombeta (Vv.13-21) revela o desfecho da ação. Os cavaleiros terríveis continuam a simbolizar outros acontecimentos da Guerra Judaica. Aludem ao fato, à sequência da invasão devastadora de Cestius. São esses acontecimentos que trazem o fogo purificador da justiça divina sobre o povo para que se convertam (Vv. 17-19). Depois dessa invasão, os tumultos e revoltas se avolumaram, até que Jerusalém foi arruinada no ano 70 d.C.

Vale lembrar que esses animais relatados nesta perícope, vêm do lado do rio Eufrates (atual Irã) representam os Partos, inimigos ferozes do Império romano, que aqui foram transformados em agentes simbólicos do castigo divino contra o Império romano. O flagelo que provocam tem hora, dia, mês e ano para aparecer e desaparecer (9,15). Por mais fortes que sejam, não passam de um simples empregado a serviço do projeto maior de Deus que assim se realiza.

Entretanto, mesmo neste ato decisivo para a vida do povo permanece um último apelo à conversão (Vv. 20-21). Todo o povo será destruído? Não haverá para eles, os maus, uma oportunidade??

A resposta está no número dos que serão atingidos, só a terça parte.

O antigo e o novo

Estas cenas fazem-nos refletir sobre o sentido verdadeiro da tradição na vida do Povo de Deus.   

A tradição é a continuidade e fidelidade a uma realidade que vem do passado. Mas, a tradição viva é também dinamismo, abertura e fidelidade aos apelos do futuro (Cf Constituição Dogmática Dei Verbum Sobre a Revelação Divina, 8 – CV II).

É preciso conservar os elementos essências que vêm do passado. Todavia, é necessário saber discernir quais são os elementos culturais e passageiros, que devem ser abandonados por fidelidade aos novos apelos de Deus na história.

Ap 10,1-11 O fim já chegou, o fim ainda não chegou

Depois das seis pragas não houve a conversão desejada (Ap 9,20-21). Aguarda-se agora o toque da sétima praga que marcará a chegada do Dia de Adonai, o julgamento definitivo. No fim do capítulo 6, diante da terrível previsão do sétimo e último selo (Ap 6,15-17), abriu-se uma espécie de parênteses (7,1-17) para informar sobre a situação e a missão das comunidades. Agora, diante da terrível previsão da sétima e última praga, abre-se outros parênteses (Ap 10,1-11,14) para informar, novamente, sobre a situação e a missão das comunidades. O que vai acontecer com elas e o que deverão fazer durante as angústias que estão para acontecer?

Além de parêntesis, os capítulos 10 e 11 são também uma espécie de costura. Eles mostram que o livro do Ap de João não foi escrito de uma só vez, mas teve um longo processo de composição e de redação. Estes dois capítulos trazem várias visões que parecem não ter muita unidade entre si. De um lado, se afirma que o Tempo do Fim chegou (10,5-7). De outro, se diz que há muitas coisas para serem anunciadas e que a missão deve continuar (10,8-11). Além disso, a ordem de medir o Templo (11,1-2) e a visão das duas testemunhas (13,3-13) não têm nenhuma ligação com o que precede e com o que segue. E quando finalmente acontece a sétima praga, dela apenas se descreve a introdução litúrgica (11,15-19) e nada mais. Pois em 12,1 começa um outro assunto, uma outra visão.

Interrompendo o ritmo das trombetas, um “livrinho” é introduzido com grande aparato dramático. Se o livro ou rolo dos sete selos era o AT interpretado por Cristo glorificado, o presente livrinho fala da etapa que precederá o julgamento final; ele não está selado. A imagem do livro vem de Ez 2,8-9 e 3,1-3. É preciso comê-lo e assimilá-lo; tem sabor doce, como palavra de Deus (cf. Jr 15,16), é amargo pelas ameaças que contém. O livro ingerido confere a missão de profetizar (Ez 3,1-11) e dá autoridade sobre povos e reis (Jr 1,10). Profetizar é dar testemunho da parte de Deus: o autor profeta se desdobrará em duas testemunhas coletivas, para a etapa anterior ao julgamento. A função do livrinho é provocar e garantir o testemunho cristão, que é a nova profecia (Mc 13,11).

Visto que o sétimo toque de trombeta é adiado até 11,15, essa seção reclama um espaço notável para apresentar algo muito importante que deve acontecer antes do fim.

Antes de receber e devorar o livrinho, escutou os sete trovões (Sl 29/28,3), que agora têm voz articulada (Ex 20,18-19; Jo 12,29) para responder ao grito do anjo e explicar como será o final. João escuta-o e compreende, mas não pode escrevê-lo nem o revelar antes que chegue o momento do cumprimento (Dn 8,26). Como mediador intervém um anjo magnifico: radiante, solar, de fogo, de voz possante, capaz de abranger mar e terra detendo-se em ambos. Pronuncia o juramento mais solene (Dn 32,40; Gn 14,22), anunciando que o fim é iminente.

Ap 11,1-19 As duas testemunhas, a sétima trombeta

As duas testemunhas anunciam uma mensagem para o futuro. Deus se aproxima para instaurar o seu Reino. O reino de Deus e do Messias transforma a maneira concreta das pessoas viverem. Mas essa mudança só pode vir pela ação das testemunhas do Ressuscitado: Antes de perceber o que é este mundo novo, é necessário conhecer o dinamismo capaz de fazê-lo surgir.

As duas testemunhas (V.3) agem com o poder e a energia dos grandes profetas. Sendo duas, realizam as condições de veracidade exigidas pela antiga Lei Mosaica. O poder que exercem é semelhante ao de Moisés e de Elias. São as duas oliveiras prometidas por Zacarias, que via a restauração do sacerdócio e da realeza (Zc 4,3.12). Nessas duas testemunhas, muitos teólogos, viram Pedro e Paulo no seu martírio em Roma. De qualquer maneira, são figuras que representam o testemunho cristão no momento da perseguição.

As testemunhas não estão vestidas de branco – sinal da vitória – mas cobertas de saco – sinal de penitência. o tempo do testemunho é limitado (42 meses, 1260 dias, ou três anos e meio, isto é metade de sete, que é o tempo longo e perfeito).

O testemunho é um ato público que desafia os poderes do mundo, mostrando-lhes que a verdade pertence a Cristo vitorioso do mal. O testemunho é uma luta com as armas do evangelho (V7; Ef 6,10ss). Consiste em refazer o próprio testemunho de Jesus (Jo 18,37ss): dizer a verdade, ser fiel e morrer na esperança da ressurreição. Esta será a trajetória do testemunho cristão ao enfrentar a Besta que surge do abismo, ou o império tirânico e perseguidor.

O realismo do Ap é muito grande. A besta vai vencer os profetas e matá-los. Os grandes centros urbanos como Sodoma, Egito (símbolos da vida desregrada e da idolatria) e Jerusalém (a cidade que crucificou o Messias) vão colocar os cadáveres das testemunhas na praça pública e zombarão deles. O testemunho passa pela fidelidade até a morte (Vv.7-8). O motivo dessa morte é a verdade que incomoda os habitantes da terra (v.10). O testemunho é a verdade que julga e tira a força dominadora dos poderes absolutos; e é a crítica que desfaz as ideologias, as quais se tornam cimento da realidade. Por isso o mundo reage; suprime as pessoas que falam, querendo destruir também a verdade que anunciam. Quem diz a verdade terá o mesmo destino do Mestre. Pois ele procurou dar novo rumo à história: veio libertar as pessoas do mundo das trevas, da mentira, da escravidão e da morte.

O mundo reagiu e matou. Esta será, pois, a sorte dos cristãos. Hão de desafiar as forças que escravizam e dominam as pessoas. A força da mentira e da escravidão encarna-se na cidade da meretriz (Roma), as quais procuram suprimir a verdade que vem de Cristo para poderem aparecer como os únicos dominadores.

O dinamismo do testemunho termina também o de Jesus. Este venceu o mundo e saiu vitorioso da morte.

A força que transforma a história é o Espírito da verdade. Ele esclarece a mente dos discípulos e faz ver o que é o pecado, a injustiça, e onde se instalam. O Espírito dinamiza o testemunho que liberta. Dá a liberdade para o amor fraterno. Derruba o que escraviza e impede a comunhão. Constrói a vida mútua de união e de solidariedade.  

Por fim, depois da etapa das testemunhas, soa a sétima trombeta e chega o fim: agora é o reinado de Deus e julgamento final. É um ato unitário cuja articulação assim: assalto presunçoso de uma coalizão internacional (Sl 2,2; Ez 38; Is 8,9-10), derrota (Sl 48/47,5-6; 76/75,6-7), o julgamento de prêmio e castigo (Is 65,8-16) segundo a lei do talião; o reinado. Na escatologia de Is 24-24 descobrimos a seguinte ordem: terremoto (24,18-20), julgamento e reinado (24,21-23).

Santos ou consagrados é designação comum dos cristãos; eles mesmos são teus servos, os profetas” (Zc 1,6) pela função profética partilhada de dar testemunho; eles mesmos ainda são os que “respeitam teu nome”, fórmula menos frequente (Sl 61/60,6). “Pequenos e grandes” inclui a totalidade (Sl 115/114,13).

A cólera dos pagãos pode ser tomada de Sl 2,2 ou de Sl 98/97,1; é cólera ativa, agressiva. Os inimigos de Deus são os destruidores da terra, que é criação de Deus; ou, segundo o equivalente hebraico, os que corrompem e pervertem o mundo. Combina uma fórmula frequente sobre os profetas e outra do Sl 115/114,13.

Para entender o v.19, devem se recordar dois dados: a presença da arca da aliança no templo de Salomão (1Rs 8,1,6) e a lenda contada em 2Mc 2,7-8. Segundo esta, Jeremias escondeu a arca numa gruta do monte Nebo, e anunciou: “Esse lugar ficará desconhecido, até que Deus se torne propício e reúna a comunidade do povo; então o Senhor mostrará de novo esses objetos, e será vista a glória do Senhor”.  

Ao dizer que a arca reapareceu no céu, o Ap afirma ter chegado o tempo em que Deus se mostrou misericordioso e reuniu o seu povo.

Este capítulo traz mais um hino: 17-18. Note que o nome de Deus está descrito como: “Aquele que é e Aquele que era”, não tem mais a perspectiva de futuro (“Aquele que vem”) como citados nos capítulos anteriores. Por quê? Porque Deus já está presente mediante o espírito de profecia e a resistência das comunidades.

Referências
AUTORIA COLETIVA. Evangelho de São João e Apocalipse, roteiros para reflexão IX. São Leopoldo: CEBI – Centro de Estudos Bíblicos. São Paulo: Paulus, 2000.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2010.
BÍBLIA DO PEREGRINO. 2ª Ed. São Paulo: Paulus, 2006.
BORTOLINI, José. Como ler o Apocalipse – Resistir e Denunciar. 8ª Ed.São Paulo: Paulus, 2008.
BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. 2ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2012.
CORSINI, Eugênio. O Apocalipse de São João. São Paulo: Paulinas, 1984.
FITZMEYR, Joseph A.; MURPHY, Roland E; BROWN, Raymond E. (Orgs.) Novo Comentário Bíblico São Jeronimo: Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2011.
MESTERS, Carlos. OROFINO, Francisco. Apocalipse. 2ª Ed. São Paulo: Fonte editorial; Aparecida: Santuário, 2013.
TUÑI, Joseph-Oriol. XAVIER; Alegre. Escritos Joaninos e cartas católicas. 2ª Ed. São Paulo: Ave Maria, 2007.

Separamos outros artigos que talvez possa interessar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *