Esta é a sétima parte [de 9] do estudo do livro do Apocalipse. Para uma melhor compreensão do todo, sugerimos acompanhar as demais partes indicadas e numeradas abaixo. Bom proveito!
O Segundo Roteiro da Caminhada do Povo de Deus
Situando os capítulos 12 a 20 dentro do contexto histórico e literário
Durante os anos 70 a 95, os problemas das comunidades cresceram: intensificou-se a propaganda da ideologia do Império romano, aprofundou-se o conflito com os irmãos judeus, cresceu a influência do gnosticismo, aumento da perseguição aos que discordavam da política oficial do Império. No fim do governo de Domiciano (81-96), a hostilidade contra as comunidades voltou com força, sem controle, sobretudo na Província da Ásia. Uma das vítimas era o próprio autor, exilado na ilha de Patmos (1,9). Com este aumento dos problemas de fora, cresceram também as oposições e divisões internas dentro das comunidades.
Por tudo isso, a leitura dos fatos, feita nos anos 70 através do Roteiro do Êxodo, já não bastava. A conjuntura política e eclesial era outra. A agressão e a penetração do império eram muito mais insidiosas. Nas comunidades não estava claro o horizonte a respeito da atitude a ser tomada frente ao Império. Havia gente que usava as cartas de Paulo para legitimar uma aproximação com o Império. Era necessária uma leitura mais atualizada e mais crítica tanto da realidade e da política do Império, como da missão das comunidades na nova conjuntura.
Para responder a esta problemática das comunidades cristãs dos anos 90 foram escritos os capítulos 12 a 22 do Apocalipse de João. Dentro da atual estrutura do livro, estes capítulos formam a continuação e o alargamento da sétima praga, iniciada no fim da primeira parte (Ap 11,14-19). Nestes capítulos, a Boa Nova de Deus é apresentada como a condenação progressiva dos poderes do mal que hostilizam e perseguem o povo das comunidades.
Estes são também os capítulos que suscitam o maior número de problemas com relação ao Apocalipse. É neles que aparecem as visões e as imagens mais conhecidas e mais controvertidas: a luta entre a Mulher e o Dragão (12), a Besta-fera cujo número é 666 (13), a grande prostituta que seduz o mundo inteiro (17), o cavaleiro branco que enche o universo de morte (19), os mil anos de reino com Cristo e a derrota da própria morte (20), a Jerusalém celeste que desce do céu (21).
Uma chave de leitura para os capítulos 12 a 20
Para os apocalípticos existem dois mundos, duas esferas de ação: o mundo de cima e o mundo de baixo, o Brasil que queremos e o Brasil que temos, o mundo da utopia e o mundo de todo dia. O mundo real, verdadeiro, é o mundo de cima, onde está o Trono do Juiz que preside o julgamento da humanidade. Diante dele estão o promotor (satã) que nos acusa, e o advogado (goêl) que nos defende. Tudo que acontece no mundo cá de baixo é um reflexo visível daquilo que se passa no mundo invisível lá de cima. Ora, no mundo de baixo muita coisa nova estava acontecendo que as comunidades não estavam percebendo direito. Alguém precisava tirar o véu (apo-calipse) para que eles pudessem perceber, novamente, o sentido escondido, mas real dos acontecimentos, Em Ap 4 a 11, o autor já tinha começado a tirar o véu. Agora, em Ap 12 a 20, ele completa o quadro e ajuda as comunidades a fazerem uma análise mais crítica da realidade.
Ap 12 A visão da Mulher e do Dragão
A Mulher em dores de parto simboliza a vida, a humanidade, o povo de Deus, as comunidades perseguidas. Simboliza as mulheres que lutam gerando vida. Simboliza Maria, mãe de Jesus. Simboliza tudo aquilo que fazemos, as pequenas e grandes lutas do dia a dia, para melhorar a vida do povo. As dores do parto simbolizam o sofrimento que a humanidade suporta para defender a vida e fazer nascer vida nova. Simbolizam o momento em que Jesus, o Messias, a descendência da mulher, está nascendo.
O Dragão é a “antiga serpente, chamado diabo, o satanás sedutor de toda a terra habitada” (Ap 9). Ela, a serpente, cresceu ao longo da história e virou dragão. Simboliza o poder do mal, a morte e os sistemas políticos e econômicos que oprimem, sufocam e matam a vida. Sua força é tão grande que, com uma balançada da cauda, derruba uma terça parte das estrelas.
O Dragão está diante da Mulher para devorar-lhe o menino que vai nascer. Luta desigual; aqui a vida perde para a morte, o que pode uma mulher em dores de parto, uma pequena comunidade, um círculo bíblico, uma organização de bairro, contra o sistema neoliberal que hoje domina o mundo e ameaça desintegrar a vida no e do planeta Terra, nossa Casa Comum? Ao lembrar da profecia de Gn 3,15 faz prever que a cabeça da serpente será esmagada pela mulher. Este era e continua sendo o fundamento da esperança e da coragem dos oprimidos, dos excluídos.
Mas Deus intervém e defende o menino, defende a Mulher, defende a Vida. O menino levado ao céu, é a Ressurreição de Jesus, é o novo começo, a nova criação. Ela revela o poder com que Deus enfrenta o Dragão e protege o seu povo. Como no Êxodo, a Mulher (o povo) é levada para o deserto, onde é alimentada por Deus durante 1260 dias, número simbólico que representa o tempo de Deus, Káiros, previsto para a duração da perseguição, da angústia da sétima praga (11,2-3).
A luta do Dragão com Miguel, simboliza a luta do mal contra o bem. Satanás, o acusador, acusa a humanidade diante de Deus, o Juiz no Trono. Jesus pela sua morte e ressurreição anula a acusação que pesava sobre a humanidade, sobre cada um de nós. Ressuscitando, Jesus, esvazia o poder do acusador que é expulso do céu. Assim a vitória do bem sobre o mal é certa, pois já aconteceu no mundo de cima. Pouco a pouco, vai se revelando no mundo cá de baixo.
Vencido lá em cima, o Dragão vem para cá embaixo, persegue a Mulher novamente, mas essa é protegida por Deus novamente como assas de Águia (Dt 32,11). O vômito é o Império Romano, que invadiu o mundo; engolido pela terra, ou seja, a história vai engolir o Império romano, vai engolir também o Império neoliberal que hoje oprime a Vida de tanta gente e marginaliza, a maioria do Povo. Derrotado, novamente, o Dragão persegue os descendentes (as comunidades) da Mulher, os que creem em Jesus Ressuscitado. Ao lerem ou ouvirem essas palavras, as comunidades devem ter dito: “É hoje, é isso o que está acontecendo conosco!”.
Para perceber todo o alcance da coragem daqueles primeiros cristãos, irmãos e irmãs nossas, pode ser útil tentar atualizar os símbolos do Apocalipse. Por exemplo, o autor sugere que o Império romano é o vômito de Satanás (12,15). Hoje, o vômito do Império capitalista, qual seria? O sistema bancário que enxerga as pessoas como cifrões? Os objetos descartáveis que enchem os lixões das grandes cidades, os miseráveis que procuram sobras para poder sobreviver? A especulação financeira com dinheiro sem pátria na mão de muito poucos? A propaganda que estimula desejos de comprar o que é supérfluo, que gera ganância, fonte de violência e exclusão? Quais mais podem ser enumerados aqui?
O hino em 12,10b,12, é o canto de vitória do mundo de cima, que refletirá no mundo cá de baixo.
Ap 13,1-8 O sistema do poder perseguidor e as ideologias, sustentadas pela propaganda
A descrição começa mostrando o que é a Besta, é o Império romano, com seu grande poder e com pretensões do imperador tornar-se um deus. Este Império totalitário impunha-se pela força, dominava os povos e suprimia as liberdades, a chamada Pax Romana.
Em muitos aspectos, a primeira Besta é a caricatura e o oposto da ação de Deus e do Cordeiro imolado. É o anticristo, que seduz e escraviza. Ap 17,10-14 explica que essa Besta atuando no poder romano com seu sistema jurídico e militar, representa as forças dirigidas contra Cristo e sua Igreja. Arroga-se poder absoluto e procura tomar o lugar que pertence somente a Deus.
Este poder dominador vem do Dragão. Com isso, a cena quer mostrar que a detenção do poder absoluto é fruto de um egoísmo e de uma injustiça coletivos. O espírito do mundo egoísta vai tornando tão forte, transforma-se em sistema dominador, a tal ponto que os detentores do poder são apenas a cristalização deste mal maior. Cria-se uma situação de violência e de iniquidade que ultrapassa os indivíduos. Surge, então, um sistema de dominação que suprime liberdades e o poder se superpõe ao bem comum.
O poder absoluto torna-se idólatra. Encarnando o egoísmo e os interesses injustos, pretende tomar até o lugar de Deus. Assim, a Besta representa um imperialismo antí religioso, que suprime liberdade e exige obediência incondicional dos súditos. Torna-se absoluto em si, separados dos interesses e do bem do povo, oprimido, escravizado e excluído. A este poder tudo tem que ser sacrificado: dignidade, autonomia e os direitos fundamentais da pessoa humana.
O v.18 dá a pista para se identificar a Besta. O número 666 é resultado do valor do número de letras, em hebraico = César-Neron (37-68) e em grego = César-Deus, que foi grande perseguidor dos primeiros cristãos. Depois, com o imperador Domiciano (51-96). Perseguição e absolutismo constituíam o binômio contra o qual o testemunho cristão tinha que dizer a verdade, relativizando as pretensões imperiais. É este tipo de poder que o testemunho cristão tem que desafiar, mesmo sabendo que isso custará a vida deles.
A segunda Besta está a serviço da primeira, representa as forças espirituais e ideológicas do Império romano: a religião imperial, o sacerdócio do culto ao imperador e o sistema jurídico imposto para assegurar tal situação.
Esta segunda Besta é o falso profeta, que diz a verdade convencional. Perde a objetividade e o discernimento da verdade e da justiça. Procura a todo custo manter o poder opressor (Ap 19,19-21). É a ideologia do poder absoluto que cimentava toda a vida do Império romano, e de certa forma, tem se estendido até os dias atuais. É a mentira.
O testemunho consiste em dizer a verdade. Deve mostrar onde está a mentira e no julgamento público testifica qual é a verdade. As cristãs e cristãos devem afirmar que a verdade está com Jesus Cristo, o único Senhor do mundo. Assim o testemunho é um ato público, o seu contexto é a cidade e os poderes que a dominam.
O primeiro campo de ação será, pois, a ideologia do Império, do Estado e a verdadeira natureza da autoridade e do poder. O testemunho há de mostrar qual é o sentido da autoridade (cf. Rm 13,7ss); mas indicará também qual é a perversão do poder que se impõe pela força, pela propaganda enganosa e sem justiça.
O segundo campo será igualmente o das ideologias e das culturas. As verdades estratificam, servem a interesses particulares e dos poderosos, conservam status e posições sociais. As ideologias sustentam o poder e a dominação de grupos privilegiados sobre outros grupos. O testemunho deverá, pois, dizer a verdade verdadeira e desfazer o cimento social que representam as ideologias (cf. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a Evangelização no mundo Contemporâneo, n. 19).
Ap 14,1-20 A força do Evangelho julga a História
Estamos no centro da transformação da história. O que vai transformar a marcha dos acontecimentos é a força do Evangelho e do testemunho. As testemunhas são as primícias do mundo novo que nasce do julgamento de Deus. Há, portanto, a declaração da sentença contra o Império perseguidor e mostra-se que o seu julgamento vai se realizar através do sangue que cristãs e cristãos estão derramando. O ato de julgamento é apresentado nas imagens de uma “ceifa” e de uma “vindima” que prepara a taça da Justiça de Deus.
Na hora da luta é preciso reafirmar a fé no Ressuscitado. Ele está em pé sobre o monte Sião, é ele que dirige e sustenta as testemunhas. Apresentam-se, então, as suas qualidades cristãs, capazes de assegurar o testemunho na hora da perseguição:
- Não caíram em idolatria: não aceitaram a prostituição dos ídolos e da religião imperial; como o servo do Senhor, em Is 53,9, nunca disseram mentiras, foram fiéis à verdade revelada pelo testemunho de Jesus; são virgens por sua fidelidade (1Sm 21,6; 2Sm 11,1-27; Os 2,18-25;11,1-4; Jr 31,22), e são íntegros como as vítimas oferecidas a Deus.
- São as primícias para Deus e para o Cordeiro: é esta imagem que permitirá compreender o resto do capítulo e mostrará como o julgamento de Deus se manifesta na história pela fidelidade das testemunhas. Pois “quando o fruto está no ponto, imediatamente se lhe lança a foice, porque a colheita chegou” (Mc 4,29). Como a messe fica toda consagrada pela oferta das primícias (Nm 15,19-21), assim acontece com os mártires que derramam o sangue no ato do testemunho.
O Evangelho Eterno (v.6) é o conteúdo do Livrinho aberto, que anunciava como o mundo novo haveria de surgir. Este Evangelho Eterno é a manifestação do Julgamento de Deus. Cada anjo manifesta um dos seus aspectos. O primeiro deles declara a sentença de Deus sobre o Império perseguidor:
- O Julgamento é um apelo para reconhecer a Deus como o único Criador e Senhor de Tudo o que existe; não há outro Absoluto senão Ele (vv. 4-6).
- É formalmente a manifestação da justiça divina: esta é apresentada segundo o velho esquema da lei de talião – Babilônia deu de beber do vinho de sua ira (Ap 18,6), por isso há de beber do cálice da ira de Deus (Ap 14,10).
- O Julgamento atingirá também os adoradores da Besta e os que levam a sua marca e aceitam a sua dominação.
- A sentença do julgamento mostra, pois, que este mundo (de corrupção, violência, intolerância, necropolíticas) vai desaparecer, abrindo caminho para o surgimento do mundo novo. (Vv. 11-12).
O supremo juiz da história é o Filho do Homem. Ele manifesta o ato de Deus e mostra o sentido do que está acontecendo. Traz os sinais da vitória (coroa), da presença de Deus (nuvem) e do julgamento (foice).
Ceifa primeiramente, as searas da terra. Estas searas são o símbolo do Reino de Deus que já deu os seus frutos sobre a terra (Mc 4,29).
Outro aspecto do julgamento, e o mais importante, é a vindima da Vinha da terra. A vinha designa sempre o Povo de Deus (Is 5,1-7; Mc 12,1-12). As uvas designam os fiéis incorporados a Cristo (Jo 15,1ss). A vindima se aplica aos mártires. Eles são pisados no lagar fora da cidade, como Jesus foi morto fora de Jerusalém. O seu sangue, que inebria os perseguidores, torna-se para estes o vinho da ira, ou da justiça divina. Matando os mártires, os inimigos de Deus e de Cristo estão preparando o seu próprio julgamento. Estão eles próprios preparando o cálice da ira divina.
A primeira fase do testemunho consiste em destruir o mal. A lei do pecado penetra na vida das pessoas, nas situações, e nas estruturas da sociedade. Para fazer o bem é preciso destruir a força do mal, emancipar-se dessa lei do pecado pessoal e coletivo. O contexto do testemunho é a cidade dominada pela lei do pecado cristalizada nas duas Bestas, símbolos do egoísmo coletivo que se torna como um monstro poderoso. Por isso, o testemunho começa por um ato de justiça que procura transformar. É ato público que procura destruir as manifestações coletivas do mal.
O hino neste capítulo está no V. 7.
Referências AUTORIA COLETIVA. Evangelho de São João e Apocalipse, roteiros para reflexão IX. São Leopoldo: CEBI – Centro de Estudos Bíblicos. São Paulo: Paulus, 2000. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2010. BÍBLIA DO PEREGRINO. 2ª Ed. São Paulo: Paulus, 2006. BORTOLINI, José. Como ler o Apocalipse – Resistir e Denunciar. 8ª Ed.São Paulo: Paulus, 2008. BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. 2ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2012. CORSINI, Eugênio. O Apocalipse de São João. São Paulo: Paulinas, 1984. FITZMEYR, Joseph A.; MURPHY, Roland E; BROWN, Raymond E. (Orgs.) Novo Comentário Bíblico São Jeronimo: Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2011. MESTERS, Carlos. OROFINO, Francisco. Apocalipse. 2ª Ed. São Paulo: Fonte editorial; Aparecida: Santuário, 2013. TUÑI, Joseph-Oriol. XAVIER; Alegre. Escritos Joaninos e cartas católicas. 2ª Ed. São Paulo: Ave Maria, 2007.
Uma resposta em “O Livro do Apocalipse (Pt 7)”
Muitíssimo bom. Texto maravilhoso. Muito iluminador do nosso agir como cristãos em realidades que acabam se repetindo.